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2. PONTOS DO IMAGINÁRIO

2.1. O Imaginário, segundo Gilbert Durand

2.1.1. Regime Diurno

2.1.1.1. Símbolos Teriomórficos

As representações animais são, indiscutivelmente, as mais comuns no imaginário do homem ocidental. A familiarização com a animalidade se dá desde a infância, por meio do apego aos bichos de pelúcia ou a personagens antropomorfizados, como o Pato Donald e o Mickey Mouse, ou ainda o Urso Poof, bastante venerado na atualidade.

A relação homem/animal é comumente pautada na reação que o contato entre eles provoca. Por exemplo, entre outros pequenos animais, os insetos, em sua maioria, despertam no homem uma repulsa quase sempre imediata. A barata está associada ao asco, à rejeição, porque sua imagem remete à negação do sentimento, da humanidade. Metaforicamente, a barata poderia simbolizar o caos, uma vez que ela, originada no período Carbonífero da Era Paleozóica, se antepõe à ordenação lógica do humano.

No que tange ao relacionamento homem/mulher, a fêmea também pode simbolizar o lado animal. Ela tanto provoca, incita os instintos do macho, fazendo- o perder a razão, quanto o seduz para matá-lo, mesmo que em um sentido figurado.

Para algumas culturas, os animais de grande porte caracterizam o tempo e a morte. Por esse prisma, o cavalo merece destaque, já que, sendo montaria, serve de veículo ao homem, e dessa forma, pode conduzi-lo à morte, indicando a passagem de uma vida.

Conforme consta em Chevalier, o cavalo serve de símbolo para a luz e para as trevas. Durante o dia, ele é guiado pelo montador; à noite, o montador se perde na escuridão, e o cavalo é seu guia, porque conhece as sombras e ilumina o

caminho. Como a claridade sucede a escuridão, o cavalo vivencia a passagem do tempo; desse modo, vence as trevas e alcança a purificação da luz.

Na cultura medieval, os cavaleiros defendiam a manutenção do poder da Igreja, os ideais da elevação da alma, o pensamento teológico. Por isso, havia rituais que preparavam os “escolhidos” para essa função prioritariamente espiritual. “O verdadeiro cavaleiro é aquele que participa, como Persifal, na ‘busca do Santo Graal’ e do qual o universo espera receber ‘nutrição superior e celeste alimento, é aquele que [...] introduz ao cerne do ‘Palácio Espiritual”.16

No Apocalipse, o cavalo materializa ora o bem, ora o mal. O cavalo vermelho representa o sangue vertido por conta das guerras; o preto significa a fome conseqüente da destruição provocada pelo homem; o esverdeado guia o cavaleiro cognominado Morte. Assim, a simbologia do cavalo associada à das cores apresenta os três principais flagelos que aterrorizam a humanidade: guerra, fome, peste. Mas também existe o cavalo branco, guia do vencedor dos vencedores, do cavaleiro Fiel e Verdadeiro, representação da Justiça, do Verbo de Deus. Além desse, há outros cavalos brancos, montaria dos exércitos celestes.

Em Pastoral, as cores fazem parte da constelação de imagens cujo símbolo central é o cavalo.

Os negros olhos brilhantes perdem a luz, reveste-os uma camada de cinza, sua cabeça teima em ficar levantada, como outrora, nos campos sobre os quais durante anos ele desfraldou, como estandarte vermelho, sua força, mas não tarda a repousar, inerte e desonrada, no chão. (p.145)

Nesse texto, bem como no Apocalipse, o vermelho está associado ao sangue derramado, efeito de um conflito, sinal de que houve queda e dor. Na narrativa osmaniana, evidencia-se claramente, por meio da simbologia teriomórfica, a relação vencedor/vencido. O personagem Baltasar, menino subjugado, ao cortar o membro do cavalo imponente, torna-se graúdo, forte, herói, “sol nos pastos”. A referência ao sol suscita uma transformação no cavalo de dentro do menino, por vezes enluarado:

Deitado no soalho, em cima do vestido, adormecido, nu, enluarado. Em torno de mim, os chifres, as pedras redondas, as moedas, os chocalhos sem badalos, os ossos de animais, as sombras do quarto, os arreios no cravo, o oratório vazio, o sossego da noite. (p.147-148)

A transfiguração do domínio da lua para o domínio do sol evoca o regime heróico, o libertar da impetuosidade, o sair do mundo circunscrito, voltado para si mesmo, representado pelos círculos das moedas e pedras. É para uma égua, Canária, que o menino se mostra, é com ela que ele dialoga. Também é com ela que ele descobre a sensação do gozo. Ele não conhece afago de gente. Canária é sua; só ela lhe permite ser dono.

Diante do possível inaceitável, perder para sempre a égua para um “outro” animal, Baltasar experimenta uma metamorfose, solta os grilhões do cavalo que há em si, e galopa, forte:

[...] Crescem minha crinas verdes, minha cauda azul, e galopo com ódio descendo esta ladeira, sou cavalo branco, árdego, cascos de pedra, dentes amolados. Na disparada, alteio a cabeça por sobre os rubros pastos, sobre as árvores, os montes e os pássaros voando, sobre as nuvens de fogo, o sol nascendo, e relincho com toda minha força. (p.148)

Esse cavalo altivo, branco, solar, se depara com um cavalo negro, brilhante, de longas crinas – as quais, no texto, servem de alusão à liberdade e ao ímpeto – e, então, realiza-se o embate, característica própria do regime diurno do imaginário.

[...] Meu corpo fino, tecido com cipós, mas de aparência rija, torna- se frágil, peça de barro, que vai fazer-se em pedaços nos cascos do cavalo. [...] Para mim, este breve instante é um relâmpago no fogo. [...] Os dentes do cavalo, as patas galopantes se abatem sobre mim como um feixe de raios, e as crinas brancas – nuvem – chamejam sob o sol. (p.149-150)

O animal negro – sombras – traz a morte para o menino metamorfoseado. Com isso, tem-se uma relação paradoxal: de um lado, Baltasar é vencido, pois sucumbe diante da luta com o cavalo adversário; de outro, Baltasar é herói,

porque vence a prisão a que foi submetido pelo pai, seu adversário maior. O menino é diferente, consegue sentir, amar e morrer por esse amor. Um sonho desmedido.

Conforme se percebia na Idade Média, o simbolismo do bestiário tem uma conotação ambivalente. Ele não só traz à tona valores negativos, como também valores positivos. Durand mostra que, com relação a animais predadores e a boa parte dos insetos, há no homem o despertar de uma posição de alerta, de pronto ataque, visto que esses bichos passam uma idéia de perigo, de confronto, pois. No que concerne aos animais de grande porte, fazem parte da simbologia da morte e do tempo. Eles representam o conflito contínuo entre o homem e o trotar do tempo, a resistência ao finito, o angustiante relutar à morte. Assim, os símbolos teriomórficos, também, materializam o regime diurno do imaginário.