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Síntese dos principais marcos históricos da saúde mental no Brasil

2 SAÚDE MENTAL – PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS E

2.2 A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA – CONSTRUINDO A

2.2.2 Síntese dos principais marcos históricos da saúde mental no Brasil

Pensar cidadania e saúde mental num momento político regido essencialmente por fundamentalismos é zelar pela esfera pública. Conforme pontua Barreto (2003, p. 11), “Uma ampla e contraditória variedade de fundamentalismos deixa a vaga impressão de que já não há como saber que rumo tomar no mundo em que vivemos”. O discurso do encarceramento e do isolamento da loucura transparece um desejo e um projeto de dominação política, econômica e social sobre os corpos e as relações humanas. Cabe, portanto, aqui, refletir sobre como se

construiu conjuntura política atual e o campo da Saúde Mental no Brasil, bem como o quanto tais relações interferem direta ou indiretamente os sujeitos deste campo.

De forma a garantir seus ideais e pressupostos, a Política de Saúde Mental, assim como o Sistema Único de Saúde, tem alguns marcos que se fazem de extrema importância para que entendamos sua construção de maneira mais ampla e para que não percamos de vista a relação inevitável entre Política Pública e Clínica.

Um dos grandes marcos na história saúde mental no Brasil é, de acordo com Schechtman e Alves (2104), a implantação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (Caps), em 1987, o Caps Luiz da Rocha Cerqueira, em São Paulo, que veio provar que é possível cuidar de pessoas que conviviam com transtornos graves fora dos muros dos hospitais. É preciso ainda destacar a I Conferência Nacional em Saúde Mental, ocorrida também em 1987; o II encontro do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental, na cidade de Bauru, no qual foi levantada a famosa bandeira “Por uma Sociedade Sem Manicômios” e instituído o dia 18 de maio como dia da Luta Antimanicomial, fundando também o atual Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Destaca-se ainda a apresentação do então Projeto de Lei Paulo Delgado, em 1989, governo de José Sarney, que propunha a extinção progressiva dos manicômios, projeto que passou 12 anos em tramitação e veio a ser aprovado enquanto lei apenas em 2001 e após sofrer diversos cortes e mudanças.

Mas é em 1990 que é criada a Coordenação Geral em Saúde Mental (CGSM), tendo Domingos Sávio do Nascimento Alves, militante da luta antimanicomial, como primeiro coordenador. As legislações em saúde mental vêm, a partir de então, garantindo a implantação e regulamentação dos serviços substitutivos que, conforme Mateus & Mari (2013), asseguram que os serviços que antes eram concebidos enquanto projetos locais passem a ser garantidos enquanto política de governo, estratégia fundamental no desenvolvimento do campo da saúde mental.

Somente a partir do ano de 1992, no governo de Fernando Collor, de acordo com Bardaro e Júnior (2013), é que os movimentos sociais, inspirados pelo projeto de lei Paulo Delgado, conseguem, em vários estados, aprovar as leis estaduais que determinam a extinção dos manicômios. Em Pernambuco, a legislação estadual de saúde mental data do ano de 1994, é a lei 11.064 de 16 de maio de 1994, que já indica para a substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede integral, fazendo referência, inclusive, aos cuidados à pessoa dependente ou que faz uso abusivo de álcool e outras drogas.

Esse período é chamado por Borges e Baptista (2008) como sendo o momento germinativo da Reforma psiquiátrica Brasileira. Os autores destacam a importante articulação

política do então coordenador de saúde mental, tanto interna quanto externamente, ao Ministério da Saúde, para a criação do Colegiado dos Coordenadores Estaduais. Há, portanto, um grande processo de fomento às parceiras formais e informais para a implantação dos serviços substitutivos e uma forte atuação da coordenação nacional para o redirecionamento da assistência visando à desospitalização.

De 1997 a 1999 vivemos o que Borges e Baptista (2008) nomeiam como sendo um período de latência. O Ministro da Saúde da época, Carlos César de Albuquerque, atuou conforme as diretrizes econômicas do governo e efetuou mudanças na estrutura do Ministério da Saúde que repercutiram na saúde mental, como, por exemplo, a desarticulação da coordenação nacional de saúde mental enquanto formulação política. 1997 e 1998 mostram-se como anos em que não houve um investimento nas políticas de saúde mental, o que se traduz, por exemplo, na ausência de portarias ministeriais. Apenas em 1999 é promulgada a portaria 1077/99, que implanta a tabela de medicamentos essenciais em saúde mental.

O ano 2000 inaugura um novo momento na saúde mental, é o período de retomada, marcado pela alavancagem da Política. É publicada, por exemplo, a portaria 106/00, que implanta os Serviços Residenciais Terapêuticos. Mas é somente no ano de 2001 que a lei federal 10.216, fruto do Projeto de Lei de autoria de Paulo Delgado, foi sancionada, no governo de Fernando Henrique Cardoso, após vários cortes do texto original. Apesar de revolucionária por regulamentar as formas de internação, assegurar os direitos das pessoas que convivem com transtorno mental e também a proteção destes direitos, além redirecionar o tratamento dessas pessoas para serviços de base comunitária, a referida legislação não oferece mecanismos claros de substituição aos hospitais psiquiátricos.

Cabe ressaltar, no entanto, a mudança de paradigma com a sanção da lei 10.216/2001. É a partir de então que a Reforma Psiquiátrica se consolida enquanto política pública de governo, com os serviços substitutivos ocupando papel central e estratégico para a construção e consolidação de uma nova forma de assistência em saúde mental. A grande mudança de paradigma trazida pela lei 10.216/2001 consiste em que as pessoas que convivem com transtorno mental são sujeitos de direitos e como tais, precisam ser respeitados.

A referida lei traz ainda três tipos de internação: voluntária, quando o sujeito está de acordo; involuntária, sem que esteja de acordo, mas com permissão de familiar; e compulsória, quando determinada por ordem judicial. É importante ainda dizer que tanto a internação compulsória quanto a involuntária precisam ser notificadas ao Ministério Público em até 72 horas após a ocorrência. É o Ministério Público o responsável pela fiscalização das condições da internação e por assegurar que os direitos dos usuários sejam garantidos.

Em janeiro de 2002, o início do momento de expansão, de acordo com Borges e Baptista (2008), foi instituída a portaria MS/GM 251/2002, importante dispositivo legal que estabelece normas e diretrizes para a assistência hospitalar em Psiquiatria, define a porta de entrada para internações psiquiátricas no SUS e assegura que os hospitais psiquiátricos do SUS devem ser avaliados pelo Programa Nacional de Avaliação Hospitalar/Psiquiatria (PNASH). No ano seguinte, 2003, foi ainda sancionada a lei 10.708 de 31 de julho de 2003, que institui o Programa De Volta Para Casa, que consiste em um auxílio reabilitação para ex-internos de hospitais psiquiátricos com longo histórico de internações (dois anos ou mais). O referido programa atende à necessidade de reinserção social de uma população injustiçada e privada de seus direitos mínimos apenas por ser diferente. O “De Volta Para Casa” é mais um avanço alcançado a partir da lei 10216/2001, que no artigo 5° determina que pessoas há longo tempo hospitalizados ou com grave dependência institucional sejam alvos de políticas públicas específicas, de altas planejadas e de reabilitação psicossocial assistida.

Cabe, por fim, destacar que por mais inovadora que a lei 10.216/2001 seja, não traz mecanismos claros para a substituição dos hospitais, como mencionamos anteriormente, o que só vem às claras em 2011, com a portaria 3.088/2011, durante o governo Dilma Rousseff, que institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas que convivem com transtorno mental e para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. A referida portaria é, de fato, um marco na história da saúde mental, não só por apontar mecanismos de substituição aos hospitais psiquiátricos, como também, pela primeira vez, por apresentar a palavra intersetorialidade, ao trazer a importância do envolvimento de outras redes no cuidado em saúde mental. Fazem parte da Raps: rede de atenção básica, rede de atenção a urgências e emergências, atenção psicossocial especializada, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar e estratégias de desinstitucionalização.

A partir de 2015, novamente o projeto passa a sofrer ataques, iniciando o momento que aqui estamos chamando de período de retrocessos. Mota, Silva e Lyra (2017) situam como um dos marcos principais do momento atual da Reforma Psiquiátrica a destituição de Roberto Tykanori, psiquiatra reconhecidamente a favor do projeto da Reforma Psiquiátrica antimanicomial, do cargo de coordenador nacional de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas, o qual ocupou durante o governo Dilma Rousseff (2011-2016). A destituição ocorrida em 2015 se deu sem a consulta a movimentos como o de Trabalhadores em Saúde Mental e o da Luta Antimanicomial.

Em 2016, no contexto pós-golpe político configurado pelo impeachment da então presidenta eleita democraticamente, Dilma Rousseff, na contramão do desenvolvimento de um

modelo igualitário de saúde, foi aprovada pelo governo Michel Temer a Emenda Constitucional 95, que cria um teto para os gastos públicos. Tal medida impactou diretamente o desenvolvimento das Políticas de Saúde Mental, uma vez que, com o congelamento de investimentos, não mais se poderia contar com a abertura de serviços territoriais.

Em 2017, foi lançada a portaria 3588/2017, também conhecida como nova política de saúde mental, que dispõe sobre as alterações na Rede de Atenção Psicossocial. É importante frisar neste texto que as alterações feitas foram todas para privilegiar o setor privado em detrimento do público. A portaria prevê de modo explícito o aumento do financiamento à manutenção de leitos em hospitais psiquiátricos, bem como impossibilita a transferência dos recursos dos leitos fechados para os serviços de base territorial. Além disso, ampliou os recursos ofertados às Comunidades Terapêuticas, novos modelos de manicômios destinados a usuários de álcool e outras drogas.

Em 2019, assumiu o governo o atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, que segue apoiando e criando retrocessos na saúde e, mais especificamente na saúde mental. Podemos citar, por exemplo, a lei 13.844 de junho de 2019, que relega para o segundo plano a participação social, tão importante no SUS. A referida lei ataca os direitos indígenas e reafirma o amplo poder do Ministério da Cidadania, colocando sob sua gestão diversas grandes áreas, dentre elas, a política de drogas. A Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas passou a ter um papel opaco no que tange às discussões sobre as políticas de drogas, o que abre espaço para o reconhecimento de comunidades terapêuticas ou clínicas privadas como instituições de saúde mental, sem qualquer possibilidade de controle social.

Além disso, temos a lei 13.840 de 2019, que garante a adoção como estratégia central para o usuário de drogas, a abstinência, deslocando para o último plano a redução de danos, estratégia que considera a autonomia e o cuidado em liberdade do usuário de drogas. No que diz respeito mais diretamente ao nosso objeto de estudo, as Residências Terapêuticas, em uma palavra, o novo direcionamento do Governo Federal, encabeçado pelo atual presidente, impede a abertura de novas casas à medida que retomou a centralidade dos Hospitais Psiquiátricos e, em nota técnica, recomendou o não uso da expressão “serviço substitutivo”. Além disso, a antiga lógica manicomial é retomada sobre o pretexto de um cuidado prestado em ambulatórios ditos especializados, sem que o cuidado seja articulado com o território. Sobre este último fato, Delgado (2019, p. 03) pontua que “embora seja medida esdrúxula do ponto de vista da gestão, tem uma intenção simbólica clara, de negar a mudança de modelo de atenção”.

Quadro 1- Identificação dos marcos da reforma psiquiátrica

Marco Ano Governo

Caps Luiz da Rocha Cerqueira 1987 José Sarney

I Conferência Nacional em Saúde Mental 1987 José Sarney

II encontro do Movimento de Trabalhadores em Saúde

Mental 1987 José Sarney

Intervenção na Casa de Saúde Anchieta 1989 Intervenção na Casa de Saúde

Anchieta

Projeto de Lei Paulo Delgado começa a tramitar 1989 José Sarney

Lei 10.216/2001 – Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica 2001 Fernando Henrique Cardoso

Portaria MS/GM 251/2002 – PNASH 2002 Luís Inácio Lula da Silva

10.708 /2003 – Programa de Volta Pra Casa 2003 Luís Inácio Lula da Silva

Portaria 3.088/2011 – RAPS 2011 Dilma Roussef

Destituição de Roberto Tykanori da Coordenação

Nacional de Saúde Mental Álcool e Outras Drogas 2015 Dilma Roussef

Impeachment e aprovação da EC 95 – Congelamento dos

gastos públicos 2016 Michel Temer

Portaria 3588/2017 – Alterações significativas na Política

de Saúde Mental 2017 Michel Temer

Centralidade em hospitais psiquiátricos 2019 Bolsonaro