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4 RESGATANDO OS REFERENTES DO HABITUS PROFESSORAL

4.4 SÍNTESE DO HABITUS PROFESSORAL

O resultado das entrevistas nos forneceu um material rico para a análise do habitus docente, o que nos tornou possível apreender elementos significativos que fazem parte da cultura comum vivenciada por eles.

O conjunto de aspectos ligados à trajetória escolar e às disposições culturais interiorizados pelos agentes vem influir, como diz Bonnewitz (2003, p.77), nas “inclinações para perceber, sentir, fazer, pensar”, tendo a ver, assim, com a forma de lidar com o conhecimento, com as escolhas acerca do que e como são ensinados os conteúdos escolares. Isso porque “o habitus é simultaneamente a grade de leitura pela qual percebemos e julgamos a realidade e o produtor de nossas práticas” (Ibid., p.78). O habitus contribui para conferir um estilo de vida próprio a determinado grupo; deste modo, podemos afirmar que os professores têm um estilo de vida característico com homologias entre si ao compartilharem alguns atributos comuns.

Conforme pudemos observar, a maioria dos professores é de origem humilde, e baixa condição socioeconômica familiar. Com exceção de um, os outros assumiram a condição de migrantes, iniciando os estudos da Educação Básica no interior e concluindo depois na capital, estudando em escolas públicas. Esse baixo capital econômico teve sérias implicações na formação escolar, forçando-os a dividir seu tempo entre o trabalho e o estudo, tendo muitas vezes de freqüentar a escola noturna, em função de compromissos com o trabalho. Na avaliação dos próprios professores, tal fato repercutiu negativamente na dedicação aos estudos, deixando lacunas na formação, sobretudo na constituição de pré-requisitos

necessários a estudos posteriores. As dificuldades relatadas em relação às matérias de cálculo sinalizam nesse sentido.

A baixa condição socioeconômica dos professores teve uma influência marcante nas expectativas e realizações direcionadas à formação profissional. Assim, ao fazerem a opção no vestibular por um curso superior, vimos que a Geografia, na maioria das vezes, surgiu como segunda opção, depois de uma tentativa malsucedida por cursos mais concorridos e de maior prestígio no campo acadêmico. Observamos também que uma forte razão aventada pelos professores para a escolha da Geografia diz respeito ao fato de esta ser uma ciência da área de humanidades e de tratar de temas que lhes eram atraentes.

Ao avaliarem o ensino na graduação, uma das principais queixas dos professores foi com respeito aos professores substitutos, geralmente pouco experientes, e indevidamente preparados para exercer a docência superior – um importante motivo, segundo os professores, a influenciar na precária formação.

Outra questão criticada pelos professores diz respeito à carência de atividades de pesquisa durante a graduação, tanto em etapas de laboratório, como nos trabalhos de campo, fato que tinha relação direta com a estrutura do curso e com a qualificação docente.

Quanto à formação teórica, a maior parte dos professores queixou-se da “cultura” da cópia na Universidade, em razão do deficiente poder aquisitivo, fator impeditivo à compra de livros técnico-científicos. Uma conseqüência disso, segundo eles, foi a falta de uma base teórica sólida na graduação, visto que o material fotocopiado, diferente do livro, tinha um caráter bem pontual, sendo aproveitado no estudo de uma determinada disciplina, visto, muitas vezes, de forma descontextualizada em relação ao livro do qual foi retirado. Assim, depois de formados, sentiam-se inseguros em relação a alguns conteúdos, apelando para a leitura do livro didático, que, afinal, tornava-se a principal referência teórica, sobretudo após o “mergulho” no universo da Geografia Escolar.

Os professores se queixaram também da falta de vivência em escolas da Educação Básica, durante o curso de Licenciatura, posto que o Estágio Escolar ficava bastante deslocado no currículo, geralmente no último ano. Por isso, as primeiras experiências como profissionais do ensino descortinavam um ambiente bem diferente da Universidade, pois vivenciavam, de forma contundente, a dicotomia entre a teoria acadêmica e a prática escolar.

Conforme evidenciamos, dos cinco professores pesquisados, apenas dois fizeram Pós- Graduação, encontrando dificuldades na realização dos trabalhos exigidos no curso, especialmente o trabalho final, alegando, para tanto, dificuldades com o método científico;

para eles, algo novo, não experienciado durante a graduação, tendo, portanto, que realizar um esforço extra, na tentativa de suprir suas limitações.

Também nos foi possível notar algumas diferenças entre os professores, determinadas por sua trajetória de vida, por particularidades advindas de sua situação familiar, conferindo- lhes distinções quanto às experiências políticas e culturais.

Quanto a aspectos relacionados às disposições culturais, vimos inicialmente que os professores se ressentiram da falta de uma orientação adequada ao participarem de eventos científicos durante a graduação, assumindo geralmente a condição de ouvinte, nenhum deles referindo-se a uma participação mais ativa no que respeita à apresentação de trabalhos. E que, depois de formados, os principais cursos freqüentados foram aqueles promovidos pela SEMEC; boa parte deles bastante instrumentais, visando atender necessidades imediatas.

Ao serem indagados acerca de suas preferências culturais, com exceção de uma professora, a maioria tem incursionado pouco pelo campo da literatura, do cinema, do teatro e da música, alegando, para tanto, principalmente, dificuldades financeiras, temporais, e a comodidade proporcionada pela televisão. Deste modo, pudemos constatar a dimensão e influência da industrial cultural.

Quanto às revistas e jornais, estes eram lidos com um foco voltado para o ensino, um recurso auxiliar no preparo das aulas e em atividades solicitadas aos alunos; embora não tenha ocorrido com muita freqüência.

A leitura atenta dessas preferências nos mostra o sentido do gosto dos professores, assunto sobre o qual Bourdieu (1999b, p.478, tradução nossa) expressa: “o gosto funciona como uma espécie de sentido da orientação social; orienta os ocupantes de um determinado setor no espaço social; orienta para as posições sociais ajustadas a suas propriedades”.

Afinal, os professores, por sua origem, apresentam pouco capital cultural; fato que se reflete em suas escolhas estéticas, que os distanciam do estilo de vida expresso nos gostos da classe dominante, geralmente tidos como legítimos. Em seus relatos, pudemos constatar elementos associados à familiarização com obras artísticas populares, evidenciadas nas preferências evocadas, algumas delas estreitamente relacionadas à sua prática docente. Sobre isso, Bourdieu (1999b) afirma que indicadores como nível de instrução ou origem social expressam o modo de produção do habitus. Tais indicadores são princípios de diferenças não somente nas competências adquiridas, mas também na maneira de levá-las à prática.