• Nenhum resultado encontrado

2 A ROÇA DA ESTÂNCIA

2.2 CENAS HISTÓRICAS

2.2.2 Século XX: palco para muitas histórias e a ocupação dos vales da Serra Geral

Praia Grande, como parece à primeira vista, não fica no litoral, mas ao pé da Serra Geral, no sudoeste do município de Araranguá. Toma o nome de um grande despraiado existente no Rio Verde [rio Mampituba], aí denominado Rio Praia Grande. Não é uma praia comum, mas um imenso lençol de seixos rolados. Nesta zona entende-se por "praia" também o cascalho só, pois é frequente se ouvir a expressão: "levaram praia para a estrada", ou "assoalharam a estrada de praia", quando querem exprimir a atividade do governo em pavimentar com este material no leito da rodovia. (REITZ, 1948, p. 87)

Durante o século XX, ocorreram grandes transformações na sociedade brasileira. Algumas invenções modificaram radicalmente a sociedade não só nos zonas urbanas como também nas zonas rurais. Em uma medida de concepção hegemônica de progresso durante o século XX, o meio ambiente passou a ser afetado com mais intensidade motivados por ideais progressistas de desenvolvimento. Nesse século, entre tantas coisas, houve um crescimento das cidades, a invenção e popularização do automóvel, as redes de energia elétrica, a industrialização, o operariado e as classes, a rádio e a televisão para as comunicações. Tantas transformações modernas que iriam iniciar um novo modelo social, político e econômico com capacidade extrema de influenciar as edificações culturais. As máquinas e a informação midiática iriam invadir as comunidades a tal ponto nunca antes imaginado. No Brasil, não só as populações urbanas e rurais vão sentir o peso do “progresso”, como também o espaço natural vai ser modificado a partir de ideais de modernização.

Na primeira metade do século XX as duas grandes Guerras Mundiais agitaram o globo. Primeiro fez com que a industrialização se dinamizasse, depois fez com que o espaço rural se tornasse mais produtivo para abastecer os campos de guerra e as grandes metrópoles emergentes. Foi assim que, em certa media, a guerra foi sentida no Brasil, em meio ao surto de industrialização e aumento da produtividade agrícola para exportação. Numa visão geral, com a dinamização urbana, novas

estradas, e agora automotivas, passaram a ser construídas. Conjuntamente, a energia elétrica, o rádio e a televisão, aos poucos, começam a ser inseridas nos lares das mais diversas populações, emergindo assim, num novo sistema social e cultural.

As cidades brasileiras, nos anos pós-guerra desenvolveram-se com a industrialização e começaram cada vez mais a ser atrativas para as populações interioranas sobrepondo valores e interesses sobre as zonas rurais, ao qual como consequência, apareceram com mais intensidade as migrações internas, ou seja, o êxodo do campo para a cidade. Para Tedesco (2004, p. 281), a sociedade brasileira em geral e o meio rural em particular passaram, entre a década de 1950 e o final da década de 1960, “por profundas transformações sociais. Foi um período por excelência em que a sociedade foi induzida a se modernizar em vários âmbitos produtivos, de convivência social e familiar, de concepções de vida e de sociedade”. Os inventos técnicos tomaram uma tal profusão que o imaginário e as práticas cotidianas das mais diversas sociedades “passaram a ter, como uma de suas referências básicas, a convivência com as máquinas de todos os tipos e para todas as finalidades, integrando-se de tal maneira aos hábitos humanos que sua presença tornou-se naturalizada e inquestionável” (LOHN, 1999, p. 41).

As cidades foram impulsionadas pelo avanço tecnológico e industrial principalmente a partir de 1930 e o espaço rural dinamizou-se com a abertura de estradas. O campo pastoril também se alastrou no lugar da vegetação nativa, mais solos deixaram de ser incultos. Com a retirada da mata favoreceu o aumento das roças de todos os tipos, da agricultura familiar ao agronegócio. Esses foram aspectos que nortearam o cotidiano das populações durante boa parte do século XX. A tecnologia, o progresso e a industrialização também passaram a fazer parte dos planos governamentais. Por exemplo, em algumas regiões de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, tais como os Aparados da Serra, chegaram, principalmente na década de 1940 as madeireiras equipadas com máquinas que serviam com mais eficácia para a derrubada da mata nativa. A introdução de caminhões para o transporte da madeira, assim como a construção de pontes aceleraram o processo de retirada das árvores em diferentes ambientes.

Politicamente foi em 31 de dezembro de 1943 que foi criado o Distrito de Praia Grande que passou a categoria de Vila. A emancipação veio na lei Nº. 348 de 21 de junho de 1958 e a instalação do município deu-se ainda em junho daquele mesmo ano. Como é sabido Praia Grande não é um município muito antigo. Acredita-se que a “colonização de Praia

Grande, deu-se por volta de 1890, pelos portugueses” (RONSANI, 1999. p. 31) e que foi “rota de passagem de alguns tropeiros” (CORVINO, 1999, p. 12). Antes disso a região de Praia Grande, serviu de acesso à serra através de picadas que subiam as encostas rochosas e de condensada vegetação nativa. Perto de onde hoje é o centro do município, no caminho que liga Praia Grande a Jacinto Machado existe nos paredões de encosta da Serra Geral, depois dos cânions Malacara e Churriado, uma trilha muito antiga, descrita por alguns moradores dos bairros Fortaleza, Vista Alegre, Cachoeira e Três Irmãos, chamam-na de “trilha dos porcos”:

Toda a história de Três Irmãos começa bem cedo. Por volta de 1820 já tínhamos o 1º casal residente, Jacintho Lopes e Rosa de Jesus, ambos descendentes de Portugueses e naturais de Santa Catarina. Vindos provavelmente de Laguna e nascidos no final do século antepassado. Nasceu ali seu filho João Jacintho de Sousa em 1826 mais tarde casando com Maria Brandina Silveira que nasceu também no início do século passado, João Jacinto viveu 110 anos e faleceu em 22/01/1916. No final do século passado Três Irmãos teve um rápido crescimento. Entre os anos 1895 a 1905 tudo parecia se desenvolver, havia algumas casas de secos e molhados, ferraria e atafona de moer milho e outros. Timbopeba que estava com toda força comercial até final do século passado perdia rapidamente para Três Irmãos e em seguida a Vila Rosa teve o domínio total, por estar mais próxima ao pé da serra. (RONSANI, 1999, p. 102)

Essa memória do povoamento da região é importante para entender a trajetória dos trabalhadores rurais que chegaram no Fundo do Rio do Boi. Muitos dos primeiros habitantes da região, que chegaram no início do século XX, ou desciam a serra pelas então já conhecidas picadas, trilhas que passavam animais de carga, como mulas e cavalos

,

ziguezagueando pelas encostas ou vinham do litoral “subindo” pelas margens do Rio Mampituba. Por volta dos anos 1920, antes da Vila Molha Coco, atual Vila Rosa em Praia Grande (SC), tornar-se uma referência comercial de produtos secos e molhados, existia um mercado referência para as poucas famílias que habitavam a região, desde Espigão de Barro (atual Vila Cachoeira de Fátima em Praia Grande) até Passo do Sertão

(atual município de São João do Sul, SC), esse centro comercial, que não passava de um lugarejo para trocas e negócios comerciais estava localizado em Timbopeba. O pároco Raulino Reitz registrou na sua obra

Paróquia de Sombrio, ensaio de uma monografia paroquial, publicado no ano de 1948:

Timbópeba é o nome de um cipó venenoso existente nesta localidade, e que, segundo os antigos foi a causa da morte de muitas cabeças de gado. No ano 1860 já temos moradores em Timbópeba. Em todo Sul do Município de Araranguá, foi a pioneira do comércio com a serra. A praça comercial, atualmente sediada em Praia Grande, estava localizada na Timbópeba no século passado e neste século até o ano de 1917. Era o entreposto comercial entre a serra e o Sul do município de Araranguá. Forte movimento de tropas da serra rumavam para esta localidade. Aí deixavam os produtos serranos do Rio Grande do Sul e levavam os de baixo, a saber, açúcar, aguardente, banana, artefactos diversos, etc. Ainda hoje há aí vestígios de tanques em que se depositava a aguardente. (REITZ, 1948, p. 78)

Acredita-se que pelas proximidades de Três Irmãos e Timbopeba que a “trilha dos Porcos” era muito usada para realizar essas trocas comerciais. O pároco Raulino Reitz descreve dois dados curiosos que condizem com a história de Praia Grande. O primeiro, que a partir de 1917 houve um grande fluxo de povoamento das terras próximo a Serra Geral (REITZ, 1948). E segundo, que as tropas desciam a serra.

Quando mencionados os primeiros habitantes de Praia Grande, chama atenção duas pessoas, o Sr. Luiz Tramont e o Sr. Amândio Cardoso de Lima. Quando em 1918, data da construção da primeira capela em Praia Grande, entre outros habitantes de Praia Grande, encontrava-se Idalino Cardoso, os irmãos Camilo João Inácio e Ricardo Inácio, Abel Esteves de Aguiar, Amândio Cardoso de Lima e Ildefonso da Silva. Não se daria muita importância a esses sujeitos da história de Praia Grande caso não fosse um fato relacionado, descrito aqui, aos seus trabalhos. O que chama atenção nesses sujeitos são as peculiaridades relacionadas à prática de seus trabalhos, ambos subiam e desciam a serra para efetuar negócios. Vejamos esse relato:

O Sr. Luiz Tramont, era um mulato muito prezado por todos na época; pois veio com sua família da cidade de Taquara (RS) e aqui chegando dedicou- se ao comércio. Mas nem tudo brilhou tão fácil na vida do seu Luiz Tramont, pois seu comércio foi invadido pelos Pica-paus e Maragatos que estavam em lutas. E foi assim que Praia Grande surgiu com a luta destes primeiros fundadores. Também não poderíamos deixar de mencionar o Sr. Amândio de Lima, que vindo do lugarejo antigo Passo do Sertão, hoje o Município de São João do Sul, aqui chegando, seu Amândio dedicou-se à agricultura, principalmente na cana- de-açúcar. Esse produto era transformado em diversos derivados como: açúcar damasco, rapaduras e cachaça, fabricadas em seus alambiques e engenhos rudimentares. Seus produtos eram comercializados em vários lugares, mas o maior comprador eram os municípios de Bom Jesus e Vacaria, na região serrana. Seu Amândio teve uma numerosa família e todos Praiagrandenses16.

Esse relato demonstra que entre tantas outras possibilidades de comércio, que provavelmente deveriam acontecer com centros de localidades vizinhas, havia de fato uma transação comercial com os lugares do alto da serra. Prática que sobreviveu ao tempo e continuou ativa, tornando-se uma característica cultural e econômica da região e que favoreceu o estabelecimento de povoados. As localidades da serra com seus povoados eram atrativas para o comércio local. Tanto os pioneiros subiam a serra para negociar, como os serranos desciam para negociar mercadorias. Promissoramente, era o comércio de alimentos no lombo de mulas (PERES JR, 2005). Por isso, conhecer a melhor vereda e abrir a melhor picada na encosta da serra demonstrava-se uma excelente estratégia para a época. Desde muito cedo, os costões da serra passaram a ser conhecidos e frequentados.

De antemão, reaver a história e as construções de identidades ao longo do passado (como foi visto nas cenas históricas deste capítulo), bem como, estabelecer esses marcos temporais e a importância desses sujeitos,

16 Essa citação não foi publicada, é de autoria de Reni P. Souza, disponível em:

facilita a compreensão dos acontecimentos que antecederam as reviravoltas sociais no campo, depois da segunda metade do século XX. Pôde-se compreender que impulsionados por conjunturas da época, tais como a fixação de pessoas em terras incultas e a importância do tropeirismo para o transporte de mercadorias nesses primeiros tempos de povoamento, que alguns dos primeiros moradores, não só se envolveram com práticas ligadas à agricultura como também em práticas comerciais. Seria muita pretensão dizer que o maior consumidor dos produtos gerados nas roças do sopé da serra eram os moradores de cima da serra, até porque as localidades de Torres, Sombrio e Araranguá, nas primeiras duas décadas do século XX já possuíam considerável número de habitantes urbanos. No entanto, conforme os relatos acima, essa prática de subir a serra, com cargueiros de mulas e suas bruacas carregadas de gêneros alimentícios oriundo das roças dos vales e planície era muito comum. Estipula-se que um dos interesses em levar as mercadorias da roça para o alto da serra era também o trazer os produtos oriundos da pecuária para ser comercializado nos centros de outras localidades que possuíssem casas de comércio e secos e molhados. Pode-se até mesmo dizer que Praia Grande projetou-se através do comércio de suas mercadorias. Esse comércio por hora atraía pessoas interessadas em inserir-se nesse mercado, trabalhadores rurais que a partir do plantio de alimentos poderiam estar entrando no ciclo dos “produtos de serra acima versus os produtos de serra abaixo” (PERES JR, 2005, p. 60) nessas primeiras décadas do século XX.

2.3 NO PÉ DA SERRA OU NA BEIRA DO PERAU: ADENTRANDO