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SÓCIOHISTÓRICO DA CIDADE DE JOÃO PESSOA E DO BAIRRO DO VARJÃO/RANGEL: UMA DESCRIÇÃO DENSA

Todos, a despeito das diversidades de perspectivas e propostas, pensam o Brasil Moderno, o capitalismo nacional, o capitalismo associado, a industrialização, o planejamento governamental, a reforma do sistema de ensino, a reforma agrária, a institucionalização de garantias democráticas, a superação da preguiça pelo trabalho e da luxúria pelo ascetismo, a mudança das instituições e atitudes, a reversão das expectativas, a revolução política, a revolução social. Em distintas gradações, as perspectivas de uns e outros abrem-se em um leque bastante amplo, compreendendo propostas de cunho liberal, liberal-democrático, corporativo, fascista, socialista e outras.

...vale a pena observar ... esse vasto movimento intelectual – polarizado pela ideia de modernização conservadora, autoritária, democrática ou socialista... (IANNI, 1992, p. 37).

Esta primeira parte da tese, intitulada A Chacina do Rangel no contexto sóciohistórico

da cidade de João Pessoa e do bairro do Varjão/Rangel: uma descrição densa, busca problematizar a cidade de João Pessoa e o bairro do Varjão/Rangel como recortes teórico- metodológicos do universo da pesquisa em tela. A cidade e o bairro, tomados como pólos relacionais e sobrepostos de um regime conflitual de relações de aproximação e de afastamento, de busca por reconhecimento e de estratégias de apropriação moral e controle social, compreendem o lócus em que a narrativa da Chacina do Rangel é construída como discurso moralizante e como elemento político que transforma um surto de violência entre iguais em um evento crítico e traumático que se desdobra em pânico e falência moral generalizados.

A análise compreensiva da dinâmica interna deste crime de chacina, portanto, implica na abordagem diacrônica da cultura emotiva e dos códigos de moralidade da cidade de João Pessoa e do bairro do Varjão/Rangel, de modo que os elementos de banalidade e de crueldade da violência cotidiana, em um bairro popular e estigmatizado, uma vez apropriados pelos empreendedores morais (BECKER, 2008) da cidade oficial, - a mídia local, a Igreja Católica e a Administração Pública, - possam ser entendidos enquanto processo negociado e tenso de construção coletiva de um meta-relato das relações entre uma cidade oficial que se quer moderna e modernizante e um bairro popular que se pretende moralmente integrado à cidade, bom de morar e de pessoas de bem, mas que é visto como lugar marginalizado, sujo, perigoso e violento. Esta fachada problemática do bairro, com efeito, vem a ser o elemento moral e emocional mais fortemente impactado pela espetacularização e escandalização midiática,

policial, jurídica e burocrático-administrativa do crime da chacina como conto moral de

Chacina do Rangel.

O conceito de empreendedores morais constitui um dos pilares analíticos da argumentação desenvolvida ao longo desta tese. Extraído de leituras de Becker (2008), mas também enriquecido a partir dos conceitos de cruzado simbólico, de Gusfield (1986), de

especialista, de Giddens (2002), e de dramatis personae, de Geertz (2012), o conceito de empreendedores morais aponta para a ação pública de atores e agentes sociais destacados no espaço público, e também político, de uma sociabilidade dada. Os empreendedores morais, nesse sentido, atuam como articuladores de agendas sociais de intervenção pública e de transformação social (KINGDON, 1995), ou como fazedores de novas regras morais ou como figuras e personagens ritualmente influentes na definição das situações e dos problemas sociais de um contexto interacional e societal específico.

Interessa frisar, ainda, a capacidade dos empreendedores morais em produzir públicos (FREIRE, 2016), isto é, arenas semi- ou institucionalizadas de debates coletivos; em transportar conteúdos sociais polêmicos, perigosos e poluentes de esferas oficiosas e segredadas do social e da cultura (BOLTANSKI, 2012) para o lugar do interesse público, da transparência e da visibilidade coletiva; em justificar ou condenar ações públicas, de modo a produzir contos e narrativas morais em torno de uma figura romantizada como herói ou como

marca21 (GOFFMAN, 2014); e em vocalizar e performatizar publicamente estratégias de

footing22 (GOFFMAN, 1998) e de apropriação moral para a produção de escândalos, traumas, eventos críticos e situações morais de não retorno. O empreendedor moral produz, em grande medida, com sua ação pública cotidiana, os sentidos oficiais das disputas morais de uma sociabilidade dada, uma vez que desponta no cenário público como o idealizador e realizador de empreendimentos morais e de ofensivas civilizadoras (REGT, 2017).

A ofensiva civilizadora constitui, em linhas gerais, o ritual público, no sentido gusfieldiano de transformação de problemas sociais, - como a violência generalizada e difusa, - em problemas públicos e políticos, - como um programa de ação ou política pública de

21Por marca Goffman (2014) define aquele jogador que investe em situações de risco e, ao frustrar-se, busca sem

sucesso retirar-se do jogo, pois é continuamente dissuadido por especialistas a permanecer na dinâmica de apostas. O marca, assim, é aquele jogador que é resfriado e decantado como o otário da relação, haja vista que percebe os riscos e as perdas inerentes à situação atual, mas prefere continuar confiando, por medo do desconhecido e por vergonha de possíveis fracassos, nas autoridades que o guiam.

22O conceito de footing, caro à sociolingüística interacional, define uma estratégia comunicacional de

enquadramento sutil da fala do outro, que, assim, é induzido a pequenas e graduais mudanças no seu discurso que, quando somadas, implicam em uma considerável transformação qualitativa do que originalmente defendia.

combate à violência urbana registrada nas periferias pobres. A ofensiva civilizadora abarca, ainda, a consequente e sistemática intervenção de empreendedores morais para a mudança (ou para a performatização da mudança), em curto prazo, de aspectos pontuais ou mesmo mais amplos do habitus (ELIAS, 1997; 2009) de uma população classificada como passível de moralização, no sentido dos padrões morais da civilização moderna ocidental.

Esta primeira parte da tese, em síntese, aborda, em três tempos, o contexto sóciohistórico da cidade de cidade de João Pessoa e do bairro do Varjão/Rangel a partir dos esforços modernizantes de construção de uma fachada coletiva de cidade e de bairro alinhada, na perspectiva de seus empreendedores morais, aos ideias de progresso, moral e técnico, de civilização moderna e de história linear de evolução urbana e de conformação do habitus do morador da cidade. Fachada coletiva esta envergonhada diante de uma modernização sempre inconclusa, vivenciada na forma de medos corriqueiros (KOURY, 2002; 205a; 2017) que pautam as ações e resistências do morador comum em face das violências e das vulnerabilidades interacionais próprias da vida urbana em João Pessoa, e que sofreu um abalo considerável em sua capacidade de afirmação pública em razão do evento crítico e traumático da Chacina do Rangel.

A cidade de João Pessoa vista como conjunto de ofensivas civilizadoras e empreendimentos morais, portanto, é enquadrada como o universo mais amplo que abarca e tensiona o bairro do Varjão/Rangel em relações densas de equivocação (VIVEIROS DE CASTRO, 2004). Lugar este resultante da trajetória de urbanização e modernização da cidade, mas também personagem e ator e agente social coletivo que constrange e exige pautas morais e emocionais de si e da cidade a partir de uma produção própria de memórias, projetos e normalidades normativas que desafiam a narrativa da cidade oficial como agente de envergonhamento do bairro23.

Por ofensiva civilizadora se quer entender justamente o conjunto de ações planejadas e executadas dos empreendedores morais da cidade oficial para a intervenção pública e política, isto é, como a mídia local, a Igreja Católica e a Administração Pública buscaram intervir no Varjão/Rangel e na cidade, por um lado; e, por outro lado, como as reações ao envergonhamento público de si e do bairro, geradas nesse processo de ofensiva civilizadora, mobilizaram esforços no sentido de construção de uma narrativa inversa no contexto de

23O empreendedorismo moral dos moradores do bairro será diretamente problematizado e analisado no capítulo

afirmar o lugar de bem Rangel e o lugar mal-afamado Varjão, enquanto empreendimento moral dos moradores do Varjão/Rangel.

A descrição densa da chacina como crime banal e cruel, e da Chacina do Rangel como narrativa moralizante de apropriação moral, por sua vez, enseja a problematização de questões complexas para o entendimento da ordem social cotidianamente negociada em um contexto traumático e engolfado, estigmatizado e pessoalizado de relações, tais como: o fenômeno do linchamento e do justiçamento popular; da transgressão moral e da quebra de confiança em uma dimensão micropolítica e transintencional de vínculos sociais; da vergonha cotidiana como giroscópio moral e emocional em figurações sociais de intenso monitoramento comportamental recíproco; da vergonha-desgraça, da situação-limite e do trauma cultural24 como argumentos morais e emocionais de recomposição de laços e hierarquias ecológicas rompidas ou estremecidas e etc.

A cidade de João Pessoa, assim, aparece como sociabilidades urbanas tensas caracterizadas por uma cultura do medo, da banalização da violência e da evitação do outro, - tido como estranho, - tensionadas sempre por um processo amplo e inconcluso de modernização conservadora. Modernidade esta sentida ambiguamente como desejo de individualidade e como ameaça às tradições e conformações autoritárias e excludentes do espaço urbano, gerando, assim, sentimentos de amor e ódio à cidade e exigindo do seu morador comum um exercício diário de uma nova sensibilidade, pautada na privatização das emoções, no individualismo, na melancolia e no medo do outro relacional e das incertezas do futuro.

O bairro do Varjão/Rangel, por extensão, aparece como sociabilidades urbanas periféricas e pobres, ainda por modernizar e civilizar, e que suscitam medo e evitação à cidade oficial, mas também como lugar de confiança e de confiabilidade, de pertença e de se segurança ontológica, em que a vida cotidiana do morador era e é organizada em redes homofílicas e de parentesco extenso, de compadrio, de amizade, de reconhecimento, de lealdade e de solidariedade em relação ao outro, vizinho e próximo. Sociabilidades urbanas estas, contudo, continuamente tensionadas por disputas morais em torno do pertencer à cidade oficial e por medos corriqueiros, reais e imaginários, gerados, por exemplo, no confronto com

24A noção de trauma cultural remete a um processo de apropriação moral e emocional de um trauma ou contexto

traumático coletivamente vivenciado, e que passa a ser expresso como narrativa moralizante e identitária. Estas noções de trauma e de trauma cultural serão mais detalhadas na Parte II desta tese.

o outro de fora do bairro, que desconhece e confunde os idiomas morais e emocionais em torno das nominações, lugares e memórias relacionados ao Varjão e ao Rangel.

Esta confusão ou estas equivocações e desencontros sobre como efetuar traduções (VIVEIROS DE CASTRO, 2004), com efeito, consiste no cerne dos ressentimentos e ironias gerados pelo morador do bairro em relação às formas de apropriação moral do crime de chacina ali ocorrido, transformado publicamente, de forma oportuna e conveniente para e pelos empreendedores morais locais, em Chacina do Rangel. Esta discussão será matizada ao longo da tese.

2. 1. Emoções, lugares e memórias: uma breve história do bairro do