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O saber médico foi aquele que por mais tempo se preocupou em conceituar saúde. Partindo do seu domínio sobre as patologias, acabou por situar a saúde unicamente

no campo da Biologia, apontando-a como a ausência de doença. Dessa forma, a saúde passou a ser conceituada como o bom funcionamento dos órgãos e de responsabilidade individual, ou seja, o indivíduo sendo o responsável pelo seu estado de saúde ou de adoecimento (MYNAIO, 1992).

Mesmo com o reconhecimento da importância das condições de vida das populações na determinação da sua saúde – aspecto que se tornou alvo de intervenções com o surgimento das cidades e da sociedade industrial – prevaleceu, no discurso médico, o “naturalismo” das causas das enfermidades, o que gerou a medicalização do espaço social. Apesar das condições gerais de vida passarem a ser consideradas como importantes na determinação do estado de saúde da população, permaneceu a visão de que elas somente pioravam ou agravavam uma predisposição interior do sujeito. Segundo Andrade e Araújo (2003, p. 73), “[...] nessa concepção, os aspectos estruturais da sociedade são considerados como externos aos indivíduos e grupos sociais e não o liame que os constitui”.

A introdução das ciências humanas e sociais no campo da saúde, por volta de 1920, trouxe contínuos questionamentos ao naturalismo e universalismo do saber médico (BIRMAN, 1991). Com isso, categorias como normal, anormal, patológico, começaram a ser problematizadas no sentido de que eram conceitos produzidos histórica e socialmente e, portanto, portadores de valores.

A constituição do discurso teórico da saúde coletiva, com a introdução das ciências humanas no campo da saúde, reestrutura as coordenadas desse campo, destacando as dimensões simbólica, ética e política, de forma a relativizar o discurso biológico (BIRMAN, 1991, p. 9).

Esse novo paradigma para se pensar a saúde – histórico e político – leva em conta todos os aspectos que concernem ao corpo, à mente e ao meio onde os sujeitos estão inseridos, não como instâncias que se tocam ou se complementam, mas sim que se cruzam, que estão em constante engendramento.

A organização Mundial de Saúde (OMS), define saúde como “[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consiste, somente, em ausência de doença” (DEJOURS, 1993, p.99). Entretanto, apesar de dessa conceituação avançar em relação `a idéia de saúde por oposição à doença e levar em conta não somente o aspecto biológico, mas também o social e subjetivo, ainda é passível de críticas. A primeira delas pode ser no sentido de questionarmos que “bem-estar” é esse? Ou seja, bem-estar a partir do ponto de vista de quem? Seria ele igual para todos os sujeitos? O conceito traz, portanto, a noção de uma certa universalidade no que se entende por bem-estar.

O segundo ponto passível de questionamento refere-se à noção implícita no conceito de uma certa estabilidade no estado de saúde. Segundo Dejours (1986, 1993), a própria fisiologia se encarregou de nos mostrar de forma muito clara que a condição essencial da vida é a variação. Nosso organismo, seguindo o movimento próprio da vida, passa por constantes variações (por exemplo, de hormônios, glicemia, etc.), sejam elas ao longo de nossa existência, sejam de um dia. A vida é, portanto, movimento, variação, instabilidade.

A vida não é [...] para o ser vivo, uma dedução monótona, um movimento retilíneo; ela ignora a rigidez geométrica, ela é debate ou explicação [...] com um meio que há fugas, vazios, esvaziamentos e resistências inesperadas (CANGUILHEM, 2002, p. 160).

A partir desse ponto de vista, a saúde não seria a capacidade de manter-se em um estado de completo bem-estar, mas sim de lançar-se nesse movimento que é característico da vida, de sentir-se bem, apesar de todas as variações, de todas as adversidades a que se está submetido. “A saúde deixa de ser um estado estático, biologicamente definido, para ser compreendida como um estado dinâmico, socialmente produzido” (BUSS, 2000, p. 174).

A saúde é muito mais um estado a ser almejado, buscado, e é esse movimento de busca o verdadeiro sentido de ter saúde. “O estado de saúde não é certamente um estado de calma, de ausência de movimento, de bem-estar e de ociosidade. É algo que muda o tempo todo [...]” (DEJOURS, 1986, p. 3). Diante das dificuldades, equilíbrios podem ser obtidos, mas sempre de forma precária, parcial, embora aceitáveis e satisfatórios. O importante é percebermos que a saúde não é algo que se tem ou não tem, que se alcança e depois basta conservar, mas, ao contrário, trata-se de uma busca e conquistas constantes.

De encontro a essa noção de vida e saúde, deparamo-nos com as formulações propostas por Geoges Canguilhem, em O normal e o patológico (2002). Para esse autor, a saúde é caracterizada pela capacidade do sujeito em enfrentar situações novas, por uma margem de tolerância às adversidades do meio. Sob esse prisma, a saúde não se caracteriza pela ausência de doença, mas sim pela maneira como o sujeito lida com a vida e até mesmo com a doença:

Estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar [...]. O homem sadio não foge diante dos problemas causados pelas alterações – às vezes súbitas – de seus hábitos, mesmo em termos fisiológicos; ele mede a sua saúde pela capacidade de superar as crises orgânicas para instaurar uma nova ordem (CANGUILHEM, 2002, p. 160-161, Grifo nosso).

Saúde é, portanto, a capacidade que os sujeitos têm de enfrentar as condições adversas do meio, de criar novas normas diante de novas situações. É possuir meios para criar caminhos em direção ao bem-estar físico, social e psíquico.

Se reconhecermos que a doença não deixa de ser uma espécie de norma biológica, conseqüentemente o estado patológico não pode ser chamado de normal no sentido absoluto, mas anormal apenas na relação com uma situação determinada. Reciprocamente, ser sadio e ser normal não são fatos totalmente equivalentes, já que o patológico é uma espécie de normal. Ser sadio significa não apenas ser

normal numa situação determinada, mas ser também, normativo, nessa situação e outras situações eventuais. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas (CANGUILHEM, 2002, p. 158, Grifo nosso).

Entretanto, não devemos cometer o erro de entender a saúde como mera capacidade de adaptação a novas situações. A saúde implica também a capacidade de transformação do meio em que se vive, de criação de novas regras (biológicas, sociais e psicológicas). Segundo Caponi (1997, p. 294), a saúde:

Es el sentimiento de tener la capacidad de superar las capacidades iniciales, es poder mandar a hacer al cuerpo aquello que en principio parecía imposible. Y esto puede ser dicho no sólo de los atletas o de las personas que consiguen ajustar su organismo a exigencias diferentes de aquellas que son esperables, sino también de aquellas que consiguen transformar, corregir un medio social que es adverso. Salud es entonces una capacidad de tolerancia o de seguridad que es más que adaptativa (Grifo nosso).

Assim, pensar o fenômeno saúde/doença requer de nós o abandono de formas dicotomizadas de pensamento. A saúde não concerne somente àquilo que diz respeito ao individual, ao subjetivo, a fatores internos, mas está intrinsecamente relacionada com contexto em que se vive e com o modo como cada um produz sua vida nesse contexto. Sabe-se que certas condições de trabalho, nutrição, habitação e ambiente são passíveis de causar adoecimento. Entretanto, não se pode afirmar que haverá sempre, entre essas condições e um estado de adoecimento, uma relação direta de causa e efeito. É possível que, mesmo em condições muito adversas de vida e trabalho, alguns sujeitos consigam ter/produzir saúde na medida em que criam formas de enfrentamento e transformação dessas condições, dessa realidade. A doença, a partir desse ponto de vista, caracteriza-se por uma redução das margens de tolerância às infidelidades do meio, pela redução da capacidade de enfrentamento

e transformação dessas condições. Por outro lado, as melhores e mais “ideais” condições de vida diminuem, mas não eliminam a possibilidade dos sujeitos adoecerem. Daí ser tão difícil definir saúde e impossível pensar na existência de regras fixas que possam indicar como alcançá-la.

Para Castellanos, citado por Ferreira e Buss (2002), o processo saúde/doença é condicionado pelo modo de vida, pelas condições de vida e pelo estilo de vida de uma sociedade. O modo de vida de uma sociedade, que varia conforme cada momento histórico, é a expressão das características do meio natural em que vive, de sua organização econômica e política, do desenvolvimento de suas forças produtivas, de sua forma de relacionar-se com o meio ambiente, de sua história, cultura e outros processos, que se configuram como sua identidade social. A situação de saúde de uma população tem relação estreita com o modo de vida da sociedade a que pertence. “O modo de vida de uma sociedade é uma unidade composta pelas diversas condições de vida dos diferentes setores da população que a compõem” (FERREIRA; BUSS: 2002, p.17). Assim, as condições de saúde de cada grupo de uma população estão articuladas com as condições de vida que possuem e com os processos que as produzem ou transformam.

Por outro lado, cada pequeno grupo, como uma família, ou indivíduo, tem um estilo de vida próprio, que está relacionado com seus valores e normas, hábitos de vida, trabalho, habitação e seu entorno, seu nível educacional, sua participação na produção e distribuição de bens e serviços e suas próprias características biológicas. Dessa maneira, podemos afirmar que,

[...] quando analisamos a situação de saúde de um determinado grupo da população, encontramos misturados, em um momento dado, os efeitos de múltiplos processos determinantes e condicionantes que expressam processos mais gerais do modo de vida da sociedade como um todo, processos mais particulares inerentes às condições de vida do grupo em questão e suas interações com outros grupos e, por

último, processos mais singulares, inerentes ao estilo de vida pessoal ou de pequenos grupos aos quais pertence (FERREIRA; BUSS: 2002, p.18).

Por fim, concebemos a saúde como algo que não é somente do campo do saber biomédico, dos especialistas. A saúde diz respeito a todos. Por isso, é de extrema importância que os profissionais de saúde levem em conta, em suas propostas de intervenção, o que a população tem a dizer sobre a própria saúde, o que ela considera fator de adoecimento, que formas de enfrentamento (de produção de saúde) ela cria em seu cotidiano. Essa concepção reafirma o caráter coletivo da produção da saúde, pois toda a sociedade está implicada nesse processo de conquista. A saúde, vista como uma conquista, pressupõe que a participação dos sujeitos coletivos é decisiva e indispensável.

É a partir dessa concepção de saúde, como a criação de formas de vida mais potentes, saudáveis e expansivas, que analisaremos a prática dos agentes de saúde. Colocaremos em análise se suas práticas têm evidenciado uma concepção de saúde restrita ao campo do biológico, como ausência de doença, ou se, ao contrário, comporta a dimensão social e subjetiva de que é portadora.

Sendo a saúde entendida como a capacidade de lutar para mudar o meio em que se vive, de enfrentar as condições adversas de vida, o que é, então, promover saúde para os agentes? Que ações eles são capazes de implementar na comunidade, na luta pela superação das adversidades do meio e pela criação de outras condições de vida? Estarão suas ações centradas nos indivíduos ou nos grupos como potência de transformação? Serão, portanto, essas, entre outras questões, objeto de nossas análises.