• Nenhum resultado encontrado

Saber fazer versus normatização e padronização da produção artesanal do queijo

Goodman et al. (1990), na obra Da lavoura às tecnologias, utilizam os conceitos de substitucionismo e apropriacionismo, elucidando o desenvolvimento da agricultura associado ao capital industrial. A noção de substitucionismo está relacionada ao produto rural substituído por produtos industriais, salientando o desenvolvimento da indústria alimentícia. O apropriacionismo constitui-se em um movimento empreendido para reduzir a importância da natureza na produção agrícola através da mecanização dos instrumentos de trabalho, visando transformar as práticas da produção biológica em conhecimento científico e propriedade industrial.

O substitucionismo, conforme Goodman et al. (1990), possibilita a substituição do processo natural e artesanal da produção, pela utilização de matérias-primas não agrícolas, a exemplo do desenvolvimento da indústria química e de sintéticos. Assim, afirmam,

Na produção artesanal, a mecanização resultou na transformação substancial e no eventual deslocamento do processo de produção herdado, criando a base

96 para a reorganização radical na divisão social do trabalho e para o surgimento da indústria moderna (GOODMAN et al., 1990, p. 10).

O século XIX intensificou a corrida à indústria e à produção de alimentos padronizada, ancorada em técnicas validadas em normas de sanidade, desconsiderando- se a biodiversidade.

Desse modo, a produção artesanal no século XIX sofre transformações e as técnicas artesanais ancoradas nos costumes e nas tradições dão lugar às novas tecnologias desenvolvidas e às grandes instalações. No final do referido século, o cultivo artificial de “mofos” e a utilização de fermentos de ácido láctico foram utilizados para melhorar a fermentação, e tais práticas passaram a ser utilizadas regularmente. Essas práticas nem sempre são bem vistas pelos produtores:

Já estão produzindo um queijo com todas as bases do artesanal, só que de leite pasteurizado, então isso é um absurdo, agora nós não podemos deixar isso aí, confundir com um queijo artesanal da indústria, isso não existe.Mas a indústria está fazendo, então, aí, um queijo gostoso, mas um é a máquina que fez, a máquina simplesmente controlada pelo homem com todos os seus recursos, e o outro por um homem com seus olhos (Emanuel, Serro).

Este queijo do qual Emanuel se refere é produzido com uma bactéria isolada do pingo (fermento lático natural) responsável pelas características de aroma e sabor do queijo artesanal, produzido pela Universidade Federal de Viçosa. A Professora Célia Ferreira “já isolou dois grupos de bactérias que compõem o pingo: Lactococcus lactis e cremosis. São eles que asseguram a massa uniforme, cega, sem oleaduras características do grupo” (GLOBO RURAL, 2002).

Conforme explicado, a coalhada é feita no laboratório utilizando o leite em pó. O leite em pó é esterilizado e a isca é adicionada a este. A proporção é de vinte mililitros da isca para dois litros de leite. Em seguida, o preparo é colocado na estufa, para manter a temperatura de 32º C. No dia seguinte, a coalhada está perfeita, tem-se a concentração da bactéria em dois litros. Então, ferve-se o leite à 90º C por meia hora, esteriliza-se o leite, e coloca-se a isca. No outro dia, a coalhada está pronta para ser adicionada ao leite. Daí, temos o queijo minas artesanal da indústria. Se provarmos o queijo minas do Serro e o industrial, é possível perceber a diferença. O queijo do Serro da indústria tem um sabor suave, sem acidez, resultado da ação das bactérias na coalhada elaborada dentro de um laticínio. Este laticínio pertence à cooperativa do Serro, a Cooperserro, que, a princípio, foi criada para promover o queijo minas artesanal da fazenda.

97 Goodman et al. (1990) ressaltam que o produto agrícola artesanal e seus componentes podem ser transformados em produtos industriais. Com suas propriedades e sabor, estão relacionados a uma identidade associada a uma marca. Os autores mostram, como exemplo, o leite condensado com sabor, prazo de consumo e cuja identidade está associada a um produto industrial e com uma marca registrada, a Nestlé.

Concomitante a isso, podemos constatar, pelo relato do produtor, que não estamos distantes do que Goodman et al. (1990) afirmaram em seus estudos. Na região do Serro, através do isolamento da bactéria do pingo, é produzido um creme que, ao ser adicionado ao leite pasteurizado, produz um produto genérico do queijo artesanal do Serro, com características semelhantes, que, para o produtor, é visto com indignação.

Se o queijo artesanal do Serro é produzido pelos produtores da região em unidades de processamento de pequena escala, hoje, este produto se desloca para uma indústria de laticínios. Desse modo, a qualidade do queijo do Serro padronizado passou a ser um componente relacionado a grandes estruturas onde, em condições atuais, as instalações são apropriadas e normatizadas de acordo com uma legislação vigente para processamento de produtos de origem animal, baseados na escala de produção e no padrão de grandes indústrias alimentícias. Para Ploeg (2008, p. 255), as estruturas físicas destinadas à produção em larga escala constituem-se em verdadeiros impérios alimentares:

A essência da atual fase da globalização é que ela introduz, literalmente, por toda a parte, conjunto de normas e paramentos generalizados que governam todas e quaisquer práticas locais e específicas. Esses conjuntos de normas generalizadas representam o núcleo do Império [...]. Ao fazê-lo, o Império

elimina o local, o transformando em um “não-lugar”. A única relevância do

local é que ele representa um conjunto de coordenadas – um entre muitos outros conjuntos – em que se aplicam normas generalizadas.

Neste contexto, a produção artesanal se opõe a uma produção industrial. Considerando os produtos artesanais que persistem no tempo, o modo de saber fazer está relacionado a determinado lugar, conservando as principais características que os definem quanto ao sabor e textura, que devem cumprir uma série de exigências e normas. O desvio das normas é considerado uma infração, em relação às normas pré- estabelecidas e definidas para uma homogeneização em grande escala. O modelo industrial atribui a qualidade à inocuidade, com saberes especializados para uma padronização dos produtos.

Ploeg (2008) afirma que o Império não tem origem, sendo difícil de apresentar uma definição abrangente, ele surge em diferentes domínios, como a universidade, a

98 saúde pública, os aparelhos estatais, as empresas privadas, as ONGs, a agricultura, o processamento de alimentos e a conservação da natureza. É resultado de diversos mundos sociotécnicos interligados, com um modelo agroindustrial destinado a mercados globalizados, com produtos de longo tempo de prateleira, com uso de aditivos e conservantes.

A produção artesanal do queijo, fundamentada sobre um saber tradicional, é legitimada e regulamentada por uma legislação sanitária direcionada para um modelo agroindustrial alicerçada em parâmetros e valores industriais, com forte interesse da indústria química e agroalimentar, em que o biológico passa a ser uma ameaça e o químico uma proteção. Desse modo, atender aos critérios e normas pode comprometer as características e especificidades conferidas ao queijo do Serro.

Poulain (2004, p. 29) afirma que os alimentos nunca estiveram tão distantes “de seu enraizamento geográfico e das dificuldades climáticas que lhe eram tradicionalmente associadas”. Se, por um lado, o conhecimento científico e tecnológico aumentou a disponibilidade e variedade de alimentos, também provocou a perda e o controle da produção dos alimentos.

Diante disso, um dos maiores desafios é tornar possível a produção do queijo do Serro conforme o saber fazer tradicional, valorizando os conhecimentos dos produtores artesanais e respeitando seus anseios. Para tanto, o extensionista rural é um agente importante neste contexto diante dos diferentes discursos, atuando como um facilitador para que os aspectos técnicos preconizados na legislação e o modo de fazer o queijo, conforme a tradição, possam trilhar o mesmo caminho. No próximo capítulo, propomos analisar a ação extensionista como mediadora do processo de formalização do queijo artesanal do Serro.

99 4 AÇÃO DOS EXTENSIONISTAS COMO MEDIADORES NOS PROCESSOS PARA O CADASTRO DE QUEIJARIAS

Este capítulo aborda uma breve discussão sobre a extensão rural no Brasil, bem como a ação dos extensionsitas da EMATER-MG como mediadores do processo de produção do queijo minas artesanal na microrregião do Serro.