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SÁTIRA E COMÉDIA

No documento Erasmo de Roterdã e a pedagogia da satira (páginas 170-176)

DA SÁTIRA COMO MÉTODO PRIVILEGIADO DE EDUCAÇÃO À PEDAGOGIA A PARTIR DE CATEGORIAS LINGÜÍSTICAS

3.3 SÁTIRA E COMÉDIA

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ERASMI, p. 318. Carta 137, de Erasmo a Antônio de Luxemburgo, de 1500. *Ser um menino vigoroso, dotado de uma alma excelente acha-se em Sab, 8,19. *Um infecto contaminar (afferrat) o outro se encontra em Sêneca,

Epístolas, I, 7. 7. *Quem toca no pez (piche) ficará manchado encontra-se em Eclo, 13,1.

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ERASMI, p. 398. Carta 180, de Erasmo a João Paludanus, de 1504 “Nam laudator, nisi eximie doctus, officit quoque; at reprehensor etiam parum eruditus aut admonet quod te suffugerit aut ad defensionem recte dictorum expergefacit, et aut doctiorem facit aut certe reddit attentiorem. Proinde dispeream nisi mihi Momum unum malim sanus quam decem Polyhymanias.” *Políminia: Musa que presidia à ode.

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Nosso propósito com esta categoria é mostrar que a sátira erasmiana difere da comédia apenas por ser entendida por Erasmo como construtiva e pedagogicamente superior.

Principiemos pela antítese da comédia, a tragédia. Visto que entenda que o que agrada a uns não agrada a outros, pretenda tanto quanto isso possa ser feito satisfazer a todos e não queira deixar nada sem experimentar, abandonando todo seu antigo escrúpulo e dando muito mais razão ao candor e à perspicuidade, Erasmo traduz a tragédia Ifigênia, de Eurípides.440 São por duas razões que Erasmo traduz tragédias. A primeira, por saber que o estilo cômico não agrada a todos e querer a todos agradar. A segunda, porque sua curiosidade de erudito quer provar todos os gêneros de linguagem. Para isso, tem que vencer seus escrúpulos. Fica patente que a tragédia não é o seu estilo preferido. Contudo, ele encontra na tragédia pelo menos duas características da linguagem alegre e livre. A primeira é o candor, isto é, a candura, a suavidade, a afeição, o divertimento, o jogo, o prazer, a liberdade; a outra é a perspicuidade, qual seja, a clareza, a erudição, a oratória, a eloqüência.

Afeito à linguagem alegre e livre, Erasmo, ao defender seu Elogio da Loucura, dá destaque à comédia, justificando-a por ela ter sempre existido.

Porque há tantos séculos Homero brincou com a Batracomiomaquia, Maro com O Mosquito e o Moretum, Ovídio com A nogueira; porque Polícrates louvou a Busíris e por isso foi corrigido por Isócrates, Glauco a Injustiça, Favorino a Tersites e a Febre Quartã, Sinésio a Calvície, Luciano a Mosca e o Parasita; porque Sêneca brincou com a Apoteose de Cláudio, Plutarco com o diálogo de Ulisses e Grilo, Luciano e Apuleio com o Asno, e não sei quem com o testamento do porquinho Grunnius Corocotta, que São Jerônimo memora.441

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ERASMI, p. 420. Carta 198, de Erasmo ao leitor, de 1506.

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ERASMI, p. 460-461. Carta 222, de Erasmo a Thomas More, em 1511. “Cum ante tot secula ‘Batraxomiomaquías” luserit Homerus, Maro Culicem et Moretum, Nucem Ovidius; cum Busyridem laudarit Polycrates et huius castigator Isocrates, iniustitiam Glauco, Thersiten et quartanam febrim Fovorinus, calvitium Synesius, muscam et parasiticam Lucianus; cum Seneca Claudii luserit ‘apotheosis’, Plutarcus Grylli cum Ulysse dialogum, Lucianus et Apuleius Asinum, et nescio quis Grunii Corocottae porcelli testamentum, cuius et divus meminit Hieronumus.” *Erasmo faz as citações de Batraxomiomaquías e apotheosis em grego. *Polícrates: Sofista grego, que escreveu Elogio a Busíris (Rei lendário do Egito que, segundo a fábula, mandava matar todos os estrangeiros que penetravam em seu reino). *Isócrates (436 – 338 a.C.): Orador e retórico grego. Autor de discursos judiciais, cartas, de um Panegírico a Atenas. Num discurso intitulado Busíris, Isócrates reprova o sofista Polícrates por ter elogiado esse tirano mítico. *Favorino (séc. I d.C. – 135): Retórico e sofista gaulês que, segundo Erasmo, fez o Elogio a Tersites (o mais feio, covarde e insolente dos soldados helenos que lutaram em Tróia, que foi castigado por Ulisses, o Odisseu grego) e Elogio da febre quartã. *Sinésio de Cirene (c. 365 – 415): Filósofo e poeta grego. Entre outras obras, ele escreveu Elogio da Calvície, agradável brincadeira que responde ao Elogio da Cabeleira de Díon Crisóstomo (c. 40 - c. 110, retórico grego, pregador cínico e defensor do estoicismo). *Grilo: Que em grego quer dizer porco, é o companheiro de Odisseu que foi transformado em porco pela feiticeira Circe. *Lucius ou O

asno é uma obra incertamente atribuída a Luciano, talvez um diálogo mais antigo que serviu de base para O asno de ouro, de Apuleio (nascido acerca de 125 d.C., platônico pitagorizante que faz parte do platonismo médio). *Grunnius

quer dizer resmungão; Corocotta é um animal da Etiópia que se parece com a hiena e com o porco;.Grunnius Corocotta, portanto, quer dizer porco resmungão. Aparece em São Jerônimo, XII Comm. Esaiae, T. V, p. 154. Testamento burlesco que data do século III, que servia para divertir os estudantes.

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Enquanto forma de linguagem alegre e livre, a comédia é de uso comum na cultura clássica, portanto, nada há de se estranhar em usá-la. Todavia, o estilo preferido de Erasmo é a sátira.

Aliás, a sátira de Erasmo é por vezes erroneamente comparada à antiga comédia: “[...] e clamarão que nós referimos a antiga comédia ou a uma espécie de Luciano e mordicante a todos acusamos.”442 A antiga comédia grega é tão abusada que cita os nomes das pessoas, sem que a lei proíba, daí sua fama de mordacidade. Na mesma direção seguem tanto a nova comédia grega quanto a sátira latina. Mas, a sátira erasmiana se propõe absolutamente diferente delas. Assim, como diz Erasmo, acusá-la de mordacidade é calúnia.

Contudo, Erasmo aproveita a liberdade dos antigos: “Na verdade, aqueles a quem a leveza e o divertimento do argumento ofendem, que pensem que eu quero que isto seja não meu modelo, mas feito muitas vezes já igual aos grandes autores de outrora [...]”443 Nessa defesa de Erasmo da

Moria, conquanto a sua sátira seja diferente da antiga comédia, ele procura justificá-la a partir da

liberdade encontrada nos autores satíricos da Antigüidade, como um meio de melhor torná-la aceita por seus detratores.

Nessa perspectiva, Erasmo busca no Toxaris, de Luciano a riqueza de linguagem, asseverando que o diálogo, traduzido por ele, não haverá de ser menos agradável que frutífero se alguém observar a beleza que de tal modo está posta nos personagens; o discurso do grego Menipo quão todo tem uma espécie de sabor dos gregos, é afável, faceto e festivo; pelo contrário, a fala do cita Toxaris quão toda aspira certo cítico, é simples, confusa, áspera, apressada, séria e forte.444

A sátira erasmiana bebe também na fonte do Pseudomante, de Luciano. Prestes a partir para a Itália, para que Renato d”Illiers se lembrasse dele, Erasmo envia-lhe essa obra, que tinha traduzido. Ele diz que o Pseudomante era celeradíssimo, mas ninguém era mais útil que ele, por depreender e acusar as imposturas de alguns, que até hoje em dia, com mágicos milagres, com falsa religião, com dissimulados condões e com outros gêneros dessas ilusões costumam fazer imposturas ao vulgo. Ele espera que um homem tão erudito, de tão grande autoridade e de tão

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Id., Ibid., p. 460. “[...] nosque clamitabunt veterem comediam aut Lucianum quempiam referre atque omnia mordicus arripere.”

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Id., Ibid., p. 460. “Verum quos argumenti levitas et ludicrum offendit, cogitent velim non meum hoc exemplum esse, sed idem iam olim a magnis auctoribus factitatum [...]”

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ERASMI, p. 417. Carta 187, de Erasmo a Ricardo Foxe, de 1506. *Cita: Indivíduo dos Citas, antigos povos nômades do norte da Europa e da Ásia. *Menipo de Gádara (Séc. III a.C.): Filósofo satirista grego, criador da sátira que levou o seu nome: Satura Menipéia (Satura Menippeae). Os seus escritos enchiam treze livros e atacavam, mediante as mais diversas ficções, a loucura dos homens e também os sistemas dos filósofos.

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fecundos costumes, como Renato, leia esse opúsculo, não só com muito fruto, mas também com muito prazer e deixe espaço, de bom grado, para essas frutíferas nugas nos seus árduos negócios. “Porquanto, o que quer que seja, quer do negro sal que tributam a Momo, quer do branco que dedicam a Mercúrio, tudo isso tu poderás descobrir no único Luciano.445 O opúsculo cômico de Luciano é crítica severa, que deve ser lido para que produza muitos frutos e bastante prazer. Por isso, ele é salgado, quer por uma sátira mais sarcástica, quer por uma sátira mais leve. Por sua vez, é exatamente essa sátira que o torna agradável e fecundo, divertido e útil, prazeroso e frutífero.

Erasmo destaca as vantagens da comédia. Ele conta a Cristóvão Urswickque ingressando no domínio das musas gregas, porque os jardins das musas reverdecem até no meio da bruma, de repente, nesse lugar, entre muitos, com carícias por sua graça vária, o flósculo de Luciano lhe sorriu diante dos demais: “Colhido não com a unha, mas com o cálamo, eu o te remeto, não somente pela agradável novidade, pela cor vária, pela venusta espécie, não só pelo odor de tal modo fragrante, mas também pelo suco presentâneo, salubre e eficaz.”446 Em primeiro lugar, a inspiração vem das musas e não de outro lugar; as musas gregas são singulares fontes de inspiração; entre os escritores gregos destaca-se Luciano; das obras de Luciano uma das mais importantes é a comédia O Galo. Em segundo lugar, Erasmo colhe a obra cômica de Luciano do jardim das musas não com as mãos, mas com a caneta, pois este é seu instrumento pedagógico; ele busca interpretar aquilo que existe de mais singular, pois não é qualquer assunto que sua caneta se põe a escrever; ele privilegia a linguagem brilhante, pois isso é o que mais chama a atenção das pessoas; ele prefere destacar aquilo que é antigo, pois o que está arraigado na cultura é mais fácil de ser aceito, como ele disse em cartas anteriores. Em terceiro lugar, Erasmo faz isso porque a linguagem cômica tem uma fragrância especial, o que atrai irresistivelmente os homens; o que dá maior realce à linguagem cômica, a sua seiva, é que ela é presentânea, com o significado de rápida, pois diz com leveza as verdades, e no sentido de eficaz, o que é garantido pela sua leveza; a linguagem cômica é saudável, pois ela só faz bem à saúde mental das pessoas,

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ERASMI, p. 431. Carta 199, de Erasmo a Renato d’Illiers, de 1506. “Porro quicquid est vel nigri salis quem Momo tribuunt, vel candidi quem Mercurio asscribunt, id omne in uno Luciano compiosissime reperias licebit.” *Renato d’Illiers: Ele foi bispo de Chartres de 1492 até sua morte em 1507. *Pseudomante ou O falso Adivinho (Pseudomantes), obra de Luciano de Samósata. *Condão (Condonatio): poder misterioso ou virtude especial, a que se atribui influência benéfica ou maléfica; dom, graça, presente, faculdade.

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ERASMI, p. 425. Carta 193, de Erasmo a Cristóvão Urswick, de 1506 “Eum non ungue sed calamo decerptum ad te mitto, non solum novitate gratum, colore varium, specie venustum, nec odore modo fragrantem, verum etiam succo praesentaneo salubrem et efficacem.” *Meio da bruma: Pleno inverno.

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salubridade que lhe garante a eficácia; em retorno, por sua leveza e por sua salubridade a linguagem cômica é eficaz. É a eficácia, portanto, a principal característica dessa linguagem. E onde se lê comédia, queira se ler sátira!

Além disso, por uma lado, existem docilidade e utilidade na comédia. O caráter precípuo da linguagem cômica aparece sinteticamente expresso na frase seguinte de Erasmo: “Levou todo ponto (como diz Flaco) quem misturou o doce com o útil.”447 O grande segredo da eficácia da linguagem cômica – e da satírica - é o fato dela unir a agradabilidade com a utilidade.

Por outro lado, há dicacidade na comédia. “Porque, em minha opinião, certamente ninguém conseguiu de outro modo, como nosso Luciano aqui, restituir a dicacidade da antiga comédia, mas sem a petulância [...]”448 Na opinião de Erasmo, ou seja, é exatamente isso que ele pensa, Luciano é superior a todos porque, tomando como exemplo a sua obra O Galo, este restitui da antiga comédia a sua característica mais marcante, qual seja, a dicacidade, a mordacidade, a sátira, mas sem petulância. Ou melhor dizendo, não é porque Luciano restitui a sátira da comédia antiga que ele é o maior, mas porque retira da sátira o seu caráter de atrevimento, de afrontamento, de ofensa, de mordacidade, para lhe dar uma outra face, que é de prazer e de utilidade.

Mesmo assim, a comédia é sal. “[...] Deus imortal, com que sagacidade, com que graça ele deslumbra todas as coisas, com que nariz ele tudo suspende, como ele esfrega completamente todas as coisas com maravilhoso sal [...]”449 O verdadeiro sátiro, como o faz Luciano – e Erasmo - é aquele que é sagaz; aquele que é esperto porque tem um fino faro para suspender todos os assuntos donde eles estão alojados e trazê-los à baila; aquele que suspende os temas não só sagazmente, mas também com graça, com charme, com beleza; aquele que tempera todas as coisas com sal, com zombaria, com ironia; aquele cujo sal não é salgado a ponto de fazer mal às pessoas, pelo contrário, é maravilhoso, admirável. Tal qual Erasmo concebe a sátira: sagaz e graciosa, ou seja, erudita e irônica, agradável e divertida! Com isso, ele retira todo caráter pesado e negativo da sátira para apresentá-la como construtiva, o que é o mesmo que dizer, pedagógica.

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Id., Ibid., p. 425. “Omne tulit punctum (ut scprisit Flaccus) qui miscuit utile dulci.” *A frase de Horácio encontra- se em Arte Poética, 343.

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Id., Ibid., p. 425. “Quod quidem aut nemo, mea sententia, aut noster hic Lucianus est assecutus, qui priscae comoediae dicacitatem, sed citra petulantiam referens [...]”

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Id., Ibid., p. 425. “[...] Deum immortalem, qua vafricie, quo lepore perstringit omnia, quo naso cuncta suspendit, quam omnia miro sale perfricat [...]”

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A despeito disso, a comédia é sarcástica. “[...] ou nada atingindo pelo caminho que não fira em alguma parte com o sarcasmo [...]”450 Contudo, quando Erasmo busca a sátira no seu limite, não é para destacar o sarcasmo, mas para retirar dele o seu elemento construtivo, uma vez que pretende que sua sátira seja superior a de Luciano.

Contudo, é contra os mais ignorantes, mas que se põem como formadores de mentalidade por excelência, que a sátira sarcástica de Luciano se dirige. Por isso, Erasmo diz que ela é hostil particularmente aos filósofos pitagóricos e platônicos, por causa de suas ilusões, e aos estóicos, por causa de sua intolerável arrogância. “[...] a uns ataca a picadas e a golpes, a outros com todo gênero de dardos, e isso com ótimo direito.”451 São os pseudodoutos que Luciano ataca com mais vigor, ou seja, contra estes, a sua sátira é mais mordaz, picando, golpeando, lançando dardos. No entanto, Erasmo não vê nisso algo destrutivo, inversamente, acha que Luciano está no seu justo direito, não só porque lhe é permitido agir assim, mas principalmente porque ele tem razão em satirizar assim. Satirizar é certo, satirizar com mordacidade proporcional à extensão da recalcitrância é igualmente correto. Isto quer dizer que em seu propósito pedagógico, porque ele propõe sua sátira como construtiva de qualquer modo que a apresente, há uma gradação na sua aplicação, de moderada, aos ouvidos menos duros, a acerba, aos ouvidos moucos.

O cômico é tido por blasfemo por aqueles a quem atinge. “Daqui é distribuído a ele o vocábulo de blasfemo, isto é, de malédico, mas sem dúvida por aqueles que ele tocara a úlcera.”452 São exatamente àqueles aos quais a sátira atinge em seus vícios, e que não pretendem se emendar, que ela parece blasfêmia, maledicência, ou seja, negativa, destrutiva. Parece, mas não é, e até aos recalcitrantes, Erasmo quer mostrar que a sátira é prazer e utilidade, e que um sátiro não é um maldizente, mas um arauto da verdade.

A comédia de Luciano se estende ao religioso: “Com igual liberdade, a cada passo ele se ri até dos deuses e os lacera, de onde lhe foi atribuído o cognome de ateu, sem dúvida, especioso por este nome, porque ele foi atribuído pelos ímpios e pelos supersticiosos.”453 A sátira não se restringe ao profano, mas se estende ao sagrado. O sátiro, brinca e critica as falsas concepções

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Id., Ibid., p. 425. “[...] nihil vel obiter attingens quod non aliquo feriat scommate [...]”

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Id., Ibid., p. 420. “[...] hos punctim ac caesim, hos omni telorum genere petit, idque iure optimo.”

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Id., Ibid., p. 425. “Hinc illi blasphemi, hoc est maledici, vocabulum addidere, sed hi nimirum quorum ulcera tetigerat!”

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Id., Ibid., p. 425. “Pari libertate deos quoque passim et ridet et lacerat, unde cognomen inditum “athéos” speciosum profecto vel hoc nomine quod ab impiis ac supersticiosis attributum.” *Especioso (speciosus): Tem dois sentidos diametralmente opostos. Por um lado quer dizer tanto aparências enganadoras, enganoso, ilusório; quanto, que, com aparência de verdade, induz em erro (aplicado aos ímpios); e por outro lado: atraente, belo, formoso, sedutor (aplicado a Luciano).

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sobre as coisas divinas, mas não deve ser chamado de ateu, pois isso revela impiedade e superstição. O apelido de ateu é especioso ao sátiro. Tanto no sentido de que isso é falso, pois significa total incompreensão do que seja a sátira, por parte daqueles que se consideram, mas não são nada santos e sim verdadeiros ateus. Quanto de que é um título louvável para aquele que o recebe, porquanto é dado pelos ímpios e supersticiosos que nada sabem sobre a verdade. Por isso, sua crítica, que é verdadeira, passa aos ignorantes como falsa. Mas, Erasmo resgata o verdadeiro sentido da sátira a ponto de dizer que ser chamado de ateu, o que é falso, passa a ser um elogio.

Enfim, a comédia é uma forma de dizer as verdades rindo. Erasmo diz de Luciano:

Ele obtém tanta graça para dizer, tanta felicidade para inventar, tantos dardos para jogar e azedos para morder, de tal maneira ele acaricia com alusões, de tal maneira ele mistura coisas sérias com nugas e nugas com coisas sérias, de tal maneira rindo ele diz as verdades e ele ri ao dizer a verdade [...]454

O diálogo cômico de Luciano é uma linguagem graciosa, ele é fruto de uma grande capacidade inventiva. Ele tem tantos dardos e coisas azedas para jogar, tantas verdades dolorosas para revelar, isto é, tantas sátiras para dizer, mas seu grande segredo é que ele diz isso, tanto acariciando com alusões, quanto misturando coisas sérias e coisas divertidas. Isto porque a linguagem dialogal e cômica como a linguagem satírica é uma forma de rir das verdades e de rir ao dizê-las, mas é também um modo de dizer as verdades rindo. Ou seja, rir é o melhor jeito de dizer as verdades. Tal é a superioridade da linguagem figurada em geral, tal é a superioridade da linguagem cômico-satírica em particular! A isso se soma que Erasmo pretende que sua sátira seja superior a toda comédia até então historicamente produzida, e a toda forma de linguagem figurada ou não, pelo fato dele, por exemplo, sem afrontas, poupar em suas obras o nome dos seus detratores, uma vez que ele a propõe pedagogicamente construtiva.

No documento Erasmo de Roterdã e a pedagogia da satira (páginas 170-176)