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CAPÍTULO 3: O REFERENCIAL TEÓRICO DAS ANÁLISES

3.1. Saberes docentes; as ideias e categorias de Tardif

Quais são os saberes que os professores utilizam no seu ofício? Qual a sua natureza? Como são adquiridos? Qual é o peso de cada um desses saberes? O que entra na sua composição? De que forma sua formação integra os seus saberes? Como é adquirido e se desenvolve?

Essas são algumas perguntas respondidas em oito ensaios que compõem a obra Saberes docentes e formação profissional, de Maurice Tardif (2004), que diz respeito aos saberes que alicerçam o trabalho e a formação dos professores do ensino Básico.

O autor situa o saber do professor numa interface entre o indivíduo e o social, ao dizer que é impossível compreender a natureza dos seus saberes sem os colocarem em íntima relação com o que os professores são, fazem, pensam e dizem. Ele explicita sua própria perspectiva teórica ao dizer que os saberes dos professores não podem ser separados das outras dimensões do ensino. Contudo, acrescenta que o saber dos professores é o saber deles, e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e história profissional.

Para o autor, o saber dos professores é um saber social, pois;

- é partilhado por todo um grupo de agentes (professores), que trabalham juntos e estão sujeitos a programas e regras do estabelecimento.

- sua posse e utilização repousam sobre todo um sistema que o legitima e orienta (universidades, sindicatos, administração escolar, MEC,...), ou seja, ele nunca define sozinho o seu saber profissional.

- seus próprios objetos são objetos sociais, isto é, práticas sociais, no sentido de que trabalha com sujeitos em função de um projeto (educá-los e instruí-los).

- os “saberes a serem ensinados” e a sua maneira de ensinar (o “saber-ensinar”) evoluem com o tempo e as mudanças sociais.

- por serem adquiridos no contexto de uma socialização profissional, estão em constante processo de construção, onde o professor tende a dominar o seu ambiente de trabalho. Fazendo um parênteses, podemos dizer que a temática “mudanças climáticas”, adotada na Unidade Didática, é um exemplo de “saberes a serem ensinados” que evoluiu com o tempo.

Trata-se de um assunto com uma demanda recente que surgiu para os professores, possivelmente, entre outras causas, pela constante presença na mídia.

Com as ideias acima, o autor se baseia num certo número de fios condutores. Estes são apresentados nos parágrafos a seguir.

Um primeiro fio relaciona-se com o saber e o trabalho, ou seja, o saber dos professores deve ser compreendido em íntima relação com o trabalho deles na escola e na sala de aula. Essa foi uma ideia constante neste trabalho de pesquisa, pois detectamos que os saberes da professora que foi acompanhada se apresentaram sempre descritos e relacionados ao que ela desenvolveu na sala de aula, à sua formação, de acordo com as condições da escola e do projeto. Ou seja, embora utilizem diferentes saberes, isso se dá em função do seu trabalho e das situações, condições e recursos ligados a esse trabalho. E é assim que um projeto de formação continuada que envolve pesquisa transforma-se em parte dessas condições. Ele pode modificar, deslocar e intervir nessas condições. Em suma, o saber está a serviço do trabalho. No caso da professora foco desta pesquisa, esta teve, como um dos aspectos de seu trabalho docente, as inúmeras atividades desenvolvidas no projeto e, consequentemente, o seu saber sofreu influências dessa condição extra.

Um segundo fio, para esse autor, seria a diversidade do saber, ou seja, o seu pluralismo. Pluralismo no sentido de que seus saberes oriundam, além do seu próprio exercício, de fontes variadas (dos programas, livros didáticos, de sua experiência, de sua formação inicial,...) e natureza diversa. Ou seja, ele é compósito, heterogêneo, plural. Aqui, fazendo outra observação e completando esse fio condutor, vale salientar que hoje, esse saber origina-se, também, por uma fonte considerável, que é a mídia. Ela produz um tipo de saber que intervém de várias formas e está presente na temática da Unidade Didática e no próprio material fornecido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, ou seja, no caderno de atividades dos alunos.

Os seus saberes são produzidos em grupos, oriundos de instituições diferentes, por meio de vários mecanismos sociais (formação, currículos, instrumentos de trabalho, ...), por isso, ao se falar dos saberes dos professores, é necessário levar em consideração o que eles nos dizem a respeito das suas relações sociais com todos os mecanismos aqui citados. Aqui vemos a importância do questionário respondido pela professora, no âmbito, principalmente, de se adquirir informações da sua formação, segundo o seu ponto de vista.

O saber dos professores possui uma temporalidade (terceiro fio condutor), digamos, é temporal no sentido de que é adquirido no contexto de uma história de vida e de uma carreira profissional. Antes mesmo de ensinar, como afirma o autor, os futuros professores vivem e viveram nas salas de aulas e nas escolas, e tal imersão já é formadora. Mesmo antes de ensinar, o professor já sabe, de muitas maneiras, o que é o ensino. Então, se o professor aprende na sua história escolar e de carreira, achou-se importante extrair informações da professora, através do questionário, para se ter uma visão dela, sobre a sua formação. Nas questões, tentou-se buscar informações para se ter alguma ideia sobre qual grau de importância essa formação, principalmente a continuada (neste caso, relacionada ao projeto sobre processos avaliativos), teve para a professora desta pesquisa, ou melhor, se e como essa aprendizagem influenciou no seu trabalho docente.

Se o saber dos professores é plural, como eles se relacionam? Há alguma hierarquização? Para o autor, ensinar é mobilizar uma ampla variedade de saberes, reutilizando-os no trabalho para adaptá-los e transformá-los pelo e para o trabalho. E isso é resultado da sua experiência no trabalho (quarto fio condutor). Já a importância que cada um desses saberes recebe foi, também, motivo de investigação pelo autor.

Esse é mais um fio condutor, segundo o autor; o de que o trabalho é interativo, ou seja, o trabalhador se relaciona com o seu objeto de trabalho fundamentalmente através da interação humana.

E por fim temos o último fio condutor, que é a necessidade de se repensar a formação do professor. Até agora, de acordo com Tardif (2004), a formação para o magistério esteve dominada, sobretudo, pelos conhecimentos disciplinares. Aqui, o autor procura mostrar como é importante considerar os saberes cotidianos dos professores, para se renovar as concepções de sua formação.

Partindo da ideia de que o seu saber é plural, vamos agora descrever os quatro diferentes saberes presentes na prática docente, definidos por Tardif (2004). Vejamos, então, esses saberes docentes, compostos por vários outros saberes, provenientes de diferentes fontes.

Saberes de formação profissional - Esses saberes, também denominados de saberes das ciências da educação e da ideologia pedagógica, consistem nos saberes transmitidos pelas faculdades,

durante a formação do professor. Esses saberes apresentam-se como doutrinas, que fornecem ao futuro educador um arcabouço ideológico, além de dicas ou técnicas de como lecionar.

Saberes disciplinares – São saberes sociais que os professores também incorporam (na sua formação inicial e continuada), definidos e selecionados pelas instituições de ensino. Correspondem aos diversos campos do conhecimento, ensinados nas universidades, em seus cursos, na forma de disciplinas, como a matemática, a história, a geologia, entre outras.

Saberes curriculares – São saberes que os professores se apropriam ao longo da sua carreira, dentro da instituição escolar. Seriam os discursos, objetivos, conteúdos e métodos que se apresentam, concretamente, na forma dos programas escolares. São saberes apropriados pelos professores no sentido de que estes devem aprender a aplicá-los.

Saberes experienciais – Estes são saberes desenvolvidos pelos professores, no exercício da sua função e na prática de sua profissão. São saberes baseados em seu trabalho cotidiano e no conhecimento do seu meio. Em suma, podemos chamá-los, também, de saberes práticos. O habitus (certas disposições adquiridas na e pela sua prática), segundo o autor, origina-se desses saberes, e determina traços da personalidade desse profissional. E esse habitus pode se transformar num estilo de ensino e em macetes da profissão.

Adianto-me nas discussões ao comentar que a temática “mudanças climáticas”, e neste caso especial deslocando-a para uma perspectiva geocientífica, entrou na escola como um tipo de saber curricular, ao fazer parte do currículo escolar fornecido pelo Estado em 2008, e direcionado para as aulas de “Parte Diversificada” (PD). Esse material tinha essa temática como foco principal.

Contudo, essas interações entre os diversos saberes, segundo o autor, ocorrem em meio a normas, obrigações e prescrições que os professores devem conhecer e respeitar em graus diversos (como por exemplo, os programas e as propostas governamentais).

Da união desses quatro saberes, podemos imaginar a composição do “professor ideal” que seria aquele que, segundo Tardif, conhece sua matéria, sua disciplina e seu programa, possui certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia, além de desenvolver um saber prático baseado em suas experiências cotidianas com os alunos. Hoje, o professor moderno,

atual, precisa não somente saber, mas também deve saber ensinar, saber estar e saber lidar com os seus alunos.

Mas voltando às características dos saberes, Tardif (2004) diz que os saberes profissionais, disciplinares e curriculares são incorporados e não legitimados pelos professores, considerando que estes se apresentam “prontos” para serem aprendidos e transmitidos. Segundo ele, por serem mais ou menos “de segunda mão”, esses três saberes mantêm com o professorado uma relação de exterioridade, de desapropriação, diferente dos saberes experienciais, que é caracterizado pelo fato de se originarem do exercício do professor e por ele serem validados. E ainda, é a partir desses saberes que os professores concebem os modelos de excelência profissional dentro de sua profissão.

E aqui está um ponto elementar do projeto, e que tem relação com seus eixos; a produção de um saber curricular. E esse desenvolvimento realizado pela professora, seus detalhes, tanto durante quanto na própria sala de aula, foi testemunhado, acompanhado e registrado em caderno de campo e audiovisual.

Contudo, para amenizar essa sensação de desapropriação dos saberes adquiridos, Tardif fala que o saber docente é heterogêneo e que, particularmente, os saberes experienciais surgem como um núcleo vital desse saber docente, no sentido de que estes são formados de todos os demais (de formação, disciplinares e curriculares), mas retraduzidos, polidos e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência.

O saber experiencial, segundo o autor e as evidências de anos de pesquisas, é, entre outros;

- um saber ligado às funções dos professores, nas quais é adquirido;

- um saber heterogêneo ao mobilizar conhecimentos e formas de saber-fazer diversos, adquiridos de inúmeras fontes;

- um saber aberto, receptivo, por integrar novas experiências adquiridas nas situações de seu trabalho;

- um saber existencial, por estar relacionado com a história de vida do professor, já que esse entra em contato íntimo com sua profissão mesmo antes de iniciar a sua “formação profissional”, e;

- um saber temporal, por se transformar com o passar dos anos de trabalho.

E fecha, classificando o saber experiencial como social, por ser construído pelo professor baseando-se em inúmeras fontes sociais, e levando-o a hierarquizá-los de acordo com as necessidades do seu trabalho.

No que tange os fatores tempo e saberes profissionais, Tardif afirma que, na realidade, os saberes que servem de base para o ensino, ou seja, os fundamentos do ensino, são:

- existenciais, no sentido de que o professor não pensa somente com a cabeça, e sim a partir de sua história de vida. Não somente intelectual, no sentido rigoroso do termo, mas também emocional, afetiva, pessoal e interpessoal;

- sociais, ou seja, são plurais, provêm de fontes diversas, como a família, a escola, a universidade, ..., e são adquiridos em tempos sociais diferentes, como o tempo da infância, da escola, da formação profissional, do ingresso na profissão, da carreira, entre outros, e;

- pragmáticos, por tratar-se de saberes ligados intimamente ao labor, de saberes sobre o trabalho, ligados às funções dos professores onde, através do cumprimento dessas funções é que eles são mobilizados e modelados.

Com base, principalmente, nesta interessante pesquisa é que trechos das aulas da professora de Biologia foram interpretados e discutidos. Estes encontram-se no próximo capítulo.