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5 REDESCOBRINDO A SALA DE AULA

5.3 Sala de aula: ação de Margarida segundo Sofia

A partir deste tópico focaremos, principalmente, nos dados de Sofia, porque se tratam de questões peculiares percebidas em seus diários. Assim, proporcionaremos um diálogo com ela, considerando as pertinentes reflexões que faz sobre sua prática, inclusive quando confrontada com a conduta da professora Margarida.

Em todo o percurso traçado até aqui, no que se refere, de modo geral, à interação de Sofia com os alunos, com Margarida e ao Ethos que ela demonstrou sobre eles em suas declarações durante esse processo, notamos algumas oscilações nos posicionamentos da professora em formação inicial, os quais são apresentados e marcados em dois momentos diferentes de sua atuação em sala de aula: quando ela atua realizando as oficinas e outras

atividades, como, por exemplo, o Ciclo de leitura, e quando ela atua como observadora, apenas fazendo registros sobre as aulas da professora supervisora.

Nesses momentos observamos que Sofia apresenta modos de pensar a prática docente e perceber os alunos de maneiras diferentes (consequentemente constrói diferentes Ethos de si mesma e dos alunos), e essas oscilações são apresentadas em seus diários, no qual ela relata sobre sua atuação e sobre a atuação de Margarida. Estas ponderações podem ser observadas nos enunciados 13, 14 e 6, construídos com base em situações diferentes: os enunciados 13 e 14 são referentes ao Ciclo de leitura, e o enunciado 6, refere-se aos primeiros momentos de Sofia com a turma.

A partir dos enunciados mencionados acima, é possível observar que, nas duas situações, ocorrem participações de ambas as partes, ou seja, enquanto Sofia realiza o Ciclo de leitura com os alunos, a professora Margarida também participa desse momento; do mesmo modo, Sofia participa quando Margarida está ministrando sua aula e, são nesses diferentes momentos que Sofia apresenta oscilações em seu posicionamento, mesmo que elas lhes sejam despercebidas, conforme inferimos.

Nos primeiros enunciados, constatamos que Sofia critica a conduta de Margarida e sua decisão de atribuir nota a uma atividade que não poderia ser concebida como uma avaliação, mas como um processo de interação com os alunos, no qual eles poderiam ser orientados e motivados pelas bolsistas a nutrirem desejo pela literatura enquanto iam, aos poucos, tendo seus primeiros contatos com livros, porque conforme ela declara: “a maioria nunca leu um livro inteiro antes ou leu pouquíssimo, pelo que nos afirmaram” (Diário, Sofia, 16/7/2014). Descontente com o que observou, Sofia afirma que Margarida moldava sua prática às exigências do sistema escolar, e elas, Sofia e Glória, tentavam “manter o Ciclo de Leitura o mais longe possível desses ‘métodos’”, ou seja, as bolsistas procuram distanciar suas práticas, enquanto professoras em formação inicial, dos métodos tradicionais engendrados pelo sistema educacional.

Através dessas considerações de Sofia percebemos que ela deseja atribuir maior atenção ao processo de aprendizagem dos alunos, ou seja, ao desenvolvimento dos saberes que, gradativamente, eles vão construindo ao longo das aulas, a partir da interação com as professoras. Desse modo, o interesse de Sofia não está pautado meramente na aquisição de notas (embora elas sejam imprescindíveis para a aprovação dos alunos, conforme a escola determina), mas na maneira como esses alunos se apropriam das questões levantadas em sala de aula, apresentando suas reflexões e posicionamentos.

O segundo enunciado (2º momento), todavia, refere-se à determinada aula de Margarida em que Sofia teve seu espaço de atuação e, ao contrário do que observamos nos primeiros enunciados do primeiro momento, neste segundo Sofia não apresenta críticas sobre os procedimentos da professora, uma vez que seu posicionamento está relacionado com o da docente. Mesmo que não haja uma reflexão de Sofia sobre tal situação (conforme inferimos), ela reproduz certos discursos da sociedade dominante, referentes à maneira como o professor deve lidar com os alunos: impondo regras, cobranças e controle sobre eles “tentávamos cobrar resultados deles [...]. [...] salvo algumas exceções que tentaremos controlar” (DIÁRIO, sem data). Como discutido na segunda seção, esse é um conceito equivocado de disciplina (VASCONCELOS, 1994), a qual, dessa maneira, é aplicada de forma repressora em sala de aula e espera uma obediência absoluta dos alunos. Consequentemente, um professor que segue esse padrão se direciona mais significativamente para os resultados que pode obter dos alunos, e não para o processo de aprendizagem deles.

Consideramos que, mediante essas oscilações, Sofia apresenta diferentes Ethos de si que são construídos pelas diferentes posições que ela ocupa em sala de aula, isto é, no primeiro momento, Sofia se mostra insatisfeita diante da conduta de Margarida e, a partir disso, apresenta um Ethos caracterizado por tal insatisfação; no segundo momento, ao se colocar no lugar do outro, neste caso, de Margarida, Sofia se identifica com a professora e relaciona seu posicionamento ao da docente. A partir disso, retomamos que o Ethos pode ser construído sob diferentes instâncias e sua constituição, enquanto imagem construída no discurso, flexiona-se a partir dos diferentes contextos em que o sujeito está inserido, visto que este fala, posicionando-se criticamente a partir de seu lugar social, isto é, seu discurso está intrinsecamente ligado a este lugar. Nessa perspectiva, Florêncio (2009, p. 25 - 26) afirma:

Não há, pois, discurso neutro ou inocente, uma vez que ao produzi-lo, o sujeito o faz, a partir de um lugar social, de uma perspectiva ideológica e, assim, veicula valores, crenças, visões de mundo que representam os lugares sociais que o ocupa.

Desse modo, é de fundamental importância considerar que o sujeito manifesta as marcas de seu contexto sócio-histórico, apresentando, consequentemente, as determinações desse espaço em seu discurso. A partir disso, compreendemos que as falas de Sofia oscilam por causa das determinações do contexto em que está inserida e, também, porque ela se caracteriza como um sujeito dialógico, que se constitui socialmente mediante sua interação

com o outro. Tal concepção de sujeito difere das outras, denominadas de Sujeito Individualista/Consciente e Sujeito Assujeitado38.

De acordo com a primeira concepção, o sujeito, também denominado de adâmico, é dono de seu dizer e seu discurso é considerado como unicamente seu; já a segunda concepção defende que o sujeito é assujeitado pelas determinações sociais e, consequentemente, produz discursos que, apesar de serem considerados como únicos, são, na verdade, condicionados por discursos anteriores. É importante esclarecer que consideramos e defendemos neste trabalho a concepção de sujeito dialógico, que se constitui mediante sua interação com o outro, a partir da relação entre história e linguagem.

Com base nessas considerações, ressaltamos que, apesar de Sofia apresentar certo assujeitamento diante das determinações institucionais, que atribuem a ela uma posição de sujeito relativamente39 autônomo, sua atuação caracteriza-se, predominantemente, como um sujeito dialógico, visto que ela constrói espaços para atuar e neles apresenta seus posicionamentos enquanto interage com os demais sujeitos daquele contexto; por isso, reproduz certos discursos institucionais. Desse modo, enfatizamos que é a partir da interação com o outro que o sujeito se constitui (BAKHTIN, 2011; 2014), tornando-se, portanto, um sujeito heterogêneo, ou polifônico40, visto que se apropria de outros discursos, outras vozes precedentes que o caracterizam como sujeito dialógico.