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CAPÍTULO 4- A ANÁLISE PSICODINÂMICA DAS SITUAÇÕES DE TRABALHO

4.3. O trabalho enquanto trabalho vivo

Na psicodinâmica, a compreensão de trabalho remonta à concepção marxiana, em que o trabalho do operário é o “(...) trabalho vivo, sangue e vida do capital” (MARX, 1975, p. 61). O trabalho vivo é aquele realizado pelas pessoas, em contraste com o trabalho morto, realizado pelas máquinas, que só funcionam mediante o comando de um operador83, cuja capacidade, vontade e ação são indispensáveis ao funcionamento dos autômatos.

A ergonomia da atividade também forneceu uma grande contribuição à concepção de trabalho da psicodinâmica, ao mostrar a existência de uma distância irredutível entre trabalho prescrito e trabalho real. Essa defasagem é inevitável porque o real do trabalho sempre se manifesta como o novo, o inusitado. Assim, o trabalho é definido como “a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda não está

83 Operador é o termo que atualmente designa os trabalhadores que atuam em seções em que foi adotada a automação industrial, substituindo o termo operário (DEJOURS, 2001).

prescrito pela organização do trabalho” (DEJOURS, 2004, in LANCMAN; SZNELWAR, 2004- Epígrafe).

Decorrendo dessa compreensão, o trabalho não é o emprego, não é o salário, nem ainda o conjunto de tarefas prescritas formalmente para determinado posto84, o que

se supunha que constituía o cerne do trabalho. O trabalho é, então, precisamente o que a pessoa precisa fazer para preencher a defasagem entre a organização prescrita e o real, ao realizar sua tarefa. A mobilização é essencial para preencher essa lacuna: é quando se convoca a inteligência prática, acompanhada pela vontade de resolver o problema; a solução do mesmo é um produto da experiência, das habilidades e do engajamento, integrando o corpo o afeto e o intelecto.

O trabalho vivo é necessário em todas as esferas da produção, inclusive nas seções industriais automatizadas, porque em qualquer situação de trabalho acontecem incidentes, inclusive no funcionamento de máquinas, onde há sempre o risco de panes ou acidentes. Assim, a situação de trabalho nunca se apresenta exatamente como foi prevista, razão pela qual a prescrição formal é sempre insuficiente; portanto, trabalho é aquilo que transcende à máquina. Dessa forma, na acepção da psicodinâmica “todo trabalho é sempre trabalho de concepção, uma vez que é mobilizado justamente ali onde a ordem tecnológica maquinal é insuficiente” (DEJOURS, 2004a, p. 65). Por comportar precisamente a dimensão humana, o trabalho é definido como a criação do novo, do inédito (DEJOURS, 2004a; 2007b; DEJOURS; MOLINIER, 2004; FERREIRA; MENDES, 2003).

84 Conjunto de prescrições detalhadas nas descrições de tarefas que definem uma função, que passou a ser novamente valorizado a partir dos anos 90 com os protocolos para certificação nas normas da série ISO 9000, que certifica em padrões internacionais de qualidade.

A impossibilidade de dar conta da tarefa somente a partir da prescrição é nomeada, por Dejours (2007b), como experiência com o real do trabalho85. Trabalhar é ir de encontro ao real. E o real do trabalho se revela quando as técnicas de que se dispunha até então, seguindo a prescrição da tarefa, fracassam. Assim há um paradoxo no encontro com o real, porque ele se dá a conhecer como fracasso, como experiência de sofrimento, que se transforma em angústia quando o sujeito não consegue resolver o problema.

Portanto, é na esfera afetiva que o real se revela àquele que trabalha. Trabalhar, assim, é não apenas preencher a distância entre o real e o prescrito, mas é também a capacidade de superar esse real. Para isso é necessário desenvolver um tipo particular de inteligência, que se volta para a busca de respostas para um novo problema, que demanda a descoberta - ou invenção – de uma nova solução: a inteligência prática, que revela a engenhosidade (Idem).

A criação de solução para os novos problemas só é possível a partir da mobilização da engenhosidade, que revela uma forma de inteligência essencialmente prática, fundamentada no corpo, que envolve a experiência sensorial, e por vezes precede a cognição. Para resolver uma pane os técnicos precisam “ouvir a máquina” e “sentir seu funcionamento86”; a partir da experiência, habilidade e astúcia conseguem realizar os ajustes. É o corpo que experimenta o real, através dos sentidos. Muitas vezes os técnicos não sabem explicar como conseguiram resolver o problema, porque a

85 Essa compreensão do real é fruto do diálogo com a filosofia, especialmente baseado em Hegel (DEJOURS, 2007b).

86 Informação oral, obtida em conversa informal com um técnico de manutenção máquinas de inserção automática da Empresa B, em que ele explicou como descobre alguns defeitos incomuns (maio de 2005).

inteligência do corpo está à frente do psiquismo, sendo anterior à simbolização (DEJOURS, 2007c).

Embora seja pouco conhecida na atualidade, a inteligência prática já era mencionada na Grécia. Na cultura grega, a inteligência prática era representada por

méthis, situada no centro da profissão, como sua fundadora; ela garantia o sucesso nas

provas práticas e na ação, sendo associada à engenhosidade, como princípio do ofício. A inteligência prática é, também, solidária ao corpo, por buscar os melhores resultados com o mínimo de sofrimento. Envolve astúcia, tanto na busca de solução para os problemas quanto na “economia do esforço”, pois se busca obter o máximo, da melhor forma possível, com o mínimo dispêndio energia. Essa forma de inteligência está presente em todas as atividades, não somente nas manuais, podendo estar também no cerne das atividades intelectuais; é referida, na tradição francesa, como engenhosidade. E na literatura norte-americana é nomeada como habilidades tácitas ou habilidades incorporadas (DEJOURS, 2004h; 2007b; 2007c).

O reconhecimento da importância da engenhosidade leva à questão de como se adquire ou se desenvolve esse tipo de conhecimento, essa “virtuosidade”. Ela só se manifesta depois de um contato prolongado com o trabalho, quando se agrega habilidade, inteligência e vontade, desenvolvendo a capacidade de interagir com o trabalho. No caso dos músicos instrumentistas, virtuoses, o instrumento se integra ao corpo ao ponto de parecer sua continuidade; é essa integração que possibilita a expressão dos sentimentos e o despertar de sentimentos no ouvinte87. No caso dos

87 Especialmente desperta o sentimento e enleva (chegando freqüentemente ao choro), especialmente se o ouvinte também é um músico e conhece as regras da arte; ao escutar a peça, interpretada com virtuosidade, o músico é capaz de reconhecer a perícia e o esforço que foram empreendidos para alcançar tal nível de beleza e perfeição (DEJOURS, 2007c).

operadores, é necessário estabelecer um diálogo com as reações da máquina, sentir a máquina. Só a intimidade com a máquina permite perceber a diferença na cadência, o que é uma experiência corporal.

Na pesquisa empírica, destaca-se o exemplo da operadora Socorro, que trabalha, há um ano, operando uma máquina muito rápida e complexa, e mencionou que nunca cometeu nenhum erro, sendo, por isso, considerada pelos colegas como “referência”. Falando sobre seu prazer de trabalhar com aquela máquina, Socorro (Empresa B) destaca seu apego àquele instrumento de trabalho:

É uma máquina muito rápida, mas é uma máquina muito boa de trabalhar. Eu pelo menos gosto de trabalhar na linha X, né? Aí a gente diz assim: “Ah, não quero ir pra outra linha”... Às vezes meu supervisor diz: “não, vou trocar, pra outra linha”, mas... a gente acostuma, né? É uma coisa que a gente tá aqui, a gente trabalha naquela linha, a gente sente... [Quando] chega alguém perto, a gente sente até ciúme! Né... a gente fica com aquilo ali... “linha X”! “Não chega na linha X, não bagunça na linha X, porque eu trabalho lá não gosto de ver ela bagunçada”; (....) É assim, né, você se adapta com aquele trabalho e você sente ciúme... quer fazer o melhor. Sempre, no que eu tou fazendo, tou procurando fazer o melhor (....) E é isso, a linha X é uma linha rápida, né, de trabalhar, é uma linha que exige muito do operador (....) , a gente vai aprendendo; cada dia é um aprendizado, pra gente.

Nessa fala a operadora Socorro explica por que não quer trocar de posto: gosta da máquina, aprende com ela e até “sente ciúmes”, exemplificando nesse relato a integração corpo-afeto-intelecto.

Dejours (2007b) destaca que há um círculo virtuoso entre o desenvolvimento da inteligência do corpo e a ampliação das habilidades, com ganhos no registro da identidade: ao mesmo tempo em que se aprofunda a intimidade e o conhecimento da

máquina, o sujeito descobre em si novas habilidades, o que é uma fonte de prazer, como informou o operador Joaquim, da Empresa B:

Aí, isso dá prazer de sempre querer aprender mais, né? Aprender a mexer mais... Eu sei mexer nas máquinas, mas não o suficiente ainda. Isso me torna... um cara curioso, tentando aprender muito mais; eu sei que eu tenho capacidade de aprender muito mais (....) porque todo dia você descobre um algo novo... todo dia eu tento descobrir algo novo na máquina.

Por essa razão, o trabalho pode ser mediador para a saúde uma vez que possibilita a descoberta de novas habilidades, ampliando a sensibilidade e enriquecendo a subjetividade. Ao gostar da máquina, senti-la, escutá-la, o operador passa a aprender com ela, acariciá-la, amá-la; as descobertas construídas nessa relação pessoa-máquina tornam aquele sujeito único, inigualável. O benefício no plano da identidade, decorrente dessas novas habilidades, possibilitadas pelo exercício da inteligência do corpo, faz com que o sujeito passe, então, a amar mais a si mesmo, o que constitui a base da saúde mental (DEJOURS, 2007b).