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V. CADÊNCIAS: CORPO E CORPOREIDADE NO FAZER ARTESANAL

5.2. A sabedoria das mãos

A palma da mão é uma prodigiosa floresta muscular. A menor esperança de ação a faz estremecer.

Gaston Bachelard

Aristóteles se equivocou ao afirmar que os humanos tinham mãos porque eram inteligentes; Talvez Anágoras estivesse mais certo ao sustentar que os humanos eram inteligentes porque tinham mãos.

Marjorie O ‘ou keàBo le

Luz e mãos moldaram a impossível fronteira entre oceano e ventre. Luz e mãos me consolaram da incurável solidão de ter nascido.

Mia Couto

Heidegger associa a mão diretamente com a capacidade humana de pensar, a mão capta a materialidade do pensamento e a converte em imagem concreta (Pallasmaa, 2012, p. 14). Por meio das mãos, o homem trava contato com a dureza do pensamento.

Talvez seja a própria mão quem imagina, admite Bachelard aludindo aos sonhos da mão:

Se a poesia deve reanimar na alma as virtudes da criação, se deve nos ajudar a reviver, em toda a sua intensidade e em todas as suas funções, nossos sonhos naturais, precisamos compreender que a mão, assim como o olhar, tem seus devaneios e sua poesia (Bachelard, 2001, p.66).

Etimologicamente o termo poiein sig ifi aà faze .à Essaà pala aà est à aà aizà daà palavra poesia (Sennett, 2008, p.34). Assim, os poetas aparecem também como artífices.

Focillon (2012) considera o escritor Victor Hugo como o próprio artífice, um tipo de homem que faz uso das mãos para atacar a matéria e trabalhá-la. Ao citar T a alhado esàdoà a , descreve as mãos com que Victor Hugo teceu o romance:

Livro escrito com mãos de marinheiro, de carpinteiro e de ferreiro, que toma posse rudemente da forma do objeto e que o modela no mesmo ato de se moldar a ele (Idem, p. 28).

Na evolução da mão, a oposição entre o polegar e os demais dedos foi se to a doà adaà ezà aisàa ti ulada.à ága a à o àfo çaà àa te io àaàaga a à o à precisão à Pallas aa,à ,àp.à .

O homem fez a mão, isto é, destacou-a pouco a pouco do mundo animal, libertou-a de uma antiga e natural servidão, mas a mão também fez o homem. Permitiu-lhe certos contatos com o universo que os outros órgãos e partes do corpo não facultavam (Focillon, 2012, p. 9).

A mão ativa é capaz de se distender ou se encolher para alcançar, recolher e conter o objeto. Porém, não lhe basta apenas apanhar, empunhar, agarrar, segurar ou largar, a mão deseja sempre mais, ela almeja transformar, trabalhar no que ainda não há. E, para saciar as mãos, o ser humano inventou a arte.

A arte começa pela transmutação e continua pela metamorfose. A arte não é o vocabulário do homem falando ao Senhor, mas a renovação perpétua da Criação. É invenção de matérias, ao mesmo tempo que é invenção de formas. A arte constrói para si uma física e uma mineralogia. Mete as mãos nas entranhas das coisas para lhes dar a figura que lhe aprouver. É antes de tudo artesã e alquimista (Focillon, 2012, p. 18).

Comumente consideramos as mãos como membros triviais, apêndices que somente executam atividades ditadas pelo cérebro, esse sim dotado de funções superiores. No entanto, ao longo deste trabalho já demonstramos em diversos momentos que as mãos exercem uma preeminência sobre outros órgãos do nosso corpo e que, muito além de apenas perceber o mundo e executar tarefas, as mãos detêm conhecimentos, pensam, se emocionam, desejam, imaginam e sonham.

No campo mais concentrado, segura de si mesma e de seus movimentos, essa mão que sujeita às dimensões do microcosmo as enormidades do homem e do mundo é um prodígio por direito próprio. Não é uma máquina de reduzir. O que lhe importa é menos o rigor de uma medida estreita e mais a sua própria capacidade de ação e de verdade (Idem, p. 32).

As mãos revelam a idade, a altura, o peso, a personalidade, o estado de espírito, a profissão de alguém. As impressões datilares garantem a identidade, na ponta dos dedos está representada toda a pessoa. São praticamente inexistentes os trabalhos humanos que não utilizam as mãos. A mão é a executora de labores.

Nos ofícios artesanais, o artesão dedica milhares de horas de sua existência concentradas nas mãos. Quanto mais bem feito for o trabalho, mais a mão do trabalhador está presente, a destreza das mãos funciona como referência para a qualidade da produção humana.

Teremos banido de nossas reflexões, como artesãos de habilidade em tudo maquinal, aquelas que, com uma paciência delicada e infalível, despertaram em matérias seletas e sob formas refinadas os sonhos mais concentrados? (Idem, p. 32).

Poetas, filósofos, pintores, escultores de todas as épocas e lugares reverenciam i essa te e teà asà osà hu a as.à E à u à eloà t e hoà deà áà a e a ,à Jos à Saramago desfia poeticamente a primazia das mãos sobre o cérebro:

(...) Na verdade, são poucos os que sabem da existência de um pequeno cérebro em cada um dos dedos da mão, algures entre a falange, a

falanginha e a falangeta. Aquele outro órgão a que chamamos cérebro, esse com que viemos ao mundo, esse que transportamos dentro do crânio e que nos transporta a nós para que o transportemos a ele, nunca conseguiu produzir senão intenções vagas, gerais, difusas e, sobretudo, pouco variadas acerca do que as mãos e os dedos deverão fazer. Por exemplo, se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e ficar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma ordem às mãos e aos dedos, crê, ou finge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de se perguntar por que razão o resultado final dessa manipulação, sempre complexa até nas suas mais simples expressões, se assemelha tão pouco ao que havia imaginado antes de dar instruções às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos veem. O auxílio dos olhos é importante, tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi precisamente revelar o oculto. O que no cérebro possa ser percebido como conhecimento infuso, mágico ou sobrenatural, seja o que for que signifiquem sobrenatural, mágico e infuso, foram os dedos e os seus

pequenos cérebros que lho ensinaram. Para que o cérebro da cabeça soubesse o que era a pedra, foi preciso primeiro que os dedos a tocassem, lhe sentissem a aspereza, o peso e a densidade, foi preciso que se ferissem nela. Só muito depois o cérebro compreendeu que daquele pedaço de rocha se poderia fazer uma coisa a que chamaria faca e uma coisa a que chamaria ídolo. O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo nestes tempos, quando nos parece que passou à frente delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar o barro, a dilaceração aguda do cinzel, a mordedura do ácido na chapa, a vibração sutil de uma folha de papel estendida, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo. (...) Toda a arqueologia de materiais é uma arqueologia humana. O que este barro esconde e mostra é o trânsito do ser no tempo e a sua passagem pelos espaços, os sinais dos dedos, as raspaduras das unhas, as cinzas e os tições das fogueiras apagadas, os ossos próprios e alheios, os caminhos que eternamente se bifurcam e se vão distanciando e perdendo uns dos outros. Este grão que aflora à superfície é uma memória, esta depressão a marca que ficou de um corpo deitado. O cérebro perguntou e pediu, e a mão respondeu e fez (Saramago, 2000, p. 82).

A insinuação de Saramago de que são os cérebros das mãos e não o cérebro da cabeça quem dialoga com o material, no caso o barro, faz todo o sentido. Quando modelamos uma peça, cada pequena parte das nossas mãos conduz um movimento diferente sobre a argila originando uma orquestra de ações táteis que se sincronizam para estruturar o objeto.

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