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Salvação para a mulher no exercício da maternidade

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2 PROCESSOS DE LEGITIMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA VIOLÊNCIA

2.1 O TEXTO QUE LEGITIMA VIOLÊNCIA: 1TIMÓTEO 2, 11-15

2.1.3 O Conteúdo

2.1.3.2 Salvação para a mulher no exercício da maternidade

Ainda no estudo do conteúdo do texto sagrado, passamos agora a refletir sobre o versículo 15: “Entretanto, a mulher será salva ao dar à luz filhos, se ela continuar a confiar, amar e viver de forma santa e modesta”. Essas prescrições relativas à conduta das mulheres (fé, caridade e santidade) são aquelas que os textos bíblicos indiciam como características especificamente da mulher perfeita, modelo ideal de mulher. Dessa maneira, a maternidade assume a forma de permitir a salvação da mulher. O papel social da mulher identifica-se, assim, com a maternidade, o que a remete imediatamente para o domínio do lar e do privado.

Wagener (1999) afirma que o autor da carta conclui as instruções para as mulheres dando uma concepção básica ao papel da mulher: “Ela será salva dando à luz filhos” (v.14). Segundo a autora, essas palavras sobre salvação aparecem para oferecer às mulheres que caíram sob o pecado um “caminho de escape”. No entanto, a promessa de salvação tem um grande papel prescritivo: elimina a liberdade da mulher e a obriga a cumprir seu papel reprodutivo enfatizado por uma confirmação baseada em um discurso teológico questionável.

Fabris (1986, p. 116) acrescenta que, nesses versículos 14 e 15, o autor da carta atenua o seu pessimismo misógino, machista, apontando um possível caminho de salvação para as mulheres, pela maternidade e educação dos filhos, desde que cumpra um requisito (v.15): “se ela continuar a confiar, amar e viver de forma santa e modesta”, perseverante e fiel, segundo o ideal cristão ligado ao equilíbrio e à modéstia. Todavia, Fabris e Rinaldo (1986, p. 117) chamam-nos a atenção para essa proposta do ideal feminino cristão imposto pelo autor da carta e para o peso dos esquemas culturais e sociais da época se faz sentir:

A mulher ideal é a que desempenha com integridade o papel de esposa e de mãe. Esse é o modelo feminino que consegue a maior aprovação, quer no ambiente bíblico-judaico, quer no costume greco- romano que preza a mulher ‘matrona’

Tida como um ser de natureza mais vulnerável a se prestar às mais diversas torpezas – e por isso impedida de se submeter integralmente às regras culturais –, a mulher só poderia ter no casamento e na maternidade sua chance de salvação. Segundo Araújo (1997, p.52):

Finalmente, com prazer ou sem prazer, com paixão ou sem paixão, a menina tornava-se mãe, e a mãe honrada, criada na casa dos pais, casada na Igreja. Na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da mulher. Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher virgem que pariu o salvador do mundo.

Maria, nomeada como “Mãe de Jesus” e “Virgem Maria”, apresentava essa característica imposta ao ser feminino de “dar a luz filhos”. Para muitos cristãos, ela é um padrão a ser seguido, isto é, uma derivação da mulher perfeita: virgem, esposa, mãe, serva, submissa. Porém, aqui, focar-nos-emos apenas na maternidade, já que esta é a característica feminina evidenciada no texto sagrado que nos propusemos a investigar.

As questões da maternidade e da procriação assumem em Maria particular significado no nível das consequências práticas para as próprias mulheres, especialmente no que diz respeito aos seus papéis no lar e na sociedade.

Percebemos que a problemática da dominação masculina, da hierarquização sexual e, consequentemente, da submissão e subordinação da mulher dificilmente pode ser estudada sem que consideremos o modo como as características biológicas femininas – sobretudo neste caso a maternidade, a capacidade de dar à luz – para conseguir a salvação são apresentadas como essencialmente de origem feminina e como são justificadas a partir das construções sociais dos papéis de gênero.

No decorrer da história, a figura de Maria esteve intimamente ligada à figura feminina. As mulheres se identificavam com Maria, ou melhor, com “Nossa Senhora”22:

22

Queremos esclarecer que a figura de Maria “mãe de Deus” sempre esteve muito presente nas expressões religiosas do catolicismo. Os Dogmas e as doutrinas marianas da Igreja Católica têm a sua fundação na visão central de que a Virgem Maria é a Mãe de Deus. Em função disso, a Igreja Católica sempre considerou Maria a figura mais importante do Cristianismo e da salvação, depois de Jesus Cristo e da Santíssima Trindade. Assim, a Igreja possui muitos ensinamentos e doutrinas em relação à sua vida e ao seu papel. Segundo a

[...] muitos autores dizem que a devoção a Nossa Senhora foi usada, conscientemente ou não, para transmitir e reforçar para o povo uma imagem de mulher calada, submissa, passiva e resignada. Uma mulher que obedece ao marido, cuida dos filhos, vai à missa e reza todos os dias, mas que não tem consciência de seus problemas e nem luta para resolvê-los (CARDOSO, 2000, p. 3).

Na perspectiva de Toldy (1997, p.245), as descrições da mulher apresentadas em alguns textos cristãos revelam uma tendência para idealizar a figura de mãe perfeita – que, aliás, é a de Maria mãe de Jesus – e isso poderá não ser muito positivo para a identidade feminina, já que a mulher é, assim, sempre vista em função das necessidades de um outro, adquirindo as suas ações, seus sentidos, apenas à medida que se dirigem a esse outro.

Já para Ary (2000, p. 6) essa visão cristã sobre a mulher esta ancorada na mitologia do Jardim do Éden, na qual a mulher seria a responsável pela desobediência de Adão a Deus e, por isso, culpabilizada pela queda da Humanidade. Portanto, Eva simbolizaria a fraqueza feminina e demonstraria a importância de manter as mulheres sob vigilância. Nessa percepção, as mulheres deveriam pagar as penas de Eva assumindo as dores do parto e o seu papel naturalmente secundário em relação ao homem.

O imaginário cristão foi e é permeado por essas ideias provenientes desse mito da criação, o que colocou as mulheres em lugares determinados e em situação de submissão em relação à autoridade masculina na sociedade. Portanto, argumentos bíblico-teológicos utilizados em 1Tm 2 serviram de fundamento para “agravar profundamente a discriminação a respeito da condição da mulher” (FABRIS e GOZZINI, 1986, p. 115).

doutrina da Igreja Católica, Maria está associada a alguns dogmas de fé, entre eles, citaremos os que mais interessam à pesquisa: virgindade perpétua (Virgem antes, durante e depois do parto) e a maternidade divina (Maria é mãe de Deus. No entanto, se Jesus é Deus e Maria é mãe deJesus, logo Maria é mãe de Deus. A maternidade divina de Maria foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, tornando dogmaticamente oficial aquilo que a devoção popular já afirmara. Nas palavras do primeiro Anatematismo de Cirilo de Alexandria contra Nestório: “se alguém não confessar que Emanuel é verdadeiramente Deus e que portanto a Santa Virgem é a Mãe de Deus (Theotokos), pois que dela nasceu de modo carnal e como a Palavra de Deus revestida de carne, que seja excomungado”. Além disso, foi em honra da proclamação de Maria como Theotokos pelo Concílio de Éfeso que, logo após esse sínodo, o Papa Sixto III constituiu o mais importante santuário dedicado a Maria no Ocidente, a Basílica de Santa Maria Maior, em Roma (PELIKAN, 1996, p. 84).

Para Dias (2012), a sacralização da maternidade ainda existe nos dias atuais. Para a autora, muitas mulheres depositam, no casamento, “o ideal da felicidade: ser rainha do lar, ter uma casa para cuidar, filhos para criar e um marido para amar” (DIAS, 2012, p. 20).

No próximo tópico, abordaremos o contexto sociopolítico e cultural de 1Tm 2, 11-15 para averiguar fatos, princípios e valores que contribuíram para a formação e legitimação da história de silêncio, submissão e opressão da mulher.

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