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4 LÍNGUA PORTUGUESA E ENSINO

4.1 ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: SABERES E FAZERES

4.1.2 Os saberes gramaticais na escola

Com as novas orientações da proposta educacional para o ensino de Língua Materna, as atividades de gramática passaram a ter um espaço mais restrito na sala de aula. Esse fato ocorreu em virtude da implantação de uma concepção de linguagem numa dimensão interacional, que concebe a língua em uso e, principalmente, objetiva desenvolver a competência comunicativa dos alunos. Sabemos, contudo, que, embora tenha mudado o enfoque das atividades gramaticais, elas não podem deixar de existir no contexto escolar e no fazer pedagógico dos professores.

Koch (2002, p. 3) considera que essa mudança de foco não deve significar que “a gramática seja inútil e não deva ser ensinada e que o texto não sirva apenas de pretexto para estudar aspectos gramaticais”, mas que o ensino de língua leve o aluno a refletir sobre o modo como se produzem sentidos na interação por meio da língua, ou seja, por intermédio de textos, uma vez que a manifestação da linguagem ocorre na superfície do produto textual, seja ele oral, seja ele escrito. Assim sendo, podemos constatar que o trabalho com a gramática não foi relegado ou banido da sala de aula, tendo apenas mudado o enfoque, pois, à medida que o texto foi tomado como unidade básica, outros elementos constitutivos do tecido textual, como gêneros, coesão, coerência, intertextualidade, construção de sentidos, passaram a ser focalizados com maior ênfase.

Nesse sentido, Possenti (2003) propõe a diminuição do espaço dedicado à gramática e o aumento das atividades com o texto, pois considera que a falta de uma concepção de texto como unidade básica acaba gerando problemas de aprendizagem. Contudo, o autor afirma que uma mudança dessa natureza precisa de uma revolução no âmbito da escola, tendo em vista os privilégios da gramática nos programas das disciplinas. O autor enfatiza, ainda, a necessidade de os professores compreenderem que conceber a língua como atividade interacional

requer “práticas efetivas, significativas, contextualizadas”, nas quais sejam contempladas atividades que trabalhem o falar, o ouvir, o ler e o escrever (POSSENTI, 2003, p. 47). Então, sugere uma reorganização dos conteúdos de ensino de língua, em que as prioridades não estejam apenas nos aspectos gramaticais, ou seja, a proposta é distribuir esses conteúdos de modo que não tenham tanta supremacia na sala de aula. Porém, o autor esclarece:

Falar contra a “gramatiquice” não significa propor que a escola só seja “prática”, não reflita sobre as questões de língua. Seria até contraditório propor esta atitude principalmente porque se sabe que refletir sobre a língua é uma das atividades usuais dos falantes e não há razão para reprimi-la da escola.

Portanto, a escola e os professores precisam entender que não se trata de retirar esses ensinamentos, mas de repensá-los de forma que estejam conjugados com a concepção de língua e com os objetivos de ensino. Todavia, o processo de ensino e aprendizagem nesses moldes somente será viabilizado se os docentes mudarem o fazer pedagógico. Por isso, o autor sugere que no trabalho com os saberes gramaticais é preciso que o professor empregue vários tipos de gramática, mas dê ênfase à gramática de uso (internalizada), pois o importante é que o aluno saiba expressar-se de várias maneiras e de acordo com o ambiente, com os participantes e com a situação, tendo em vista que aprender a língua nessa perspectiva é “aprender a dizer a mesma coisa de maneiras diversas” (POSSENTI, 2003, p. 92).

Ao propor a reestruturação desses conteúdos, o autor destaca a necessidade de se compreender que o princípio mais elementar para a elaboração de programas de ensino refere-se ao seguinte entendimento: “O que já é sabido não precisa ser ensinado” (POSSENTI, 2003, p. 50). Sendo assim, as práticas mais relevantes desenvolvidas na escola dariam mais ênfase às atividades de leitura, escrita e oralidade.

Considerando esse posicionamento, percebemos que a mudança no enfoque dos saberes gramaticais impõe-se como um grande desafio aos docentes, haja vista que atender às novas exigências do ensino de Língua Portuguesa e, especialmente, desses saberes exige modificações radicais nas práticas pedagógicas. Em relação a esse aspecto, Vieira e Brandão (2008) apresentam alguns encaminhamentos e

sugestões, dentre eles, o de alocar a gramática nos conteúdos de língua, atrelando- os aos objetivos de desenvolver a competência de leitura e de produção textual.

No que se refere à sistematização do ensino gramatical, Travaglia (1996) propõe ações didáticas que envolvam atividades de gramática de uso, reflexiva, teórica e até mesmo a normativa, desde que estejam relacionadas aos objetivos de ensino de língua, às concepções de linguagem e aos tipos de ensino adequados ao desenvolvimento da competência comunicativa. Com isso, procura oferecer como sugestão aos professores a realização de atividades que envolvem os tipos de ensino adequados ao desenvolvimento dessa competência comunicativa. Nas suas indicações para o ensino gramatical, Travaglia (2003, p. 75-76) afirma que existem duas maneiras para o professor trabalhá-lo, conforme expomos a seguir.

 Aproveitando a ocorrência dos recursos e fatos da língua em uso que o aluno faz da mesma enquanto produtor e receptor de textos.

 Através de um trabalho sistematizado por meio de duas abordagens.  Com entradas pelo tipo de recursos

 Com entradas pela instrução de sentidos.

A sistematização do ensino de gramática pelo tipo de recursos é a mais utilizada pelos professores, porque, inclusive, é uma sugestão dos programas dos órgãos ligados ao ensino, na esfera pública ou particular. Nesse caso, o professor precisa planejar seu fazer pedagógico para ensinar os recursos linguísticos, mostrando como funcionam em diversos textos e em diferentes situações comunicativas, ou seja, oferecendo aos alunos a oportunidade de usar esses recursos, sabendo que servem para expressar suas ideias. No segundo tipo de sistematização, a entrada ocorre pela instrução de sentidos, ou seja, o aluno deve saber como usar os recursos linguísticos em função da construção de sentido que deseja produzir. Por isso, o docente precisa afastar-se de um ensino meramente prescritivo e descontextualizado, pois não se ajusta às pretensões de desenvolver a competência comunicativa dos alunos. Desse modo, podemos perceber que há a necessidade de recorrermos aos conhecimentos linguísticos, utilizando a concepção de língua/uso e os tipos de gramática em função de um aprendizado significativo da língua. Para isso, Travaglia (2003) sugere que os professores usem os diversos tipos de gramática, a saber: a gramática de uso, a gramática reflexiva e a gramática normativa.

Analisando a questão sobre o ensino de gramática, Neves (2003) assevera que, no contexto escolar, desconsidera-se o funcionamento da linguagem, uma vez que a prática pedagógica não privilegia a reflexão sobre os usos linguísticos. Por esse motivo, o ensino configura-se como um “ritual” do tradicionalismo gramatical em que as atividades são organizadas em torno de categorias, as quais, alheias ao funcionamento da língua, estruturam-se independentemente das interações linguísticas. A autora aponta, também, que o modo usado para legitimar o tratamento escolar da gramática deve firmar-se na competência linguística, na qual todo falante é capaz de produzir enunciados, ligando a cognição e a linguagem, bem como na competência comunicativa, que se refere à produção de discursos na interlocução e é considerada como “território” das escolhas e da adequação, permitindo aos interlocutores a reflexão a respeito dos usos da língua e dos efeitos de sentido produzidos nos eventos interacionais. Logo, a escola deve fundamentar o tratamento da gramática nos usos da linguagem, haja vista que, segundo Neves (2003, p. 125), “a gramática de uma língua em funcionamento não se faz com regras absolutistas, com condições autônomas de aplicação”, mas com o uso que fazemos no contexto das interações.

A partir dessas considerações, precisamos reconhecer que os aspectos gramaticais não devem ser vistos como os fins da ação didática, mas como meios que servem de ferramenta para construir sentidos e compreender textos orais e escritos. Portanto, nas aulas de Língua Materna, deve haver espaços para os encaminhamentos dos saberes gramaticais, até porque não existe língua sem gramática (POSSENTI, 2003; ANTUNES, 2003), contudo precisamos enfocá-los no conjunto das atividades que envolvem a fala, a escrita e a leitura. Por isso, frisamos que os aspectos gramaticais sejam redimensionados em função da perspectiva textual e/ou discursiva adotada na concepção de ensino de língua enquanto processo enunciativo, conforme preconizam os parâmetros curriculares nacionais.

Enfim, se o professor pretende desenvolver a competência comunicativa dos alunos, não pode deixar de explorar as expressões orais próprias do comportamento linguístico que revelem valores culturais de uma comunidade, devendo abrir espaço para que não somente a variável padrão esteja marcando presença no contexto escolar, mas também as demais variáveis linguísticas. Uma vez que uma das metas do ensino de língua é ampliar o repertório dos alunos, o professor deve realizar atividades que envolvam os usos da linguagem, explorando os diversos tipos e

gêneros textuais que circulam socialmente. Assim, nas aulas de Língua Portuguesa, os alunos poderiam reconhecer os recursos expressivos e as inovações da linguagem que realmente usam, confrontando as regras gramaticais e os usos percebidos no contexto das interações sociais, trabalhando uma gramática que é da língua e das pessoas.

Todavia, sabemos que ensinar Língua Materna sob esse novo enfoque traz sérias implicações para o fazer pedagógico do professor, dentre elas, a disponibilidade para promover uma mudança significativa de sua prática e, por que não dizer, dos próprios fundamentos teóricos advindos dos avanços da Linguística. Além disso, há uma dificuldade enorme de o professor efetuar a transposição didática dos saberes, na qual precisa executar os programas de ensino, utilizar as teorias (linguísticas e educacionais) e desenvolver uma prática pedagógica que permita ao aluno desenvolver sua competência comunicativa.