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CAPÍTULO 3 – TRABALHO E SAÚDE

3.3. Saúde psíquica e trabalho

O estudo da relação entre saúde psíquica e trabalho se constituiu nos últimos cinqüenta anos, quando se reconheceu que as demandas dos trabalhadores ultrapassavam os limites do modelo biomédico. Esse campo de estudo se originou na França, entre as duas guerras e se afirmou nos anos 50 como psicopatologia do trabalho, strictu sensu (DEJOURS, 2007a), período no qual se destacou o trabalho pioneiro de Louis de Le Guillant.

A Psicopatologia do Trabalho surgiu na França, em meados do século XX, integrando o movimento de psiquiatria social. Dividiu-se originalmente em duas correntes: organogênese, que partia de uma concepção organicista e dinâmica da doença mental, e a sociogênese, baseada nos trabalho de Politzer, que buscava situar a origem da doença mental nos determinantes sociais. O maior representante da corrente orgânica foi Paul Sivadon, que foi também precursor da psicopatologia do trabalho, tendo utilizado esse termo pela primeira vez, como título de um artigo que publicou em 1952, no qual apontou a relação entre certos tipos de trabalho e doenças mentais, indicando também a possibilidade de que o trabalho fosse utilizado como recurso terapêutico para portadores de distúrbios psiquiátricos (LIMA, 2002).

O maior expoente da corrente sociogênica da psicopatologia do trabalho foi Louis de Le Guillant, contemporâneo de Sivadon, que produziu ampla variedade de estudos

acerca de diversas categorias profissionais, dentre as quais se destacam empregadas domésticas, telefonistas e mecanógrafos. Tendo constatado a existência de grande número de empregadas domésticas internadas em hospital psiquiátrico, em meados do século XX, Le Guillant (1963/2006) passou a buscar as relações entre trabalho e doença mental, desenvolvendo estudos acerca do caráter patogênico desta e de outras ocupações, o que conduziu à análise do trabalho de telefonistas, resultando na publicação do clássico “A Neurose das Telefonistas” em 1956 (LE GUILLANT et al, 1956/2006; JACQUES, 2003).

A busca de Le Guillant era delinear uma psicopatologia social, pretendendo enfatizar a importância do ambiente de trabalho no surgimento e no desaparecimento dos distúrbios mentais. O autor não aborda a importância dos fatores orgânicos nesses distúrbios, mas postula o papel determinante do meio na compreensão do psiquismo humano e, portanto, na gênese da doença mental. “Não pretende estabelecer uma concepção sociogenética dos distúrbios mentais, mas mostrar que esta perspectiva pode ampliar sua compreensão” (LIMA, 2002, p. 59). Le Guillant estabeleceu uma correlação entre determinados tipos de ambientes laborais e o surgimento, freqüência e gravidade das doenças mentais, tendo efetivamente produzido uma grande contribuição para a psicopatologia do trabalho, ainda em seu início.

Passados cinqüenta anos, a contribuição teórico-metodológica de Le Guillant continua atual, e ainda mais pertinente tendo em vista o agravamento das exigências de muitos tipos de trabalho. Esse autor propôs uma abordagem pluridimensional, em que se busca a explicação de fatos concretos relativos às condições de vida e de trabalho dos pacientes, conjugados ao universo subjetivo e das relações interpessoais. Dentre suas principais contribuições teóricas, destaca-se o fato de ter equacionado de forma muito

pertinente a questão da relação entre subjetividade e objetividade na constituição do psiquismo. No plano metodológico, deixou uma grande contribuição ao estabelecer um diálogo entre os dados estatísticos e casos particulares, utilizando ampla variedade de instrumentos de coleta e triangulação de dados: observações, questionários, entrevistas, pesquisa a arquivos de sindicatos, serviços médicos de empresa, dados estatísticos diversos e elementos da literatura (LIMA, 2002). Construiu uma via adequada para alcançar seu objetivo, o de entender de que formas as condições de vida e de trabalho constituem um contexto psicológico determinado, e como nestas relações se estabelece o caráter patogênico.

As críticas mais relevantes ao trabalho de Le Guillant se referem à sua adesão a Pavlov, e também à sua interpretação da obra de Marx e Hegel, em que o autor apresenta equívocos e reducionismos. Todavia, estas lacunas não comprometem a importância de sua obra pioneira na abordagem científica da relação homem / trabalho, visto que Le Guillant apreendeu aspectos centrais que ainda são basilares para os estudos contemporâneos em saúde mental e trabalho, meio século depois de suas pesquisas seminais (LIMA, 2002; 2004; JACQUES, 2003).

3.3.1. Abordagens contemporâneas em saúde mental e trabalho no Brasil

Dentre os autores cujas publicações tiveram repercussão e impulsionaram o debate acerca de saúde mental e trabalho no Brasil, destaca-se a importância da obra de Seligmann-Silva (1994; 1994b), que propôs o modelo baseado no conceito de desgaste mental, largamente utilizado nas discussões acerca de saúde do trabalhador e

particularmente na área de saúde mental e trabalho (SELIGMANN-SILVA, 1994; JACQUES, 2003; CODO, SORATTO e VASQUES-MENEZES, 2004).

Seligmann-Silva (1994) propõe a analogia entre o conceito de desgaste físico e desgaste mental, tendo como base a concepção de que o trabalho dominado produz um desgaste da identidade, abrangendo os valores e as crenças, tendo o potencial para ferir a dignidade e a esperança. Esse processo atinge a personalidade e a vida mental, alcançando a economia psicossomática, cuja estabilidade (essencial para a saúde) pode ser rompida pela experiência social ligada às situações de trabalho. Pesquisas em ambiente industrial mostraram que o desgaste pode se manifestar em sintomas como cansaço crônico, fadiga, irritação, perturbações do sono, medo de sofrer acidente e desânimo, que precedem, em muitos casos, manifestações de doenças mentais e internações psiquiátricas. Os principais distúrbios mentais observados foram consumo excessivo de álcool, síndromes neuróticas vinculadas ao trabalho, distúrbios psicossomáticos e crises epilépticas (SELIGMANN-SILVA, 1994). O conceito de desgaste mental mostrou-se fecundo, sendo amplamente utilizado por diversos autores em estudo de diferentes áreas que abordam a subjetividade no trabalho.

No Brasil os estudos em saúde mental e trabalho se multiplicaram a partir dos anos 90, constituindo uma expressiva produção nacional. Atualmente os estudos realizados no Brasil estão sendo agrupados em três grandes vertentes: abordagem Epidemiológica ou Diagnóstica, estudos centrados no Estresse e estudos fundamentados na Psicodinâmica do Trabalho (CODO; SORRATO; VASQUES- MENEZES, 2004). As duas primeiras vertentes serão apresentadas de forma sintética, e a psicodinâmica do trabalho, que fundamenta esta pesquisa, será apresentada com

maior detalhamento e aprofundamento, no segundo capítulo, intitulado “Análise psicodinâmica das situações de trabalho”.

3.3.1.1. Abordagem Epidemiológica ou Diagnóstica

A abordagem epidemiológica em Saúde Mental e Trabalho se estruturou, no Brasil, a partir do final da década de 70, sob influência do movimento de psiquiatria social, que buscou tecer relações entre a clínica, a epidemiologia, o planejamento e as políticas de saúde pública, para aplicá-los, de forma integrada, ao campo de saúde mental. Dentre as duas principais vertentes epidemiológicas, russo/anglo-saxã e franco/latino-americana, os trabalhos nacionais se afiliam à última, que se fundamenta no materialismo histórico (JACQUES, 2003).

Os pesquisadores da abordagem epidemiológica buscam sua teorização em Leontiev e Marx e se consideram fiéis à tradição de L. Le Guillant quanto ao aporte teórico-metodológico, buscando a integração de aspectos objetivos e subjetivos, dedicando-se a estudar as probabilidades de ocorrência de determinadas doenças mentais em determinadas categorias profissionais, tomando como base a análise das características específicas de seu trabalho (CODO, 2002; 2004).

Um grupo expressivo de pesquisadores brasileiros tem investigado a existência de nexo entre doença mental e trabalho (CODO, 2000, 2002, 2004; JACQUES, 2002, 2003; LIMA 2002; 2004). Existem duas questões fundamentais implicadas nesta busca: uma de natureza teórica, relacionada ao debate acerca do papel do trabalho no surgimento da doença mental (se causador ou desencadeador), e outra voltada para a necessidade de estabelecer o nexo causal entre o trabalho e a doença mental, para atender aos

dispositivos legais necessários à concessão de benefício previdenciário de auxílio por doença (JACQUES, 2003).

No aspecto metodológico, as pesquisas de abordagem epidemiológica desenvolveram um instrumental que tem como objetivo medir as condições de trabalho, a partir de treze escalas de trabalho, e as condições de saúde mental dos trabalhadores, a partir de sete escalas (depressão, histeria, paranóia, mania, esquizofrenia, desvio psicopático e obsessão), e uma escala para alcoolismo. Além disso, utiliza um protocolo para observação do trabalho e análise das tarefas, bem como entrevistas de aprofundamento. Utiliza técnicas quantitativas e qualitativas: a utilização de técnicas quantitativas pretende atender ao princípio da epidemiologia, sendo complementado por entrevistas de aprofundamento, para apreender a psicodinâmica (CODO, 2002).

As pesquisas de base epidemiológica permitiram o estabelecimento de nexo entre trabalho e a manifestação de sintomas de certas síndromes profissionais em grande número de sujeitos pertencentes a determinadas categorias profissionais, como a síndrome do trabalho vazio entre bancários (CODO, 2004) e a síndrome do Burnout entre educadores (JACQUES; CODO, 2002). Todavia, ao tentar estabelecer o nexo causal entre doença e trabalho, a abordagem diagnóstica corre o risco de minimizar a multicausalidade dos quadros de adoecimento, embora a mencione.

3.3.1.2. Estudos centrados no Estresse

Nas últimas décadas os quadros de estresse estão se intensificando nas sociedades urbanas industriais, sendo considerados, por alguns autores, como um problema de saúde pública, que abrange aspectos psicossociais e econômicos. O estilo

de vida contemporâneo favorece o estresse, especialmente nas situações ligadas ao trabalho, visto que a acumulação flexível do capital intensifica as exigências de desempenho, trazendo aumento de tensão aos trabalhadores, que precisam enfrentar permanentemente um ambiente de alta competição, o que é posto como condição para permanecer no contexto da produção (MENDES, 2004c).

O controle do estresse ocupacional, além de ser uma preocupação da ordem da saúde pública, tornou-se uma preocupação para os gestores, tendo em vista os prejuízos causados à produtividade em decorrência de doenças relacionadas ao estresse. Todavia, a preocupação dos gestores com o controle do estresse não se relacionam à saúde do trabalhador e sim ao interesse da produção. Apresenta ainda aspectos contraditórios: o aumento do estresse é um dos subprodutos da organização de trabalho pautada nos valores da produção ligados à organização flexível do capital. Por isso, a preocupação dos gestores com o estresse ocupacional se apresenta como um paradoxo: ao mesmo tempo em que reconhecem que esse é necessário para manter a produção, quando ultrapassa determinado limite, torna-se uma fonte de preocupação por comprometer a referida produção (FERREIRA; MENDES, 2003; FILGUEIRAS; HIPPERT, 2002; MENDES, 2004c).

O conceito de estresse é originário do campo da física, e significa primariamente

tensão. Este conceito foi amplamente incorporado pela área de saúde a partir dos

estudos de Hans Selye, que o utilizou para designar uma Síndrome Geral de Adaptação (SGA), visto que o estresse não é passível de observação direta. A SGA consiste em uma resposta inespecífica a uma situação, composta por três fases: A primeira, de alarme, caracteriza-se por manifestações agudas que preparam o organismo para luta ou fuga; quando o organismo permanece submetido ao agente estressor, ocorre a

segunda fase, que é a síndrome de resistência, em que o organismo utiliza suas energias para manter a atividade, conduzindo à sensação de desgaste; se o quadro persistir, se chega à terceira fase, que se caracteriza pela exaustão, em que o organismo já não tem como reagir, podendo inclusive chegar à morte (FILGUEIRAS; HIPPERT, 2002).

O quadro de estresse abrange um processo neuroendócrino, que inclui interconexões entre córtex cerebral, hipotálamo, hipófise, glândulas supra-renais e alterações bioquímicas, com nítida dimensão biológica. Um organismo submetido a estados intensos e freqüentes de estresse pode desenvolver alterações como a dilatação do córtex da supra-renal, atrofia de órgãos linfáticos e diversas doenças (FILGUEIRAS; HIPPERT, 2002; JACQUES, 2003). Os principais sintomas fiscos são: fadiga, dores de cabeça, dores no corpo, insônia, alterações intestinais, náusea, tremores e susceptibilidade a resfriados, dentre outros. Os sintomas psíquicos mais comuns são: diminuição da capacidade de concentração e memorização; indecisão, confusão, perda do senso de humor, ansiedade, nervosismo, depressão, raiva, frustração, medo, irritabilidade e impaciência (MENDES, 2004c).

O estresse está associado ao surgimento ou agravamento de diversas doenças, como alergia, asma e doenças imunológicas associadas a uma ativação excessiva do sistema hipotálamo-hipófise-supra-renal, estando também ligado a problemas digestivos e cardiovasculares, como hipertensão. Pode vir acompanhado de sintomas psicológicos, como agravamento de quadros neuróticos ou psicóticos pré-existentes, ou ainda pode ocasionar o surgimento de sintomas como a supervalorização de eventos de pouca importância, por vezes relacionados a comportamentos agressivos ou violentos. Existem ainda outros sintomas que podem acompanhar quadros de estresse, como os sintomas

depressivos, transtornos de sono, de apetite, perda de interesse sexual, uso abusivo de medicamentos, alcoolismo, tabagismo e uso de drogas ilícitas (JACQUES, 2003).

A aplicação do conceito de estresse ao contexto psicológico partiu da tradição anglo-saxã, que valoriza os aspectos cognitivos-comportamentais e enfatiza as respostas do indivíduo em relação ao seu ambiente, e a avaliação que este faz dos elementos estressores, ou seja, o quanto a situação é prejudicial a seu bem estar, e que mudanças cognitivas e comportamentais devem ser adotadas diante do estressor. Por se inspirarem no modelo das ciências naturais, com ênfase na perspectiva biológica e adaptacionista (JACQUES, 2003), os estudos de estresse que partem dessa matriz teórica não avançam no questionamento das relações sociais que promovem condições estressoras de vida e de trabalho.

Por esta razão, na presente pesquisa o estresse será abordado a partir da perspectiva da tradição francesa, à qual se filia a concepção psicodinâmica, que considera os aspectos sociais, ligados à organização de trabalho, como determinantes no quadro de estresse. Dentro deste quadro de referência, Mendes (2004c) define o estresse ocupacional como “fenômeno resultante de uma tensão acumulada em função do contínuo e intenso esforço do indivíduo para se adaptar às demandas internas e externas, que lhe são impostas pelas dimensões da organização condições e relações sociais de trabalho” (p. 2). Nessa visão, os aspectos somáticos, psíquicos e sociais são interdependentes e indissociáveis.

Sendo praticamente impossível erradicar o estresse ocupacional, é necessário buscar estratégias que ajudem a preveni-lo, relacionadas às oportunidades oferecidas pelos diferentes contextos de trabalho, que se manifestam nas práticas cotidianas, favorecendo ou dificultando o enfrentamento do estresse.

No enfoque da psicodinâmica, o estresse ocupacional é resultado de um sofrimento freqüente e intenso, relacionado à organização do trabalho (conflitos, frustrações), em uma situação em que as estratégias de enfrentamento fracassaram (MENDES, 2004c). Nesta perspectiva, o prazer e o sofrimento são antecedentes do estresse. A opção dessa pesquisa é abordar o estresse enquanto decorrência do

sofrimento fracassadamente enfrentado, privilegiando o estudo da organização de

trabalho e das situações de prazer-sofrimento, que antecedem o quadro de estresse ocupacional, o que será apresentado no capítulo seguinte, dedicado à psicodinâmica do trabalho.