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Saúde Intercultural: Por uma nova concepção de saúde para os indígenas

Capítulo 1. Direitos Humanos

1.2 Direitos Humanos do Universal ao Étnico: Construção da Cidadania Étnica

1.4.1 Saúde Intercultural: Por uma nova concepção de saúde para os indígenas

necessário repensar o conceito de saúde da OMS. Isso porque este conceito, apesar de representar grandes avanços, não é capaz de abarcar a totalidade das necessidades de saúde da população indígena. Tal problemática fica evidente ao se analisar a concepção de saúde que está por trás dos programas de saúde indígena e o choque entre a demanda indígena e a oferta do Estado.

Um sistema de saúde para os povos indígenas não pode simplesmente adotar um modelo estruturado somente sobre as bases da medicina ocidental contemporânea, como em grande medida é oferecido. A questão da saúde nesses

grupos envolve não apenas a esfera físico-material, mas também a esfera cultural, religiosa, social e econômica. Exemplo disso é a figura do xamã/pajé29, que não se resume às questões religiosas e à organização social, mas também tem o papel de curar enfermidades, que teriam uma origem seria espiritual. Além disso, o uso da fitoterapia (ervas medicinais) está na base da medicina de alguns povos que se recusam a tomar remédios das indústrias farmacêuticas/químicas, assim como existem médicos que rejeitam as técnicas indígenas de tratamento de saúde (Araújo, 2006) 30.

Em suma, os programas de saúde indígena, segundo as determinações internacionais, devem ser baseados em princípios harmônicos entre o indivíduo, a família, a comunidade e o universo que o rodeia. Segundo Roberto Cardoso de Oliveira:

―(...) o conhecimento científico e a prática médica ocidental constituem não um substitutivo das medicinas tradicionais, mas, sobretudo, um recurso de atenção à saúde, devendo ser respeitados, explicitamente, os hábitos, costumes e tradições dos diversos grupos étnicos a serem atendidos pelo projeto. Para tanto, deveria reconhecer, respeitar e recuperar os ordenamentos cosmológicos nativos, por meio dos quais o processo de saúde/doença a cura e morte são significados‖ (Oliveira, 2006: 200)

Esse é também o pressuposto explicitado pela FUNASA, Fundação Nacional de Saúde, responsável pela implementação dos programas de saúde indígena no Brasil:

―Os sistemas tradicionais indígenas de saúde são baseados em uma abordagem holística de saúde, cujo princípio é a harmonia de indivíduos, famílias e

29 São diversos os nomes dados aos indígenas responsáveis pelo processo de cura. A figura do xamã, que em algumas comunidades da região amazônica é o responsável pela cura espiritual, e a do pajé, que principalmente na região centro-oeste brasileira é o responsável espiritual e político da sua comunidade, consta apenas como exemplo. Ao longo deste trabalho serão abordados outros atores sociais indígenas responsáveis pelo papel da cura.

30 Como entendemos a saúde em seu conceito integral, para que o indígena possa ter seu direito à saúde intercultural plenamente atendido, há necessidade de políticas de demarcação de terras que possibilitem a agricultura de subsistência ou a venda de produtos, além de políticas macroeconômicas que não prejudiquem essas populações que vivem da renda de suas plantações, artesanatos ou que incentivem a mineração e a exploração dentro das terras indígenas.

comunidades com o universo que os rodeia. As práticas de cura respondem a uma lógica interna de cada comunidade indígena e são o produto de sua relação particular com o mundo espiritual e os seres do ambiente em que vivem. Essas práticas e concepções são, geralmente, recursos de saúde de eficácias empírica e simbólica, de acordo com a definição mais recente de saúde da Organização Mundial de Saúde‖ (FUNASA, 2006: 17).

Por isso, é fundamental pensarmos um sistema de saúde e de avaliações pautado pela indissociabilidade da questão da saúde indígena e de outras questões essenciais como: a política de educação intercultural; a demarcação de terras, ligada à questão da ancestralidade e à fonte de sua alimentação; um ordenamento jurídico consistente, que dê segurança jurídica e possibilidade de os indígenas realizarem suas práticas de saúde; a autonomia desses grupos, em questões como do uso de recursos, além, do respeito e compreensão em relação a outra cultura. Em suma, um sistema de saúde que se propõe ser intercultural deve considerar as diferenças culturais, a integralidade de saúde e a indissociabilidade dos direitos, vendo o indígena como um indivíduo ligado à sua coletividade e ao meio social e ambiental em que vive.

No contexto da saúde intercultural, as dimensões da pessoa, cognitiva e material, se articulam em um modelo médico que faz com que pacientes e profissionais expliquem o fenômeno do conceito de saúde e doença, as práticas e procedimentos de saúde e de como ocorrem os processos de recuperação e manutenção da saúde. Normalmente, os elementos cognitivos e práticos diferem entre profissionais e pacientes, fruto das diferentes histórias sociais e culturais de cada um, do contexto em que ocorre o processo de sociabilização da cultura médica e do conhecimento próprio de cada cultura.

Importante ressaltar que assim como os elementos culturais, os componentes cognitivos e materiais se transformam a medida que os grupos sociais experimentam novos desafios e problemas. Tanto a medicina intercultural quanto a médica tradicional ocidental experimentam transformações em seus modelos explicativos de enfermidades, incorporam novas tecnologias em seus processos terapêuticos e criam novas técnicas para abordar aspectos específicos da saúde dos usuários. Grupos humanos têm desenvolvido estratégias para enfrentar e prevenir a

enfermidade através de um sistema médico que lhes proporcione ações necessárias para recuperar a saúde, garantir o bem-estar e outorgar uma explicação consistente para o fenômeno da doença e da cura.

Da perspectiva cultural, um sistema de saúde, aqui não entendido de sua forma estrutural, constitui-se como um conjunto razoavelmente organizado, estruturado e coerente de agentes, modelos explicativos de saúde e enfermidade, práticas em busca da saúde, seja ela coletiva ou individual. A forma que esses elementos se organizam internamente, dando coerência ao sistema médico, depende do modelo sociocultural em que se desenvolve a prática da medicina. Assim as práticas medicinais são construções socioculturais que correspondem às necessidades de um lugar/grupo específico e nas quais é possível traçar uma dimensão conceitual e de conduta específica.

A dimensão conceptual dos sistemas médicos está relacionada diretamente com a cultura do paciente e dos profissionais. Analiticamente, corresponde aos modelos que explicam e fundamentam a enfermidade. Para O'Connor (1995), esta dimensão é composta por elementos culturais: axiomas e mecanismos de validação.

Todos os sistemas médicos apresentam axiomas, princípios baseados em modelos epistemológicos que sustentam a prática médica e distinguem os meios para validá-la e legitimá-la. Na medicina ocidental, por exemplo, os experimentos científicos e as provas clínicas constituem importantes fontes de validação. Um médico alopata não aceitará como prova de uma diarreia uma intervenção espiritual no alimento. Apesar disso, outras culturas aceitariam como fonte legítima dessa doença um sonho de um xamã, os símbolos da natureza etc. A lógica que opera a definição de saúde e doença é a mesma em ambos os sistemas (uma lógica que busca causas, alternativas e consequências). Contudo, diferem pelas premissas culturais e provas que a validarão, ou seja, distintas percepções e observações do mesmo fenômeno resultam em diferentes explicações da enfermidade.

A credibilidade que os pacientes dão a esses axiomas é que permite aceitar ou não as explicações acerca das causas de suas enfermidades e determinar a aderência ou não aos tratamentos de saúde, sabendo que o êxito em tratamento médico depende em grande medida de um conjunto de explicações e da relação entre médico e o paciente. Essa dimensão comportamental dos sistemas de saúde

também pode se distinguir pelos procedimentos e ações que os agentes se utilizam em um sistema médico para obter certos resultados. Isto implica que o profissional de saúde (seja médico, xamã ou curandeiro) e o modo de se tratar o paciente (cirurgia ou ritual), seja este coletivo ou individual, deve respeitar a dimensão física, social e cultural da enfermidade vista pelo outro. Em geral, todos os processos de interação social e cultural envolvem a existência de diferenças, e até antagonismos dos sistemas de crenças, o que faz com que a relação médico-paciente esteja sujeita a atritos.

Contudo, é importante notar que os conflitos entre os diferentes sistemas médicos não surgem somente das diferenças nos modelos explicativos que os sustentam, mas também da dominação social que um modelo de saúde exerce sobre o outro, o que pode ser minimizado dentro de uma perspectiva dos direitos humanos e da metodologia da cultura de paz.

Há ainda que se notar que a demanda por uma saúde intercultural, em nenhum momento, pressupõem a não atuação do Estado, pelo contrário, primam por um Estado forte tanto no fornecimento, quanto na fiscalização da prestação dos serviços de saúde e na realização das normas. Assim como também não significa que os indígenas não devam receber tratamento especializado não indígena de ponta, significa que o sistema de saúde deve acontecer respeitando a cultura e tradições desses povos, assim como sua própria vontade e consentimento em receber esses tratamentos. Os indígenas têm direito à melhor medicina que pode se oferecer a um não indígena no país.

Vale ressaltar que a concepção de saúde não é igual para todos os povos indígenas, visto que possuem modos de vida diferentes, vivem em locais distintos e professam várias religiões, sendo necessária a análise de cada caso específico para cada comunidade ou etnia.