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Símbolos de Ascensão, Símbolos Espetaculares e

2. PONTOS DO IMAGINÁRIO

2.1. O Imaginário, segundo Gilbert Durand

2.1.1. Regime Diurno

2.1.1.3. Símbolos de Ascensão, Símbolos Espetaculares e

É bastante comum entre as diversas culturas a concepção de que o bom é o que está em cima. Isso explica o uso popular de expressões como “sonhar alto” e “subir na vida”. As práticas ascensionais são utilizadas por uma quantidade significativa de religiões. As igrejas, por exemplo, em sua maioria, são projetadas para o alto, o que contribui para reforçar a idéia de que o Céu fica acima, então cabe ao homem tentar galgar degraus e se aproximar do Paraíso. Segundo

Eliade28, “aquele que está ‘no alto’, o ‘elevado’, continua a revelar o

‘transcendente’ em qualquer conjunto religioso”.

No Medievo, a verticalidade, representada pela simbologia ascensional, tinha uma conotação espiritual mais intensa que hoje, pois a pureza da alma estava associada à elevação. Desse modo de pensar e agir, derivava a antinomia alto/baixo, na verdade, reflexo de uma antinomia anterior: sagrado e profano. Os símbolos diairéticos expressam essa divisão de valores: bem/mal, Céu/Inferno, alma/corpo. As dicotomias indicam o confronto e a rejeição ao que está por baixo, sinônimo de inferior, em alguns contextos, de impuro. “Aquele que vem de cima é superior a todos”. 29

Por isso, em sua Divina Comédia, Dante, nomeado por Bachelard o mais verticalizante dos poetas, localiza o Inferno em um abismo no centro da Terra, e descreve o Reino de Lúcifer como um ambiente de trevas, de umidade, de descida. Para os cristãos medievais, Satã vive no extremo fundo desse buraco, onde a luz não penetra e a visão é turva.

O Céu dantesco é essencialmente claro, e no seu alto mais extremo fica o Onipotente, Deus. Nesse ambiente de claridade absoluta, a luz ofusca os olhos dos homens. Percebe-se, assim, um isomorfismo entre a luminosidade celeste e a luminosidade solar. Um texto medieval, Queste du Graal, provavelmente escrito por Santo Agostinho, retratava essa isomorfia: “Na parte mais alta da cidade santa ergue-se um templo prodigioso... nenhuma pessoa viva habita nessas altas torres tão brilhantes que parecem feitas com os raios de ouro do sol”.30

É, portanto, nítida a total oposição entre o horrendo reino infernal e o luminoso reino celeste. Provavelmente seja essa a explicação para ser gélido o mundo satânico, e não quente como o de uma divindade uraniana. Na cultura do Medievalismo, “Cristo é constantemente comparado ao sol, é chamado ‘sol salutis’, ‘sol invictus’ [...] e, segundo S. Eusébio de Alexandria, os cristãos até o século V adoravam o sol nascente”.31

Os símbolos espetaculares correspondem ao Céu, ao claro. Materializam a visibilidade própria de quem está no alto, afinal, de cima é possível ter amplitude no olhar; nessa perspectiva, o olho de Deus tudo vê, logo, Ele tudo sabe. O

simbolismo espetacular se contrapõe ao nictomórfico, visto que neste as sombras não permitem a visão, e isso gera fraqueza e insegurança. Já naquele, a luminosidade garante força e proteção, porque a luz é sagrada, além disso, favorece a defesa e a integridade.

No Pentágono de Hanh, a simbologia diairética se mostra desde o título da

narrativa. Um pentágono é uma figura geométrica que evidencia a união dos desiguais. Segundo Chevalier32, “as cinco pontas do pentagrama põem em acordo [...] o 3, que significa o princípio masculino, e o 2, que corresponde ao princípio feminino.” No texto osmaniano, no centro da figura geométrica tem-se um animal, a elefanta Hanh, em torno da qual giram cinco micronarrativas.

As pequenas histórias ou momentos de vida contados retratam a tentativa de alguns personagens em superar as desigualdades que, de forma mesquinha, separam as pessoas e as impedem de ser felizes. Por esse prisma, a figura de Hanh representa a imutabilidade da vida desses personagens, dos quais foi tirado o direito de viver os sonhos, mas também alude ao ímpeto de transposição das barreiras sociais, mesmo que momentaneamente.

No caso da personagem

O

, vislumbra-se a impossibilidade de um amor fora dos padrões, visto que ela é já uma mulher, enquanto ele “terá, no máximo, doze ou treze anos”. A quase oposição entre adulto/adolescente é intensificada quando tange a um relacionamento amoroso. Se eles próprios não se opõem, a sociedade os condena e os rejeita, sobretudo se é a mulher a mais velha, a possível “domadora”.

[…] Fui que tive a idéia de nos encontrarmos no cinema, para a matinê do filme com Sabu. […]Foi, primeiro um assovio distante; ao qual, com timidez, logo acintosamente, outros vieram juntar-se, enxame de vespas irritadas, repetindo com insistência, entremeada de arrotos, de gargalhadas, de imitações de barritos, […] (p. 45)

A reação dos casais que estavam no cinema mostra uma postura de embate diante do considerado anormal. Percebe-se, dessa forma, uma relação com os símbolos diairéticos, cujo semantismo reflete a divisão entre todas as coisas, inclusive entre homem e mulher. No Pentágono de Hahn, a separação desse casal ímpar se sobrepõe a uma união momentânea, intensa, explosiva.

[…]Não refleti. Abrindo a blusa, despi o porta-seios, atraí para mim sua cabeça, com as duas mãos. Sinto transmitir-lhe pela boca, como um alimento, alguma coisa de meus vinte anos e tenho, vendo através do futuro, a intuição de que mergulho para sempre numa zona sagrada. Sou, nesta hora precisa, uma lembrança formando-se, nascendo sob a chuva. (p. 56)

A entrega desses dois seres, antagônicos perante o senso comum, se concretiza às escondidas, distante do olhar maledicente dos outros. Nesse instante, a noite começa a cair, porque a chuva antecipa as sombras. Diante do sombrio e da impressão de que os fantasmas dos bexiguentos iriam lhes fazer companhia, eles enfraquecem, e só têm um ao outro. Abraçam-se e ela o abriga como se fosse mãe. Mas, abraçados, e ele com a boca encostada ao seio dela, é inevitável se deixarem vencer pelo desejo.

Esse momento é mágico para os dois, por isso transcende o terreno, a culpa, o apontar inquisidor, o profano, até. A entrega significa mais que o se desprender dos liames sociais, é um “mergulho para sempre numa zona sagrada”33, é a entrada no templo do sentimento, do luminoso, do divino, tanto que a personagem feminina (re)nasce sob a chuva. De forma paradoxal, mergulha-se para se poder subir, tal qual acontece em um batismo nas águas sagradas. “[…] Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no reino de Deus”.34 Uma recorrência do simbolismo diairético, por meio do confronto da descida e da subida, da escuridão e da luminosidade, do sagrado e do profano.

Com a entrada da personagem na zona sagrada, tem-se tanto a materialização dos símbolos ascensionais quanto dos espetaculares, já que aqueles indicam a subida, a verticalidade, e mantêm uma relação de isomorfia com os elementos celestes, próprios do simbolismo espetacular.

A alusão ao alto, ao Céu, é reforçada pela elefanta, centro do pentágono. Segundo Cirlot35, o elefante, “por sua forma arredondada e sua cor cinza esbranquiçada, é considerado símbolo das nuvens”. Por outro lado, esse animal também reforça o fato de a união dos desiguais ser apenas experimentada, e não verdadeiramente vivida, e isso acaba assegurando a mesmice de uma vida regrada e “oca”.

A coragem de ousar, ao menos, experimentar essa união é própria do regime heróico do imaginário, que, em síntese, pode ser definido como “o trajeto representativo que vai da primeira e confusa glosa imaginativa implicada nos reflexos posturais até a argumentação de uma lógica da antítese e ao ‘fugir daqui’ platônico”. 36