• Nenhum resultado encontrado

6.3 SABERES DA DOCENCIA:UMA CONSTRUÇÃO SINGULAR/PLURAL

6.3.1 Saberes da formação profissional

“Apreender, no entanto, não equivale a adquirir um

saber, entendido como conteúdo intelectual: a apropriação de um saber-objeto não é senão uma das figuras do aprender”.

Bernard Charlot (2000, p. 65).

Compreender os saberes da formação profissional de professores e professoras da Educação Profissional e Tecnológica exige necessariamente considerar “uma das figuras” que constitui esses saberes, no âmbito da formação de referência: Engenharia Mecânica, Engenharia Civil e Ciência da Computação.

Nesse sentido, considerando que o saber da formação profissional é constituído por um conjunto de saberes, construído e transmitido pelas instituições de formação, que se limitam a produzir conhecimentos, e, procuram também incorporá-los à prática das pessoas (TARDIF, 2008). Assim, é possível inferir que esses saberes são constituídos e constituintes de uma cultura própria e reproduzida no cotidiano das práticas docentes. Esse aspecto pode ser observado nas expressões33, registradas nos diários de campo das reuniões pedagógicas, como:

“Na mecânica, o aluno não pode usar boné”.

“Eu aprendi a programar dessa forma, é dessa forma que eu ensino”. “O aluno que faz informática tem que estudar muito, comigo foi assim”. “O técnico em mecânica deve incorporar a cultura do curso, aqui todos exigem bastante” (Diário de Campo: anotação 29/02/2012).

Essas expressões mostram que em cada curso existe um saber específico que é técnico permeado por saberes culturais, também específicos, que são acessados e se transformam em saberes incorporados à prática docente.

O saber profissional, construído na área técnica, exerce certo poder sobre outros saberes, entre eles o saber disciplinar. De acordo com Tardif e Lessard (2008), os saberes disciplinares correspondem às diversas áreas do conhecimento, que se encontram à disposição de nossa sociedade, tais como se acham hoje integrados à universidade sob a forma de disciplinas, no âmbito de faculdades e

33 Essas expressões são de professores que constituem os cursos referidos. Esses professores não

estão entre os seis que participam da pesquisa com suas narrativas de vida. Os relatos são registros do Diário de Campo do dia 29 de fevereiro de 2012.

cursos distintos. Portanto, esse saber não é uma produção do professor, mas ele se apropria dele para ensinar. Gauthier (2006) enfatiza que:

que ensinar exige um conhecimento do conteúdo a ser transmitido, visto que, evidentemente, não se pode ensinar algo cujo conteúdo não se domina [...]. De qualquer modo, convém ressaltar que as pesquisas vêm mostrando que, cada vez mais, o tipo de conhecimento que o professor possui a respeito da matéria influi no seu ensino e na aprendizagem dos alunos. Sabe-se igualmente que a escola e os docentes impõem ao conteúdo uma série de transformações (GAUTHIER, 2006, p. 29-30).

Essas transformações são apontadas por Shulman (2005), como conhecimento pedagógico da matéria e, por Chevallard (1985), como transposição didática. Elas se colocam necessárias no contexto pedagógico, porém pela sua insuficiência, enquanto saber da docência encaminha para a construção de um novo saber – o saber curricular.

O saber curricular é construído à medida que o professor interage no processo de transformação do saber disciplinar em programa de ensino. Porém, conforme Gauthier (2006),

a escola seleciona e organiza certos saberes produzidos pelas ciências e os transforma num corpus que será ensinado nos programas escolares. Esses programas escolares não são produzidos pelos professores, mas, por outros agentes, na maioria das vezes, funcionários do Estado ou especialistas das diversas disciplinas. No Brasil, eles também são transformados pelas diversas editoras em manuais e cadernos de exercícios que, uma vez aprovados pelo Estado, são utilizados pelos professores. O professor deve, evidentemente, “conhecer o programa”, que constitui um outro saber de seu reservatório de conhecimentos. É, de fato, o programa que lhe serve de guia para planejar, para avaliar. Entretanto, [...] podemos nos perguntar qual é a natureza do saber curricular dos professores em seu contexto real de ensino? (GAUTHIER, 2006, p. 31).

A questão colocada por Gauthier (2006), encaminha para pensar que a inserção no contexto de constituição curricular dos cursos, de forma reflexiva e crítica, tendo como elemento orientador a realidade onde se pretende trabalhar é um exercício necessário para que ocorram transformações culturais no âmbito dos saberes da docência, rompendo assim com as concepções reafirmadoras de representações focadas unicamente no conhecimento técnico, que alimenta a construção do saber disciplinar.

Dessa forma, é possível visualizar que o processo de ressignificação dos saberes curriculares na Educação Profissional e Tecnológica, se dá por meio da análise reflexiva dos programas dos cursos. Porém, cabe lembrar que esse processo, não se dá de forma pontual e linear, mas, à medida que passam vivenciá- los em suas práticas pedagógicas cotidianas, no momento que se tornam perceptíveis as incoerências e passam a ser tema de discussão entre os pares em espaços instituídos de formação continuada. Essa articulação entre essas ciências e a prática docente se estabelece concretamente na relação pedagógica dos cursos técnicos e de tecnologia do IFSul – Campus Passo Fundo, como expressam os professores pesquisados.

“Quando iniciei no curso olhei o currículo do curso, gostei muito e pensei,

vou ter que puxar esses alunos, precisam dominar tudo o que tem no projeto do curso. Quando trabalhei o primeiro semestre, vi que tinha alguma coisa errada, pois reprovou muita gente. Aí passei a analisar com meus colegas o projeto do curso, sentimos que estava incoerente com a realidade de nossos alunos, aí fizemos muitas alterações, respeitando a qualidade do curso e a realidade dos alunos, agora está melhor” (Prof. Elton).

“Quando ingressei no IFSul, primeira coisa que você me pediu foi para olhar

o projeto do curso. Fiquei curioso, foi logo acessar, mas fiquei assustado, as ementas das minhas disciplinas eram enormes, muito conteúdo. Aí fui conversar com o coordenador do curso que me tranquilizou: ‘Na reunião de quarta-feira, vamos discutir as tuas disciplinas, aí podes sugerir mudanças para o próximo semestre” (Prof. José Henrique).

“Trabalhei em uma empresa muito boa, um sistema enorme, que eu tive

noção do que é um sistema, do que consiste um sistema, do que é trabalhar em equipe; foi muito bom ter trabalhado lá. Acho que isso trouxe muitos benefícios para depois poder atuar na docência, mas também para construirmos o currículo do novo curso” (Profa. Anúbis).

“Acredito que minha experiência profissional e a qualidade da minha

graduação contribuíram muito para eu ser professora na Educação Profissional e Tecnológica. Um professor precisa sempre estar aberto para aprender, observar o mercado de trabalho, acompanhar novas tecnologias, estar atento a novas estratégias de aprendizagem, compartilhar experiências. Acredito que esses elementos possibilitam que os currículos dos cursos sejam sempre readequados a realidade” (Profa. Anúbis).

O que fica evidente nas narrativas acima é que o professor da Educação Profissional é um profissional que possui um conjunto de saberes inerentes à profissão de referência e, como tal, são utilizados no contexto da docência,

contribuído para a construção de saberes singular e social. Esses saberes são articulados na construção nas definições curriculares dos cursos em que atuam. Conforme Tardif (2008, p. 64), “[...] esse saber é social, por ser adquirido no contexto de uma socialização profissional, onde é incorporado, modificado, adaptado em função dos momentos e das fases de uma carreira, ao longo de uma história profissional independente de seus rumos”.

Também, se pode afirmar que esses saberes são estruturantes de suas primeiras inserções no exercício da docência, e são eles que representam o “porto seguro” do professor, possibilitando, assim, enfrentar a insegurança desse momento, como relatam os professores.

“No começo, eu fiquei muito apavorada. Por mais que tu digas que eu tenho facilidade, aprendo. Mas chegar em frente a uma turma, você tem que fazer com que eles entendam aquilo que você entende, sabe, conhece, e isso é diferente; é um grande desafio. Eu tive muito medo, lembro-me da insegurança nas primeiras aulas; acho que isso é natural, mas me apoiava nas coisas que aprendi trabalhando, onde tinha que apreender coisas novas, aí lembrava o que mais fazia aprender, que era praticando, então procuro, nesses momentos, trabalhar de forma mais próxima possível da vivência prática” (Profa. Anúbis).

“Depois que me formei, comecei a trabalhar em Santa Maria, em uma empresa que reformava carroceria de ônibus e tive algumas propostas pra sair. Trabalhei em Erechim e depois em Panambi; todas as empresas na área de Engenharia. Trabalhava com supervisão de projetos, na gerência de fábrica, no processo de fabricação e manutenção. Neste tempo todo que trabalhei nas empresas, acabei adquirindo experiência em cada uma dessas áreas. Então, tenho alguns anos em projetos, alguns anos em gerenciamento, enfim, em diversas áreas de Engenharia. Tudo Isso foi importante e contribui muito com o meu currículo e hoje contribui muito para estruturar minhas aulas aprendizado de ser professor” (Prof. Elton).

Gostei muito de trabalhar com ensinar a piazada. De estar incentivando eles a alguma coisa ligado à profissionalização. Eu não sei que ano foi isso. Foi no ano de dois mil e .... O meu primeiro contanto com a sala de aula, mas sabia o que deveria ensinar, pois o que apreendi trabalhando foi dando suporte para saber o que ensinar e como ensinar, mesmo sem saber muito como preparar uma aula. Aquilo foi meio aos trancos e barrancos” (Prof.

José Antônio).

“A minha vivência anterior à docência me possibilitou construir muitas experiências, que trago para sala de aula. Todo dia que eu entro numa sala de aula, sempre tenho uma história pra contar, uma experiência para trazer já que o ensino é profissionalizante. Desde as experiências mais simples, até problema com administrador, problemas técnicos, rotina de trabalho, dificuldade financeira no trabalho. Tudo isso aí eu gosto de trazer e noto que eles gostam de saber como aconteceu comigo. Às vezes, eu assusto.

Às vezes, eles ficam querendo ir lá pra fazer o que eu fazia. É bem dinâmico esse processo e acredito ser motivador para aprendizagens necessárias na área” (Prof. José Antônio).

Por meio dos relatos, pode-se inferir que, no início da carreira docente, os saberes, construídos em sua profissão de referência, são acessados como afirmação do ser professor. Esses saberes servem de âncora para a constituição das primeiras ações na docência, pois se encontram permeadas por representações do que é ser professor. Para Guathier (2006), todo o professor adquiriu, durante a sua profissão ou em seu trabalho, determinados conhecimentos profissionais que, embora não o ajudem diretamente a ensinar, informam-no a respeito das várias facetas de seu ofício ou da educação de um modo geral.

Essa compreensão é reafirmada nas narrativas de vida dos professores da presente pesquisa:

“Acho que a questão de constituição profissional, em qualquer área, é muito complexa, mas a formação para ser professor, ensinar, formar é mais complexa. Eu, como professor, sinto a influência dos professores que tive, da relação que tinha com meu pai, com minha mãe. Tudo isso acabou me formando. Hoje, quando me sinto desafiado na sala de aula, são essas lembranças que me ajudam. Se funcionou comigo, pode funcionar com meus alunos” (Prof. José Antônio).

“Lembrando dos meus professores do Ensino Médio, eu lembro de uma professora, que eu tenho um carinho muito grande por ela até hoje, era uma professora extremamente rigorosa” (Prof. Sabrina).

Também, é possível verificar nas narrativas que os saberes da tradição pedagógica, definidos por Gauthier (2006), vêm permeando o cotidiano escolar, porém o relato do Prof. José Henrique encaminha para a necessidade de mudanças, ao ser comparado o contexto pedagógico do IFSul com o seu contexto profissional de referência.

“Eu demorei a me situar nesse contexto. Acho que um ano ou ainda esteja em adaptação. O grupo de professores tem um propósito diferenciado daquilo que eu fazia como profissional liberal. Porque como profissional liberal tinha certa autonomia de busca e de objetivo. Enquanto uma instituição tem muitas limitações. Essas limitações impõem regras desde as questões de horário, dos regimentos e que também não deixa de construir freios, às vezes, as iniciativas ou as ousadias didáticas que poderiam

acontecer se o processo tivesse um pouquinho mais de liberdade. Mas existem muitas condições” (Prof. José Henrique).

Todavia, ao acessarem os saberes da formação profissional, afirmam ser fundamental o aspecto técnico, deixando para segundo plano as regras didáticas e as relações afetivas, pautadas na capacidade de olhar, incentivar e dar exemplo. Esse aspecto é resgatado por meio dos registros de manifestações dos professores34 em reuniões pedagógicas.

“Um técnico em mecânica precisa ter domínio absoluto do chão de fábrica, por isso o currículo do curso tem que priorizar isso. Eu posso não ter tudo registrado, certinho, esse negócio de plano, mas exijo que o aluno aprenda”

(Reunião Pedagógica do Curso Técnico em Mecânica, Diário de Campo: anotação de 29/02/2011).

“Não podemos passar aluno sem ter domínio técnico, se faltou aula, problema é dele, não podemos deixar que um aluno passe sem dominar o conteúdo” (Reunião Pedagógica dos Cursos de Informática, Diário de

Campo: anotação de 07/12/2011).

Nesse sentido, segundo Gauthier (2006), os saberes da tradição pedagógica são modelos que se cristalizaram e formam representação de escola, mesmo antes de entrar nela. Essa representação, ao invés de ser desmascarada e criticada, serve de molde para guiar o comportamento do professor, possibilitando, por conseguinte, a construção de imagens da docência que atuam no âmbito de um saber cultural da docência.

Igualmente, pode-se dizer que esses elementos, quando refletidos criticamente, passam construir sentidos mobilizadores de novos saberes, pela necessidade evolutiva do contexto refletido e das imposições da temporalidade humana, encaminhando, assim, para o olhar atento às vivências cotidianas e, por intermédio delas, encontrar os saberes da experiência que buscam validação na ação pedagógica.

34 Esses professores constituem o grupo de professores do curso, mas não estão entre os seis que