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4 RESULTADOS

4.2 CLASSES

4.2.1 Profissionais das eCRs

4.2.1.2 Saber ideológico – necessidades naturais

Na terceira classe fornecida pelo software IRAMUTEQ, estão contemplados os saberes ideológicos na perspectiva das necessidades em saúde da PSR. Adotou-se a tipologia de necessidades proposta por Agnes Heller (1986), baAdotou-seada em Marx, da qual foram observadas somente as necessidades naturais.

Visualizada na FIGURA 12, a Classe 3 apresentou os vocábulos hospital, mulher, criança, levar, ficar, casa, querer, mãe, internar, família, morrer e crack como os mais frequentes e com valores de qui-quadrado mais elevados (x2 > 19). Os discursos que referenciaram esses vocábulos focaram nas necessidades em saúde da pessoa em situação de rua atendida pelas eCRs e evidenciaram o uso abusivo do álcool e outras drogas, conforme os relatos a seguir:

[...] às vezes eles estão com fratura e não vão atrás de atendimento. A gente orienta. Ontem as meninas levaram um paciente para o pronto-socorro do Hospital Cajuru devido a fratura (P 18).

[...] tinha uma úlcera enorme nas pernas. Problema. E agora temos o Senhor P, que está com um problema sério pulmonar. Ele melhorou no hospital, já fez até dreno de tórax (P 10).

[...] fica lá dois, três dias e foge do hospital pela procura do álcool ou da droga e isso é muito triste porque eles têm complicações clínicas sérias:

complicações cardiológicas, complicações pulmonares [...] (P 10).

[...] a enfermeira conseguiu tirá-lo do viaduto e levar para tratamento. Ele é alcoolista, tem muitos problemas. Estava morrendo, inchado. Foi encaminhado para o hospital, para a clínica de desintoxicação em alcoolismo (P 17).

[...] porque já tive, esse ano, três casos assim de senhora e de senhor: ela virou dependente do crack e ele dependente do álcool. Ela era cardiológica, que veio a óbito agora no final do ano (P 10).

Quanto aos internamentos consecutivos para o tratamento do uso abusivo do álcool, o profissional insistiu na necessidade da realização de tratamentos, conforme relato:

[...] aquele é um momento: “– Ah! Eu já me internei 20 vezes!” “– Então vamos tentar a vigésima primeira?” – Aí ele aceita – Às vezes a gente sabe que ele não vai ficar uma semana, mas que fique um dia só tomando soro (P 11).

Com relação às mulheres em situação de rua, a gravidez foi apontada, em muitos discursos, como motivo de busca de atendimento no CR. No período gravídico-puerperal, os profissionais atuam no aconselhamento na perspectiva de um processo de conscientização quanto ao futuro da criança:

[...] a gente acompanha os pré-natais que tem na rua, a gente conscientiza com a questão de mudança de vida para ficar com a criança (P 04).

[...] a gente já teve isso com outras gestantes, porque, se a gestante vai para o hospital, o hospital automaticamente avisa o Conselho Tutelar.

Nessas condições de rua, o Conselho Tutelar não vai deixar esta mãe ir para rua com a criança. Nós orientamos (P 12).

[...] então ela tem familiar com endereço fixo, mas a mãe não aceita que ela volte por conta das drogas e até a gente esperava que ela ficasse no hospital até o momento do parto. Agora a criança irá para o Conselho [...] (P 02).

Outra questão que emergiu nessa classe foi o enfrentamento da dor física e a preocupação com a estética, conforme relato:

[...] a pessoa em situação de rua não quer saber se tem tuberculose, não quer fazer o exame do HIV, mas a questão odontológica ela sempre quer resolver – um dente que está incomodando ou que está feio [...] (P 02).

[...] A rua prende muito e a própria população estimula, dando esmola, dando comida e eles não querem sair e a questão do tratamento de saúde eles não dão muita importância [...] para eles não é importante, só procuram o serviço de saúde quando estão morrendo, quando veem que está ruim mesmo (P 13).

A preocupação com as questões crônicas de saúde que se mascaram com o uso de drogastambém foi evidenciada:

[...] porque as pessoas que estão em situação de rua não têm sofrimento imediato. O sofrimento agudo deles é combatido com o crack e a droga.

Então quando tem uma dor muito intensa, elas se dopam e vai passar esse período agudo para um período crônico [...] o problema é a questão crônica, que muitos delas provavelmente estão morrendo por infecções generalizadas e infecções crônicas da boca, que ficam anos e anos naquelas raízes residuais (P 03).

Outros aspectos dos atendimentos que emergiram das falas estão relacionados ao enfrentamento das dificuldades desses usuários na adesão a tratamentos, principalmente ao da tuberculose e da AIDS/HIV, conforme se observa nas seguintes falas:

[...] temos pacientes que precisam fazer o medicamento de dose supervisionada para tuberculose e estão aguardando vaga de internação no hospital (P 13).

[...] você imagina se fosse escarro mesmo e eu falei assim: “Eu tenho certeza que essa mulher tem tuberculose e HIV há mais de dez anos e nunca tratou!” [...] acho que ela percebeu que estava pior, cada vez pior, coletei o escarro. Em dois dias saiu esse resultado e eu comecei a pegar a medicação para ela levar da tuberculose. Iniciamos o tratamento supervisionado (P 13).

[...] levamos a paciente M com risco de morte, HIV, sífilis. Já fizemos de tudo com ela, vários internamentos, não adere ao tratamento. Desistir?

Jamais! Não podemos pensar que é um caso perdido (P 11).

Com relação aos tratamentos antirretrovirais, vários entrevistados mencionaram a indocumentação dos usuários, fato que esbarra na dispensação dos medicamentos e aponta a necessidade singular desses moradores de rua ao acesso a esses tratamentos.

[...] não pode pegar o remédio, então isto também frustra, pois a portaria tal fala que não pode e daí a gente fica complicado. A gente sabe que ele corre risco de vida. Ele está com imunidade baixa (P 11).

[...] o paciente não quer fazer o documento. Ele tem a chance de fazer o documento. Ele não quer, então não vai tomar remédio, tudo bem, mas o que que fica mais caro para a saúde pública? (P 15).

[...] nós temos usuários com HIV que não querem fazer documento de jeito nenhum porque têm pendência com a justiça (P 12).

Foram essas as necessidades identificadas pelos profissionais das eCRs em seu discurso e categorizadas na dimensão natural segundo Heller. A seguir, serão abordadas as outras duas classes que comporão o saber instrumental.