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I.2.1 Depoimentos e Entrevistas

I.2.1.3 Sérgio Vasconcelos

Roquette era pitoresco, era um gênio, um homem paciente, guerreiro – esse contraste. Quando conheci o dr. Roquette, em 1928, eu era jovem demais. Eu tinha revistas de discos, morava em Santa Teresa numa casa muito pitoresca, um silêncio de noite. Eu ouvia muito a Rádio Sociedade, cujo equipamento, Marcone, era de uma nitidez primorosa e aquilo com o disco resultava muito bem. Então, eu pensei: "Por que não divulgar o que eu já sei sobre isso, sobre uma sinfonia de Beethoven, sobre uma ópera, sobre uma coisa qualquer de música clássica, sobre a vida desses artistas, sobre tudo isso?”

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Sérgio Vasconcelos é radialista e trabalhou na Rádio Sociedade. É ex-diretor das rádios Tupi, Guanabara e Nacional.

Quando fui à Rádio Sociedade, que ficava na rua da Carioca, 45 – um sobrado com aquele corredor enorme até o morro, procurei o gerente, sr. Mesquita. 16 Ele informou que eu deveria falar diretamente com o dr. Roquette.

Nessa época, começava a introdução da publicidade no rádio e Roquette estava preservando a Rádio Sociedade, que ele amava, enquanto as outras – a Rádio Clube, a Rádio Educadora – já estavam se abastardando. Ele não, ele não deixava, mas a casa não estava mais se agüentando e era Roquette que sustentava aquilo. Ele resolveu aturar, até o dia em que ouviu o Francisco Alves 17 cantar uma música de carnaval que se chamava "Eu quero uma Mulher bem Nua". Telefonou: “Seu Mesquita, diga a este

moço que eu também gosto muito de mulher nua, mas não digo a ninguém. Tira esse homem daí!” – “Mas dr.Roquette, é o Francisco Alves....” – “Negativo.. acabou". Isso

foi uma das coisas gozadas que eu soube dele, antes de conhecê-lo, porque o Mesquita me contou.

Ele usava casaco branco até os pés. Apresentei-me e expliquei: "Dr. Roquette estou habilitado a divulgar meus conhecimentos, porque trago os melhores discos da praça, que não são meus, são da minha loja. Basta que eu me refira à loja no fim do concerto – esses discos foram fornecidos pela Casa Paulo Coelho – basta isso.” Porque eu queria fazer concertos semanais de música erudita.

Ele olhou pra minha cara, viu que eu era muito moço: "Bom, meu filho, se você não vai

dizer bobagem, então pode ir..." Comecei a trabalhar. No fim de um mês, quatro

concertos já realizados, ele me chamou, todo alegre, que eu estava muito bem, e perguntou como eu tinha aprendido aquilo tudo. Eu disse: "Bons livros, dr. Roquette, livros que vieram de Paris, o sebo de Paris. E depois as gravações vinham em álbuns com muita literatura. Fora discos avulsos que não havia problemas, bastava que você estivesse com a vida do compositor na mão.” Gostou; tempos depois ele me chamou pra ajudá-lo.

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Sr.Mesquita era o gerente da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro e muito amigo de Roquette.

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Ele sofria muito. Em todo o tempo que o conheci, a artrose estava atacando-o. Tomava muita aspirina. Imagino o que sofria, lombar, servical: andava com um pouco de dificuldade e não se queixava – o engraçado é que não se queixava. A gente sabia que ele estava sofrendo, mas ele não se queixava nunca. Fora isso, o físico do dr. Roquette, o andar dele já era de uma pessoa idosa, premido pela doença. Mas era um homem bonito, tinha traços muito bonitos, os olhos, o feitio do rosto, o equilíbrio da face, era um homem muito bonito. Aliás, dizem que, quando moço, foi muito bonito. (...). O resto é aquilo, roupa larga: tinha outras, mas não usava. Era sempre a mesma coisa, sempre aquela roupa preta – Beatriz 18 quase morria de desgosto. Mas a inteligência daquele homem!

Na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, houve um período em que se deu o trabalho de levar o microfone para a casa dele e, de manhã, levantava, chupava o café – porque se ouviam ele chupando o café e o ruído dos jornais que estavam ao redor dele. Fazia aquilo com a maior simplicidade, não tinha nenhuma técnica. Abria o jornal e, nada de política não, quando o jornal pegava uma coisa científica interessante, explorava aquele terreno, fazia um comentário e explicava tudo. Atendia o telefone, dava o telefone para o ouvinte, que o consultava, porque a biblioteca dele ficava em casa, para esclarecer o ouvinte.

Quando o dr. Roquette cansou, quem foi substituí-lo foi o Paulo Roberto da Rádio Nacional, o famoso Paulo Roberto, que fez também um serviço muito bom, mas não com aquela simplicidade. As explicações de Roquette eram tremendamente fantásticas, que coisas ele dizia, que pesquisa! Eu aprendi com ele a pesquisar: se aparecia um Alexandre Nevisk, do Prokofiev, eu ia nas enciclopédias saber quem era esse Alexandre Nevisk, antes de apresentar o programa.

Um dia, comprou dois terrenos na Barra da Tijuca e resolveu fazer uns piqueniques lá. Levou o Humberto Mauro, de calção de banho. Ele, de calção de banho. Um cocar na cabeça de todos e com nomes – ele dava nomes indígenas a todos. Agora, pensa bem, Matheus Collaço 19 fininho, com aquele calção largo, balançando; o Mauro, que até na

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Referência a Beatriz Roquette-Pinto, filha de Roquette.

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roupa de banho era relaxado; o dr. Roquette com aquele negócio na cabeça, de roupa de banho; Beatriz com aquele negócio na cabeça, mulher bonita como o diabo, no meio daquela gente feiosa toda e outras pessoas que ele convidava. Um dia uma senhora me encontra, amiga dele, na cidade: "Sérgio, vem cá! O que houve com o dr. Roquette?

Parece que ele está maluco, está tocando corneta na praia.” Agora, imagine eu ter que

explicar isso. Eu a chamei no canto e disse: "Não diga isso, o dr. Roquette é uma pessoa pitoresca, você sabe disso. Ele quer fazer seus piqueniques. Sabe o que ele dava para a gente beber, naquele sol desgraçado? Suco de uva, pra fermentar bem. E a filha, que paixão que ele tinha pela Beatriz! Ela ia para a praia, e o Humberto Mauro: "Mas a Tiza

é uma belezaaa!”. "Eu é que fiz”, ele respondia.

Tá aí a figura do meu querido mestre, que pessoa admirável, eu fico tão emocionado quando falo dele.