• Nenhum resultado encontrado

Joanna Latka

UNIVERSIDADE EUROPEIA; INSTITUTODE HISTÓRIADE ARTEDA FACULDADEDE LETRASDA UNIVERSIDADEDE LISBOA

Nos finais do século XIX notamos uma forte presença da Ilustração no território portu‑ guês. Lembramos que “o aumento da alfabetização produziu mais leitores e refletiu‑se na importância dada à comunicação gráfica, que se tornou mais disponível em função da grande demanda da comunicação de massa” (Cavalcante, 2010: 143). Era uma inovação importante na altura, vista como uma forma decorativa e nova estratégia publicitária, a qual teve como objectivo principal atrair o futuro leitor através de inovadores desenhos humorísticos, ilustrações no miolo dos livros ou capas apelativas. Podemos assumir que estas modernas estratégias de venda garantiram um sucesso no mercado, e resultaram numa notável produção gráfica, que nesta fase “alcançou um verdadeiro e decisivo desenvolvimento no nosso país” (Santos, 2001: 7). Em suma:

“[Os] desenhos apresentava[m] a imagem da sociedade portuguesa através da escolha e da reconversão dos factos, em que estava incluído o jogo entre aquele que realizava e outro que consumia. Assim, todas as imagens apareciam, as não verdadeiras e as verdadeiras, situadas num ponto oscilante de equilibro entre a realidade a que não se podia fugir e a necessidade que se tentava adivinhar. A auscultação do gosto era fundamental para uma revista (ou editora) sobreviver, sujeita ao contacto que estabelecia entre os conteúdos (temáticos e gráficos), [que] eram também o barómetro do grau de assimilação dos novos valores que nos Anos 20 se tentavam organizar” (Lobo, 2009: 15). A editora Romano Torres, no seu funcionamento empresarial, não foi diferente de outras entidades editoriais contemporâneas, tentando conquistar o mercado nacional com novas estratégias. Falamos aqui de diversas modalidades de venda – edições espe‑ ciais (edições de luxo acompanhadas por estampas), vendas por assinatura – e de um evidente esforço para reproduzir ilustrações1.

1 Theresa Lobo atesta que “A atração do público escolhido realizava‑se através dessa apresentação de ingredientes, de conjuntos mais ou menos equilibrados de elementos literários e gráficos. Estes últimos tornaram‑se muitas vezes, determinantes para o sucesso deles, se analisarmos as altera‑

Sublinhamos que, na época, considerava‑se a ilustração uma arte menor, ignorando‑se a enorme riqueza produzida nesta matéria. Olhava‑se para este meio gráfico como uma “manifestação secundária” (Santos, 2001: 7) e como se fosse somente uma nova estraté‑ gia de venda de “recurso de artistas mais ambiciosos que aí encontraram ocasional ou perene sobrevivência” (Lobo, 2009: 9).

Figura 1. Autor desconhecido, ilustração para A revolução portugueza, tinta-da-china, s.d.

Fonte: Espólio de Francisco Noronha e Andrade.

Por este motivo, as casas editorais e litográficas, em geral, depois da utilização das imagens produzidas, devolviam as peças aos seus autores, ou destruíam‑nas. No entanto, a editora Romano Torres, durante várias décadas de existência, teve por hábito guardar as ilustrações produzidas para os seus livros. Não podemos falar de um sistema ou uma forma organizada, mas antes de uma prática espontânea, criada sem preocupação rela‑ tivamente ao registo por medidas técnicas e/ou identificações autorais.

Na verdade, ainda não foi possível apurar, cabalmente, qual o objetivo desta prática. Podemos conjecturar que a possível razão da acumulação dos desenhos teve origem na intenção de futuras reimpressões ou reedições. No entanto, as modas e estilos artísticos

ções sensíveis que sofrem com o tempo, preocupação constante de acompanhar a própria “ima‑ gem” da sociedade; fotografias, molduras decorativas, vinhetas, cabeçalhos e ilustrações, tinham um enquadramento específico de acordo com os diferentes programas das várias publicações, apresen‑ tando‑se mesmo com uma versatilidade magnífica na evolução de cada um deles” (Lobo, 2009: 23).

mudavam rapidamente – sobretudo na primeira metade do século XX – o que obrigava a editora a lançar ou reeditar os livros com novas imagens, que representavam bem a moda da época, onde “a arte e a vida interpenetraram‑se neste esforço conjunto de sacudir o público de um sono antigo, e de o despertar para um ritmo acelerado, mais de acordo com os novos valores estéticos” (Lobo, 2009: 35). Todavia, a Romano Torres não eliminava as ilustrações não reutilizadas, acumulando no seu espólio as novas peças desenhadas para publicações recentes, contribuindo, de modo voluntário, para a salvaguarda de centenas de ilustrações originais, que nos mostram uma riqueza relevante nesta área artística.

O resultado desta prática é um conjunto diversificado de ilustrações originais: capas, ilustrações do miolo, vinhetas, cabeçalhos, entre outras peças de grande classe, que “enriquecem a leitura, fazem ressoar a informação, agarram o leitor pelo deleite ou pelo mistério” (Lobo, 2009: 9). Reportamo‑nos aqui a mais de 1200 desenhos originais, produzidos desde finais do século XIX até meados do século XX, que nunca foram estu‑ dados anteriormente, nem apresentados ao público português. Relembramos que, em Portugal, existem poucas colecções dedicadas em exclusivo à Ilustração (obras originais), mormente para o período representado pela colecção iconográfica da Romano Torres (que integra o Espólio de Francisco Noronha e Andrade). Portanto, poder‑se‑á compreender que os livros executados, embora poucos, contribuíram para a história da ilustração portuguesa, demonstrando a qualidade técnica e o elevado nível artístico desta disciplina em Portugal.

Os estudos já realizados no âmbito do Projecto Romano Torres, que incluíram um extenso trabalho de análise bibliográfica e iconográfica, indicam que, desde final do século XIX até meados do século XX, a Romano Torres colaborou com muitos ilustradores, c. de trinta, designadamente: Alberto Souza, Alfredo Januário de Morais, Alfredo Roque Gameiro, António Pimentel Domingues, António José Ramos Ribeiro, Carlos Ribeiro, Celso Hermínio de Freitas, Eugénio Silva, José Antunes, José Borges Correia (Zeco), José Leite, José Manuel Félix, José Manuel Soares, José Pires Marinho, José Rosa, Júlio Amorim, Paulo Ferreira, Tomaz d’Eça Leal e Túlio Coelho. Sublinhamos ainda que se encontrou um número considerável de desenhos excepcionais, parte dos quais sem autoria atribuída.

Na impossibilidade de analisar todos as obras produzidas pelos artistas colaboradores, selecionámos alguns grupos autorais, diferenciados pelos períodos da sua colaboração com a editora Romano Torres, influindo na visível diferença da sua estética artística. Esta divisão surgiu depois de uma análise aprofundada das peças desta colecção, que nos ajudam a compreender melhor as diferenças e modas artísticas que decorreram durante as décadas de existência dessa editora. Procuramos assim evidenciar também características relevantes de épocas diversas, assumindo que as ambiências artísticas influenciam os percursos artísticos. Uma tendência torna‑se referência obsessiva no contexto artístico, a modernização da sociedade e da cultura:

“Aspectos temáticos, gráficos, imagens culturais, tudo funcionava em bloco para forçar a idade a uma modernização, no sentido de lhe impor novos padrões de comportamento, de elegância e de urbanidade, que obviamente ela ainda não possuía, como as imagens reais muitas vezes traduziam” (Lobo, 2009: 35).

Figura 2. Ramos Ribeiro, tinta-da-china com guache branco, s.d.

Fonte: Espólio de Francisco Noronha e Andrade.