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SÁTIRA E CORREÇÃO

No documento Erasmo de Roterdã e a pedagogia da satira (páginas 57-62)

DA SÁTIRA COMO MÉTODO PRIVILEGIADO DE EDUCAÇÃO À PEDAGOGIA A PARTIR DE CATEGORIAS PARADIGMÁTICAS

2.1 SÁTIRA E CORREÇÃO

Com esta primeira categoria de análise, pretendemos mostrar que a sátira de Erasmo, fruto de seu contínuo esforço de revisão, não é eventual, mas intencionalmente pedagógica.

Tomemos de início a grande importância que Erasmo atribui à imprensa e aos impressores. Nesse escopo, pelas luzes que Aldo Manúcio traz para ambas as literaturas, grega e latina, com sua arte e com suas impressões, restituindo e propagando os bons autores com o máximo cuidado e pouco lucro, Erasmo o exalta. Isto porque ele exerce o exemplo de Hércules com trabalhos belíssimos, os quais hão de lhe trazer a glória imortal, mas que serão mais frutíferos aos outros que a ele próprio.133 Mais que trazer renome, a impressão de obras é de utilidade ímpar para todos aqueles que pretendem se dedicar ao estudo das letras e para que estas cresçam não só em quantidade, mas, principalmente, em qualidade, e cresça também seu poder de ação e de transformação dos costumes humanos. Essa é a importância que Erasmo dá à imprensa e aos impressores, sem os quais suas obras seriam pouco conhecidas e o efeito de sua sátira provavelmente bem menor.

Por valorizar imprensa e impressores, Erasmo autoriza seus editores a fazerem correções em suas obras. Por exemplo, dissentindo e mostrando as falhas das traduções até então realizadas por outros autores de Hécuba e Ifigênia, de Eurípides, ele permite que Aldo faça as mudanças necessárias para a reedição de sua própria tradução, solicitando que o amigo termine a reedição de Ifigênia o mais cedo possível; para que possa dá-la como presente aos doutos amigos, porque

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ERASMI ROTERODAMI, Des. Opus epistolarum: Tom. I. Per P. S. Allen; M.A., 1906, p. 437-438. Carta 207, de Erasmo a Aldo Manúcio, de 1507. *Hércules: O Héracles grego. Herói que realizou façanhas que ficaram conhecidas como Os Doze Trabalhos de Hércules.

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tem amizade com todos aqueles que sabem ou professam as boas letras.134 É esse amor pelas

letras que orienta toda produção teórica de Erasmo, sua postura frente aos impressores e, igualmente, sua sátira.

Aquele que autoriza correções é o mesmo que é visto como corretor crítico. O fato de Erasmo costumar ser muito crítico na correção dos textos é tão conhecido de muitos que, por exemplo, Cornélio Gerard conta-lhe - o que se constitui certamente numa caricatura de Erasmo como sátiro – o que Martin disse dele:

Então, na loucura de sua demência adquirida por esta ocasião, voltando-se enfim para mim, ele insinua que tu certamente leste nossos carmes, mas - quando tu os leste - a erguer uma cábrea fronte, a anunciar um nariz de rinoceronte, a rir, a corroer (para usar suas palavras), e a rasgar tudo ao redor.135

Considerado corretor crítico é assim que primeiramente o próprio Erasmo se apresenta. “E que não tenha pudor de barbarismo, se alguém nele incidiu; tu sentirás em nós corretores, não irrisores.”136 Erasmo se define não como escarnecedor, mas como aquele que corrige os erros alheios.

Por isso, Erasmo enfatiza a importância da correção. Ele alerta que os que parecem não amar os livros os mantêm intactos em seus estojos, mas aqueles que os amam, exatamente pelo diurno e noturno uso, os sujam, os amassam, os desgastam, impregnam aqui e acolá as margens com anotações de vários tipos, e preferem uma composição com correções a uma sem nenhum vestígio de correção. É isso, completa ele, que precisa ser feito com Terêncio e todos os outros autores, quando se deseja aprender, a verdadeira língua romana.137 Erasmo, corretor, prega o máximo esforço de contínuas correções para que os escritos saiam o mais perfeito possível e com o intento de apresentar o melhor escrito para os melhores estudos.

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ERASMI, p. 209-212. Carta 209, de Erasmo a Aldo Manúcio, de 1507. *Eurípides (480 - 406 a.C.): Poeta dramático grego, autor de inúmeras tragédias. *Hécuba (esposa do rei Príamo e mãe de Heitor e Páris, heróis troianos da Guerra de Tróia) é uma tragédia de Eurípides traduzida por Erasmo. Na carta a João Botzheim, Erasmo escreve que ter dedicado esta obra a William Warham foi de bom agouro para sua notoriedade e conta como se deram os fatos (p. 05). Essa obra foi revista por mais de uma vez e em 1523, Erasmo revisou-a pela última vez. *Ifigênia em Áulide (Iphigenia in Aulide): Essa tragédia atribuída a Eurípides e traduzida por Erasmo, tem como personagem central Ifigênia, filha de Agamêmnon (herói argivo da Guerra de Tróia).

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ERASMI, p. 101. Carta 021, de Cornélio Gerard a Erasmo, de 1489. “Hac igitur occasione dementiae suae nactus vesaniam, demum ad me regrediens insinuat te carmina quidem nostra legisse sed, ubi legeras, caperatam frontem ducere, rhinoceronteum nasum portendere, deridere, corrodere (ut suis verbis utar), ea circumquaque dilaniare.” *Martin: Enviado de Cornélio Gerard, que levara um poema de Cornélio a Erasmo e um poema deste para aquele.

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ERASMI, p. 89. Carta 015, de Erasmo a Servatius Rogerus, de 1488. “Nec te barbarismi, si qui inciderit, pudeat; senties nos correctores, non irrisores.”

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Com efeito, correções exigem um desgastante trabalho. Assim, ao dizer que Rogério Wentford faz tanto caso de suas nugas, Erasmo completa:

Se bem que eu julgo de mais interesse à minha fama se estas [nugas] não forem nem editadas nem transcritas por quem quer que seja, a não ser que sejam limadas por um grande trabalho; o qual eu odeio pior que o cão e a serpente, sobretudo porque daqui eu vejo que não receberei nenhum fruto, exceto remela, senilidade prematura, fome e de tal modo pouca glória e muitíssima inveja.138

Por um lado, Erasmo é irônico em relação àqueles que de alguma forma se opõem a suas obras. Por outro, mesmo que mais desgastante que gratificante, ele se propõe ao contínuo ato de produzir e corrigir ainda com mais constância o que já produziu. Tal é seu desejo de perfeição para com suas obras, uma vez que não busca a glória, mas pretende contribuir efetivamente com o desenvolvimento das letras. Ou seja, ele tem uma preocupação pedagógica. Daí, não é sem motivo o seu zelo com suas obras, revisando-as: cortando, retificando, ratificando, acrescentando, reinterpretando, pois toda obra tem que ser muitas vezes corrigida antes de ser publicada. O que vale para as obras serve igualmente para a sua sátira.

Tal é o elã de Erasmo com a revisão das obras, principalmente com aquelas referentes às letras divinas: “Para emendar Jerônimo e para ilustrá-lo com nota explicativas, o ânimo me ferve de tal modo que eu me julgo inspirado por certo deus.”139

Por conseguinte, Erasmo é primeiramente censor não de obras alheias, mas de seus próprios escritos. “Todavia, nós próprios agimos como censores em nossas lucubrações e emendamos muitas daquelas que traduzimos do grego e o mesmo haveremos de fazer enquanto vivermos.”140 Erasmo é mais exigente com suas obras que com as dos outros. Esse rigor exige, não só ocasionalmente, mas durante toda sua vida, contínuas revisões. Isso quer dizer que o que está escrito, inclusive sua sátira, e o como está escrito se encontram não por acaso, mas são frutos de intenção deliberada.

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ERASMI, p. 484. Carta 241, de Erasmo a Rogério Wentford, de 1511. “Quanquam ego meae famae magis arbitror interesse, si neque edantur ista neque transcribantur a quoquam, nisi summo labore elimata; quem ego odi cane peius et angue, maxime cum videam hinc nihil recipi fructus praeter lippitudinem, senium praematurum, esuritiones ac paulum modo gloriae cum plurima invidia coniunctum.” *Rogério Wentford: Dirigiu a escola de Santo Antônio, que na época era uma das melhores de Londres. Wentford permaneceu um amigo seguro para Erasmo, que escreveu-lhe algumas cartas.

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ERASMI, p. 531. Carta 273, de Erasmo a André Ammonio, de 1513. “Ad Hieronymum emendandum et scholiis illustrandum ita mihi fervet animus ut afflatus a deo quopiam mihi videar.”

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ERASMI, p. 15-16. Carta de Erasmo a João Botzheim, de 1523. “Quamquam nos ipsi in nostras lucubrationes censores agimus, multaque in his quae vertimus ex Graecis emendavimus, idem facturi donec vixerimus.” *Lucubração (lucubratio): Trabalho prolongado e paciente feito à noite e à luz; trabalho feito ao serão; e, por extensão, significa cogitação profunda, meditação grave, elucubração, insônia, vigília.

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Porém, nem sempre Erasmo pode fazer todas as correções que deseja em suas obras - e nas dos outros - ou mesmo acompanhar todas as suas impressões, como neste exemplo:

Enviei-te minhas nugas, já impressas há um ano, e os carmes de Guilherme, nos quais te incomodarás com alguns erros. Sucede, porém, que em ambas as impressões eu sofri uma enfermidade adversa, fato pelo qual não pude corrigi-los. Mas tu os observarás facilmente.141

Se Erasmo não pode, como neste caso, corrigir sua obra é devido a um motivo alheio à sua vontade, o que evidencia, desde o início, seu extremo zelo com suas publicações.

Denominando ironicamente seus escritos de nugas, lucubrações, libelos, livretos, nênias, vigílias e termos similares, Erasmo afirma que prefere publicá-los mesmo assim, continuamente revisando-os, a nada publicar ou a publicar tarde demais um assunto que o momento exige com urgência. É o que ele censura em seus opositores que nada publicam de útil ou que publicam muito tarde ou com muitos erros, preferindo nesse meio tempo criticar aqueles que ousam escrever.142 Na verdade, ironicamente Erasmo se serve dessa linguagem figurada - pois suas obras não são nugas mas, contrariamente, são instrumentos privilegiados em sua tarefa educativa - exatamente para continuar vivo e presente junto a seu público leitor e inteiro junto a seus opositores.

Tal é a preocupação de Erasmo com as correções que por vezes são realizadas quase de uma só vez. “Porque eu, uma vez que ataquei [o tema], absorvo-o num curso quase contínuo, e em nenhuma vez eu não pude destruir o aborrecimento de corrigir.”143 Isto quer dizer que não só a elaboração, mas também, e talvez principalmente, as correções de suas obras custam vigílias a Erasmo, já que ele pretende muitas vezes terminá-las quase de uma só vez. Não é sem razão, portanto, que ele as denomine lucubrações ou vigílias. Isto quer dizer, também, que, disposto a corrigir-se, ele procura vencer o aborrecido trabalho de correção.

O rigor da correção de Erasmo é tanto que diz aplicar a si aquilo que escreveu Platão, de que quanto mais se apressa no início mais se chega atrasado no final. “Porque, tendo sido

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ERASMI, p. 167. Carta 052, de Erasmo a João Mauburn, de Paris, de 1497. “Misi ad te tum meas nugas ante annum impressas et Guillelmi carmina, in quibus aliquot mendas offendes. Evenit enim ut in utraque impressione adversa valetudine laborarem; quo factum est ut castigare nequiverim. Sed tu facile animadvertes.” *João Mauburn: Nascido em Bruxelas e educado em Utrecht, foi cônego regular de Santo Agostinho. Ele tomou parte ativa na reforma da congregação em Windesheim e na abadia de São Severino. Em 1501 tornou-se abade de Livry, perto de Paris, novamente reformada por seu impulso e morreu em Paris em 29 de dezembro do mesmo ano. *Guilherme é William Herman.

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ERASMI, p. 38. Carta de Erasmo a João Botzheim, de 1523. *Libelo: Libellus em latim significa tanto opúsculo, livreto, pequeno livro (como aqui) quanto artigo ou escrito de caráter satírico (como alhures).

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Id., Ibid., p. 03. “Ego quod semel aggressus sum, fere perpetuo curso absolvo, nec castigandi taedium unquam devorare potui.”

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precipitada a edição, a própria coisa me coage por vezes a recomeçar a obra da cabeça até o calçado.”144 Recomeçado por vezes da cabeça aos pés, isto é, do princípio ao fim, o conteúdo

exposto por Erasmo não é produzido aleatoriamente, mas é resultado de um contínuo esforço de reflexão e de revisão radicais. Podemos aduzir daí que aquilo que ele escreve e como escreve tem uma intenção bem definida. Reafirmamos, em novo patamar, que o conteúdo das suas obras é premeditado, pois é fruto de contínuas revisões, portanto, também o estilo satírico o é. A sátira põe-se então como algo quisto como resultado de uma intenção, sendo as mesmas retomadas e enriquecidas a cada revisão.

Erasmo evidencia seu maior apreço pelo trabalho de revisão ao comparar uma nova edição de uma obra com a idéia de perfeição.

Pelo contrário, assim como nós mesmos sempre agimos enquanto vivemos para nos tornamos melhores, quão não menos cessaremos de devolver nossas lucubrações com mais limas e mais locupletações, quanto deixaríamos de viver. Do mesmo modo que ninguém é tão bom que não possa se tornar melhor, assim nenhum livro é tão elaborado que não possa se tornar mais perfeito.145

De fato, o trabalho de revisão das suas obras é parte integrante da vida de Erasmo numa busca contínua e nunca satisfeita da perfeição que raia para muitos os limites do perfeccionismo, mas que, contrariamente, entendemos como decorrente de seu princípio de vida, qual seja: ferrenha e conseqüente busca da piedade (letras divinas) e da virtude (letras humanas), e permanente postura de serviço (utilidade, moral).

Entretanto, correção não quer dizer defeito. Quando re-experimenta um assunto, Erasmo afirma para João Colet que isso não significa que tenha mudado de opinião ou esteja agora melhor instruído que antes, pelo contrário, depois de exposto o conflito, o que estava

desorganizado ele pode então expô-lo um pouco mais digerido e mais munido.146 Daí que as

contínuas revisões de Erasmo são aprimoramentos da mesma idéia inicial. De idêntico modo, a

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Id., Ibid., p. 03. “Nam aeditione praecipitata res ipsa me cogit nonnunquam totum opus a capite usque ad calcem retexere.” *Precipitada (praecepitata): Terminada, mas de uma forma muito apressada.

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Id., Ibid., p. 37-38. “Imo quemadmodum ipsi semper hoc agimus dum vivimus, ut nobis ipsis reddamur meliores, ita non prius desinemus nostras lucubrationes elimatiores ac locupletiores reddere, quam desierimus vivere. Quemadmodum nemo tam bonus est quin possit fieri melior, ita nullus liber tam est elaboratus quin reddi possit absolutior.” *Sobre as inúmeras obras de Erasmo e sobre aquilo que ele fala acerca do seu trabalho de revisão delas, cf. ainda: Carta a João Botzheim, p. 09, 12, 13, 14, 16, 33, 34, 42, 43; Carta 071, p. 199; Carta 126, p. 293-294; Carta 152, p. 356-357; Carta 167, p. 377-378; Carta 173, p. 382; Carta 188, p. 417-420; Carta 192, p. 423-424; Carta 208, p. 439-440; Carta 269, p. 521, 522, 525; e Carta 278, p. 537.

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ERASMI, p. 250. Carta 109, de Erasmo a João Colet, de 1499. *Erasmo está debatendo com João Colet sobre questões bíblico-teológicas. Depois disso, ele passa a comentar com Colet sobre sua interpretação à tristeza de Cristo frente à morte no Jardim das Oliveiras.

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sua sátira que não é eventual, mas intencional, corrigida, re-corrigida e aperfeiçoada por contínuas revisões é a mesma sátira original com nova roupagem.

Apesar da postura de correção estar tão solidamente enraizada em seu espírito, Erasmo pode dizer que “Contudo, durante essas coisas nada de novo me veio à mente e não me arrependi de nada daquilo que eu disse.”147 O que Erasmo diz é deliberadamente dito, por isso não há razões para se arrepender do que e como se disse. Ou seja, não há porque se arrepender de ser satírico, pois a sátira lhe é deliberada, intencionalmente pedagógica.

No documento Erasmo de Roterdã e a pedagogia da satira (páginas 57-62)