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A segunda metade do século XIX foi palco da apropriação das técnicas usadas pelas parteiras e posterior hierarquização, o que possibilitou entender as formas de intervenção no saber prático e tradicional destas mulheres pelo saber da medicina científica da época.

Destacando a forma de produção dos saberes experiências do partejar, a ciência das parteiras, Aires descreve que o saber dessas mulheres resulta do somatório de objetos e procedimentos que compõem o seu ofício, no qual as habilidades se apresentam com o uso de observações, orientações, posturas e posições, óleos, toques e massagens, ervas para chás e banhos, simpatias, rezas e cantos, elaborados, aperfeiçoados, administrados e sistematizados pelas parteiras, produzindo a “tecnologia do atendimento ao parto e nascimento domiciliares”.143

Nesses diferentes e peculiares universos simbólicos, boa parte das mulheres em trabalho de parto buscava “a figura de tradição antiga do cuidar que são as parteiras tradicionais, para ajudá-las, cuidá-las e acompanhá-las em eventos importantes da sua vida sexual e reprodutiva”.144

Pouco a pouco, a concepção do saber experiência que engendrou essa arte e ofício, transmitida e sistematizada pelas mulheres em suas vivências de parir e de partejar, na intimidade dos lares, teve ampla aceitação e consideração social, em resposta à confiança conquistada pelas parteiras entre as mulheres que contavam com seus saberes empíricos, para atendê-las em diferentes questões ligadas aos seus corpos femininos, tais como as gestações, partos, abortos, doenças venéreas e infanticídios, como mostra Anayansi Brenes.145

143 AIRES, Mª Juracy. Técnica e tecnologia do parto: a produção e apropriação do conhecimento

tecnológico por parteiras tradicionais. Dissertação. UFPR, 2006, p. 41- 42.

144 DIAS, Maria Djair. Mãos que acolhem vidas: as parteiras tradicionais no cuidado a mulher

durante o nascimento em uma comunidade nordestina. 2007. 477f. Tese (Doutorado em Enfermagem)-Escola de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, 2007, p. 477.

145 BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX . Cad. Saúde Pública ,

O serviço prestado pelas parteiras era uma tradição, cumprida ao exercerem o ofício, arte e dom do partejar, em que eram reconhecidas e legitimadas socialmente como função social, que se refere à temporalidade pré- industrial da tradição e do sistema de dádivas, da dádiva do dom presidindo as suas práticas.

A representação e referência às parteiras despertam o interesse dos homens, que passam à disputa das concepções sobre o saber experiência das mulheres cuidadoras, com objetivo de centralizar papéis e iniciativas necessários à construção de práticas, conhecimentos e conceitos para compor a ciência da mulher, anteriormente conhecida como arte de partejar.

Na temporalidade da modernização, dá-se a apropriação do saber- fazer das parteiras tradicionais pelo saber médico que constituiu a obstetrícia. Tal confronto resultou na incorporação da prática das parteiras pela medicina, cujo discurso centrava-se na premissa do exercício da clínica e da investigação anatomopatológica, a partir da presença masculina nessa área.146

Essas justificativas levaram à criação de estratégias para determinar a formalização dessa prática, por meio da oferta do Curso de Partos e Parteiras, tornando-se uma iniciativa com força da Lei, como uma imposição dos Estados nacionais, de instituições religiosas e por ações da classe médica organizada em grupos.

Tais fatos, por certo, eram permeados por valores e interesses marcados por planos de exclusão e de domínio ligados aos aspectos de gênero e classe social, pois era sabido que muitas daquelas parteiras tradicionais sequer sabiam ler e escrever, o que impedia o ingresso em tais cursos.

Estas explicações são importantes, tendo em vista que, por força da Lei, estes cursos não só dariam a formação, mas também eram parte das estratégias de regulação da prática do partejar, em termos oficiais, como destaca Lúcia Mott:147 “A perseguição das parteiras seria resultado do crescente poder dos médicos, desejosos de dominar os corpos das mulheres, bem como esse campo profissional”.

146 BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil. (...) Op. Cit., 1991

147 MOTT, Maria Lucia. Parteiras x parteiras: negociação e confronto (BOLETIM DE HISTÓRIA

Gradativamente, tornou-se um assunto médico, e, como tal, alvo de processos de normatização, registro e de formação, marcado pela crescente hospitalização, até as primeiras décadas do século XX.148

Contudo, vale salientar que a marcante heterogeneidade geográfica e cultural brasileira resulta em uma diversidade de práticas e atendimento à saúde das mulheres, que tem relação com a realidade da vida cotidiana, própria dos diferentes grupos e contextos socioculturais de mulheres – índias, quilombolas, aquelas das regiões ribeirinhas, dos sertões, dos pantanais, das cidades, regiões metropolitanas. Alessandra Gissi faz referência ao controle das autoridades exercido sobre as parteiras, como:

Um fenômeno digno de atenção devido à longa duração que o caracteriza. Tal controle assumiu uma ênfase particular exatamente nos anos entre o término do século XIX e a Segunda Guerra Mundial, período em que as parteiras tornaram-se objeto de repetidas leis, regulamentos, prescrições e de um forte controle policial e social. Eram,

então, percebidas como possuindo exclusiva e

potencialmente a capacidade de facilitar os nascimentos ou de limitá-los; vale dizer que esses são dois dos aspectos fundamentais da medicina das mulheres.149

É possível entender o complicado processo enfrentado pelas parteiras e seu ofício, somado à crescente urbanização brasileira, resultando na modificação dos costumes e os modos de viver das mulheres, que pouco a pouco passaram a buscar atendimento hospitalizado para os partos.

Também são visíveis os efeitos desse domínio androcêntrico, que por certo ainda hoje persistem sobre a visão e avaliação dos saberes e experiências femininas, bem como sobre a possibilidade de essas mulheres acessarem as oportunidades de inclusão, como é o caso das parteiras tradicionais da RIDE. Em parte, respondem pela invisibilidade delas no cenário social e nos discursos, médicos ou não, sobre saúde e pelo silenciamento de sua prática e saber, na

148 TORNQUIST, Carmen Susana. Parteiras Populares: Entre o Folclore e a Escuta. Niterói, v. 6,

n. 1, p. 61-80, 2. sem. 2005, p. 63.

149 GISSI, Alessandra. Parteiras e controle da natalidade na Europa do Século XX. Niterói, v. 6, n.

memória social e na memória historiográfica. Essas são temporalidades diversas, presentes nas histórias dessas mulheres e explicitadas em suas falas.

Com base nessa compreensão, é possível perceber que a preservação dos fazeres e saberes das parteiras tradicionais provoca questionamentos acerca das políticas de saúde dominantes no Brasil.

Passa-se a refletir sobre essas práticas tradicionais como históricas e resistentes ao controle exercido pelas políticas e ações de saúde estabelecidas e hegemônicas.

Hoje em dia, essa característica vem sendo percebida como alvo para as mulheres que vivem o processo reprodutivo, ancorando os variados e complexos sentidos do partejar, ressignificando o parto domiciliar, as parteiras, os rituais e práticas que compõem o ofício de partejar nos domicílios urbanos.

Mas, não tem como, porque as pessoas vêm atraz, as pessoa acreditam, as pessoa é... querem ainda continuá com o parto domiciliar, o parto domiciliar. E é nessa hora que a gente vê nos olhos da pessoa que eles tão precisando da gente, e você não tem como dizer não (Obá).

Essa parteira expressa a nova tendência de mulheres urbanas, desde aquelas de pequenos municípios e até dos grandes centros urbanos, indicando a ressignificação do trabalho das parteiras e do parto domiciliar, ainda de forma discreta.

Como estratégia para uma compreensão possível, levantei as seguintes questões: As parteiras tradicionais do Entorno/DF permanecem disponibilizando seu ofício? Diante das condições em que se dá a atuação das parteiras tradicionais para atender as mulheres que não têm acesso ao SUS, o que tem sido feito para promover esta prática nos municípios da RIDE/DF?

É fato que em todas as regiões do país está acontecendo, desde as duas últimas décadas do Século XX, uma crescente corrente de movimentos sociais e populares150 pela humanização do parto e nascimento, como uma

150 Grupos e Movimentos sociais e populares pela humanização do parto e nascimento: ReHuNa,

Amigas do parto, Parto do Princípio, Grupo Curumim, Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Rede Nacional de Parteiras Tradicionais, Partonosso, GAMA, etc.

resposta aos abusos praticados pelo modelo biomédico de atenção ao parto hospitalar, configurando-se no excesso de cesarianas e intervenções nas gestantes, parturientes e suas crianças.

Esses movimentos se pautam pelo direito das mulheres e casais grávidos escolherem a forma, o local e o tipo de acompanhamento que desejam ter durante a vivência do processo de parir e nascer. Propõem atendimento respeitoso e a volta de métodos mais naturais, como também da atuação das parteiras, para os casos de gestações e partos sem indícios de complicações.

Intimidada, diminuída. Incompreendida. Atitudes impostas, falsas, contrafeitas. Repreensões ferinas, humilhantes. E medo de falar...

E a certeza de estar sempre errando... Aprender a ficar calada.

Menina abobada, ouvindo sem responder.