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Saber-ser: os limites e as conseqüências da individualização

2.2 Origem e definição do conceito de Competência

2.2.2 Saber-ser: os limites e as conseqüências da individualização

“Quanto mais diferentes individualmente e mais integrados socialmente, mas criativos e produtivos são os grupos humanos. Quanto mais diferentes pessoalmente e integrados grupalmente, mais ricas e criativas as organizações serão” (OLIVEIRA, 1997, p. 64).

Ao mesmo tempo em que o conceito do saber-ser nos remete à consideração do indivíduo particularmente (ROPÉ, 2003), (TANGUY, 2001) e

13 O trabalho artesanal também previa abundante variedade de eventos inesperados, cujas

soluções não eram programadas, esta característica contribuía com a formação do artesão, que era árdua e complexa (SAYLES e STRAUSS, 1969).

(ARRUDA, 2000), ele também salienta a importância do aspecto social na construção dos modelos de comportamento, apreendidos pela lógica competência. SILVA (2002), referindo-se a esta questão, salienta a diferença existente entre o aporte que traz cada indivíduo, como resultado dos espaços externos, contexto social, político e econômico vivenciado e que lhe são próprios. Sob a mesma lógica, FONTANIVE et al. (1999) afirmam que as competências não são fruto apenas da experiência escolar, mas também da experiência de vida.

As exigências impostas à organização para “driblar” suas crises individuais exigem que a empresa faça do indivíduo “um sujeito de ações coletivas com finalidade econômica e social”, como afirma SAINSALIEU (2001, p. 43). A competência como um conceito que ascende em meio a esta configuração é, de fato, fundamentada na competência do indivíduo, na sua capacidade de enfrentar os eventos, mas este enfrentamento ganha mais importância na medida em que se torna produto de um coletivo de capacidades individuais.

As mudanças ocorridas na produção industrial e nos processos de trabalho, além de avaliar competência, desempenho e potencialidades individualmente, vêm provocando a continua expansão da socialização pré-profissional, que, segundo PAIVA (1997), justifica as maiores exigências técnico-abstratas e as novas qualificações sócio-comunicativas.

A individualização, segundo SILVA (2002), foi bandeira sindical na França, e foi o que sedimentou uma negociação de quatro anos, resultando num acordo da metalurgia em 1975, que teria introduzido as condições propícias ao estabelecimento do acordo A CAP 2000 (já mencionado na seção que define Competência) mais tarde. Em suma, este acordo propunha uma forma de avaliação que considerasse, além da estrutura formal hierarquizante, também a dimensão individual da relação dos assalariados com o seu trabalho. Naquela ocasião, o interesse por uma avaliação individual e não da categoria (ou coletiva), era defendida pelos sindicatos, diferente dos anos 90, quando esta temática é retomada pelas organizações (ZARIFIAN, 2001) e (SILVA, 2002).

Este posicionamento do patronato sustentando a referência à avaliação do cargo ou coletiva teve efeitos sociais que influenciaram a sociedade da época e se mantém presentes ainda hoje. O deslocamento rumo à avaliação individual, inerente à

Competência também nos remete a alguns efeitos, que têm alterado a realidade no ambiente de trabalho, como o aumento do controle e o poder das organizações sobre o trabalhador, além da mudança no conteúdo e nas formas de negociação entre empresas e trabalhadores.

Podemos analisar a lógica competência, quando fundamentada na importância que confere ao saber-ser, sob as diferentes perspectivas que produz em termos de individualização:

a) na relação entre funcionários

Com a grande quantidade de eventos que caracterizam o ambiente organizacional e com a necessidade de mobilização coletiva e de comunicação que deve ser empreendida em torno deles, para que se diagnostique os motivos de sua ocorrência e se desenvolvam métodos para “controlar” sua freqüência, concluímos que ainda que as competências profissionais sejam individualmente analisada,s por meio do saber-ser, a competência organizacional é resultante da sinergia14 existente entre elas. HAMEL & PRAHALAD (1995), por exemplo, definem a competência organizacional, a partir da existência conjunta de habilidade e tecnologia, e não de sua ocorrência isolada.

O sucesso da ação coletiva passa a depender da competência ativa de cada um, não como uma complementariedade de funções, mas como uma ação colaborativa em torno de distintas necessidades (DORAY & TREMBLAY, 2002), (JEANNOT, 2002) e (MANFREDI, 1998)15. Ações oriundas da inovação e da criatividade, capazes de garantir um posicionamento privilegiado da organização no mercado são produtos que apenas podem ser obtidos com esta “cooperação” de subjetividades (LEITE, 1996)16.

De modo geral, a relação entre funcionários mudou consideravelmente, se na lógica produtiva anterior (taylorista) os grupos eram constituídos por elementos

14 LACOMBE & HEILBORN (2003), definem sinergia como acréscimo obtido no resultado

pela utilização combinada de duas ou mais partes de um todo em relação à soma dos resultados obtidos individualmente.

15 O estudo da personalidade e a análise do indivíduo em termos comportamentais ganham

importância a partir da demanda por ações dependentes das relações entre os indivíduos. Tradicionalmente tal estudo era ignorado porque as tarefas eram tratadas isoladamente (SAYLES & STRAUSS, 1969).

16 A cooperação também é mencionada por VERDIER (1997), quando menciona que a

capacidade da indústria de introduzir inovações e difundi-las depende da qualidade das relações existentes entre as diversas empresas que compõem o setor industrial.

iguais, já que a qualificação formal aproximava os indivíduos em termos de conhecimento, na lógica atual, a diferenciação torna-se o foco do debate, na medida em que as subjetividades são pessoais e o trabalho em equipe nos remete à idéia de um tratamento mais complexo dos eventos, estruturado em diferentes interpretações e ações, produzidas pela sinergia de individualidades que podem estar alocadas em diferentes cargos, mas que compartilham de um mesmo objetivo, o que traz à tona as relações interdepartamentais. De acordo com ZARIFIAN (2001, p. 143), “quanto mais forte é a competência coletiva, mais as competências individuais tornam-se dificilmente substituíveis”.

A idéia de que todos estão continuamente num mercado, podendo sofrer declives em sua avaliação constantemente, gera um nível alto de competitividade. Na lógica taylorista-fordista, todos conheciam as regras, quase sempre definidas pela senioridade do cargo, no jogo contemporâneo estruturado com base na competência em que os valores e as competências podem sofrer implementações e posicionar um “jogador” diferentemente em curto espaço de tempo, são premiados os trabalhadores que podem resolver problemas e assegurar a melhoria do sistema como um todo (LEITE & RIZEK, 1997).

A concorrência individual que se configura no interior das fábricas favorece a aceitação de intensos ritmos de trabalho, a completa disponibilização a serviço da empresa e mesmo o controle sobre o trabalho dos colegas, incorrendo no enfraquecimento da classe (INVERNIZZI, 2000b).

Dadas as condições requeridas para a mobilização da inteligência e da criatividade, a organização necessita de dois fatores primordiais para garantir o comprometimento: definição e transparência das regras do jogo desde seu início (DEJOURS, 1988). No entanto, num panorama onde a previsibilidade está em extinção, as regras podem sofrer alterações permanentemente.

b) na relação capital x trabalhador

Uma das críticas mais freqüentes à abordagem da competência é de que ela contribui para enfraquecer a negociação coletiva17, como mencionam SILVA (2002) e ARRUDA (2000). Para TANGUY (2001), a qualificação fica limitada aos “grilhões”

17 CASTEL (1998), salientando a degradação do enquadramento coletivo, dada a valorização

individual, utiliza a expressão “individualidade negativa” para referir-se a desproteção contratual, que resulta da extinção do acordo coletivo.

dos acordos de ramos profissionais, já na competência os acordos ocorrem diretamente com a empresa.

Segundo ZARIFIAN (2001), as identidades coletivas estão em crise quando recalcam o reconhecimento da singularidade individual, no entanto, isto não é um problema particular da empresa, segundo o autor, é uma evolução geral das sociedades modernas, na qual os indivíduos querem ser reconhecidos por si mesmos.

SILVA (2002) interpreta a questão da individualização inerente à lógica competência de duas maneiras: de um lado ela é refletida na maior autonomia dos assalariadas, a qual integra uma autonomia coletiva, por outro lado, ela representa uma ameaça, na medida em que a organização premia os indivíduos face às suas aquisições particularizadas de competências.

Assim, a individualização que respalda a negociação entre capital e trabalhador pode nos remeter a conseqüências importantes:

- a negociação torna-se individual e isto enfraquece consideravelmente o trabalhador, que deixa de estar ancorado por um acordo coletivo;

- a partir do momento em que a individualização é instaurada e fica explícito o papel da competência no posicionamento do trabalhador, a responsabilidade pela aquisição de competências é transferida da empresa para o próprio indivíduo, ou seja, o trabalhador é responsabilizado por buscar conhecimento fora da organização, a qual ao mesmo tempo em que exige mais, reduz seus custos em preparo ou treinamento de funcionários.

Paradoxalmente aos fenômenos citados, para o trabalhador tido como uma core competence18 há um favorecimento, na medida em que a negociação de sua competência fica desatrelada de um acordo prévio e pode ajustar-se conforme seu interesse. Por outro lado, como afirma INVERNIZZI (2000b), a qualificação coletiva limita a intensificação do trabalho, o que provavelmente não ocorrerá em uma negociação particular, na qual os objetivos individual e organizacional são perfeitamente ajustados, definidos e controlados.

c) na constituição do ser social;

18 Segundo LIVINGSTONE (2002), a divisão entre trabalhadores core e peripheral, faz parte

Para SAINSAULIEU (2001), ser identificado por suas obras, seu meio, seu percurso, sua resistência tornara-se um objetivo primordial da experiência de trabalho, que passa a ser vivida mais profundamente pelos indivíduos como uma verdadeira fonte de socialização e constituição do sujeito individual em ator social de uma coletividade detrabalho.

Esta socialização torna-se requisito indispensável na construção de uma trajetória profissional. A individualidade, representada por meio do saber-ser, aparece como um aspecto conexo à capacidade de se socializar na organização, resultando em uma competência profissional de fato. O indivíduo passa a ser identificado não em relação a um cargo e aos requisitos diretamente ligados a ele, mas como um agente único dotado de características exclusivas que o posicionam diferentemente.

DUBAR (1998), afirma, que a experiência apoiada na autonomia e na independência são facilmente transferíveis de uma empresa para outra, favorecendo a mobilização profissional. A formação de um caráter profissional reconhecido não apenas contribui com a imagem do profissional, elevando o ego (termo entendido na psicologia como o eu interior, inconsciente e instintivo) e a auto-realização (relativo à satisfação do ego, geralmente, por meio de conquistas pessoais), como propicia a multiplicação de oportunidades de atuação no mercado interno e externo, em função do desenvolvimento de uma trajetória sustentada pela iniciativa e pelas capacidades próprias.