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Depois de Foucault68, o trabalho de Carl Schmitt desdobra-se com

peculiaridade na relação teologia e política, ou, nos termos próximos do pensador francês, do pastorado e da política. É fato que Schmitt já havia compreendido essa relação muito tempo antes de Foucault com sua Politische Theologie (1922), entretanto,

a organização do texto é melhor compreendida ao se mediar a genealogia de Foucault e, após isso, a teoria jurídica de Schmitt.

Enquanto teólogo, filósofo e jurista, Schmitt observou uma relação estreita entre os conceitos de teologia, política e direito. Em razão disso, em sua Politische Theologie (2004, p.43), apresentou que “todos os conceitos decisivos da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos69 secularizados70”, na qual deslocou a

discussão da oikonomia divina para a economia doméstica de efeito por um humano por natureza e divino pela graça (KANTOROWICZ, 1998, p. 72). Grosso modo, a leitura de Schmitt, principalmente sobre Bodin e Hobbes, trouxe a explicitação de uma ordem maquínica (machina ordo) à política contemporânea, na medida em que, ao se deparar com um corpo estamental político, necessitava encontrar algo para garantir, como pensou Bodin, a legitimidade do soberano. Bodin sustentou a ação do soberano a partir do direito, enquanto Hobbes viu essa relação sendo sustentada, como sedimentou Foucault anteriormente, com o pacto social pelo medo e, tão logo, na defesa do soberano pela disciplina e a punição. Schmitt não está, conceitualmente, muito distante desses pensadores; mas, factualmente, seu momento histórico o força a compreender outro viés da política, saber, a política que age presunçosamente sobre o corpo e pela disseminação da economia. Por isso, o Estado moderno, ora transformado em um Estado Constitucional (Rechtsstaat) de preeminência do uso da força e da repressão, foi além ao assumir a legalidade de um sistema positivista71 anos

depois. Isso significa que o Estado transformou-se de um legislator humanus a uma machina legislatoria, cujo direito foi monopolizado na figura positiva do governo para gerir a vida humana. Desse engodo, é preciso questionar: qual seria a tese de Schmitt ante a essa estrutura? Para o autor, Deus assumiu uma conotação política de representação de uma unidade do povo e, tão logo, uma função democrática; isso significa, que, uma vez estabelecida a conotação política divina, sua transcendência

69 Menciono com grifo o conceito “teológico” para pôr em evidência o que, tanto Carl Schmitt quanto Erik Peterson em seus debates e críticas do início do século XIX, encontraram correlação com o conceito de oikonomía

70 Para conferência: Alle prägnanten Begriffe der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe. 71 Segundo Norberto Bobbio (1995, p.15), o direito positivo compreende uma antítese à escola jusnaturalista. Para os positivistas, o direito é constituído a partir das bases jurídicas, e não naturalmente adquirida. Se, com os naturalistas, a existência presume o direito, com os positivistas, a existência só pode ser garantida na medida em que esta é conhecida pelo direito.

monárquica passou a ser convertida em imanência democrática pelo contato com o Estado Constitucional e mediada pelo soberano. (SCHMITT, 2006, p.101-102).

Em Die Sichtbarkeit der Kirche (A visibilidade da igreja, tradução minha), Schmitt assevera uma relação entre o Estado e a Igreja como configuração da teologia e da política. Enquanto a igreja surge com a necessidade de mostrar a verdade a partir de sua organização eclesiástica e de seu chefe – o papa –, o Estado é constituído com a necessidade de efetivar o direito por meio de uma ordem jurídica incontestável. Em ambos os casos, a proximidade entre as áreas pode ser compreendida pelo nexo formal e vazio, que se erige do Estado ao constituir o direito na ordem jurídica, e o simbólico e visível, que emana da figura cristã. Para o autor alemão, Cristo não é apenas uma figura mitológica; ele é a realização efetiva que, no decorrer da história e de sua impossibilidade de se comunicar diretamente com o mundo, centra-se no homem e em sua mediação pelo Estado. Nas palavras do jus-filósofo: “Um evento que faça valer o invisível no visível tem de se enraizar no invisível e de aparecer no visível; o mediador desce porque a mediação só pode suceder de cima para baixo (em menção à relação do Estado para com os homens), não de baixo para cima (em menção à relação da igreja com os homens); a redenção está em que Deus se tornou homem (não em que o homem se tornou Deus)” (SCHMITT, 1917, p.75).

A tese schmittiana da invisibilidade pela visibilidade, ou melhor, de Cristo pelo Estado, recai no elo parental que une a igreja e o Estado, a saber, a religião. A partir da influência do pensador espanhol Donoso Cortés, Schmitt se deparou com o problema da mediação que, em linhas gerais, garantiu a topografia da relação Igreja- Estado e da teologia política. Isso porque a religião – enquanto ato de fé – poderia ser alcançada, conforme as correntes de pensamento que se erguiam no limiar do século XIX e XX, sem a mediação do Estado e da Igreja.

Esse emparelhamento em relação à figura do soberano, como executor divinae Providentiae, e do papa, como figura do corpus christi, fez com que Schmitt encontrasse uma possibilidade teórica para justificar a necessidade dos homens em permanecer conectados às instituições. Tão logo, o pensador alemão encontrou um meio de mostrar que a tese de Kantorowicz da “realeza centrada em cristo”, e, portanto, da mediação, poderia ser moldada pelo caráter de uma decisão (Entscheidung) ex capere. Isso significa que a decisão poderia, sem alterar o contato espiritual com Deus,

aparecer como fundamento último sem a referência da própria mediação. Seja na figura do papa ou na do soberano, a decisão ex capere, isto é, aquela que vai além do aspecto formal e visível, poderia ser tomada como extensão do caráter divino, na qual a Entscheidung seria a mediação da mediação.

Vejamos que Schmitt parece encontrar um elemento “novo”, mas secularmente enraizado tanto na política quanto na religião, que o possibilita afirmar a relação entre a metafisica e a imanência. Por isso, indo contrário à tese de Spinoza de Deus sive natura [Deus ou Natureza] – tese que dissolve a transcendência divina na imanência natural – o autor alemão não se restringiu na simples aceitação, como delineou em seu Politische Romantik (1998), das “duas grandes transformações que podem associar-se em um interessante contramovimento”. Dentre essas transformações, das quais o autor se vale i) da prerrogativa de que, com o sistema de Copérnico, a terra deixou de ser o ponto central do universo, e ii) da interpretação que a Filosofia de Descartes começou a desconstruir o modelo ontológico antigo, de maneira a esboçar o cogito, ergo sum como um plano inteiramente subjetivo e não mais externo, nota-se o ensejo de que, com a primeira transformação, o pensamento geocêntrico foi deslocado pela necessidade científica de provar o fundamento além- terra, e, com a segunda, de encontrar uma fundamentação em si mesmo (SCHMITT, 1998, p.62).

Certamente, o que alarma Schmitt é a total ruptura que os sistemas produziram ao expurgar Deus, ou pelo menos não colocá-lo como causa, em seus projetos. Esse movimento peculiar, permite o autor compreender que, na verdade, o pensamento oikonomico é apenas uma consequência da metafísica imanente, na medida em que acredita na possibilidade de melhorar a condição humana pelas transformações econômicas e sociais. À vista disso, Schmitt compreende que a metafísica e a discussão ontológica – em específico, aquela que associava o homem à Deus – fora incorporada nos Estados, a partir da secularização dos conceitos eclesiásticos e da mediação do poder divino pela decisão do soberano; isso significa, em melhores palavras, que o elemento central que vincula a teologia cristã à imanência soberana é a tese do decisionismo, ou seja, aquela que atribui ao soberano o poder de decidir.

Nessa matiz de pensamento, é possível compreender que o jus-filósofo pretende definir uma “moral absoluta” pelo elo transcendência-imanência, e, ao mesmo tempo, criticar a “pseudorreligião da humanidade absoluta” verificada com o desamparo metafísico-ontológico. Aqui, é necessário fazer uma importante menção trazida por Schmitt em sua obra Donoso Cortés in gesamteuropäischen Interpretation, que será abordada com maior profundidade no último capítulo dessa dissertação. Segundo a análise de Schmitt, Donoso Cortés identificou com bastante ênfase que a “pseudorreligião da humanidade absoluta” é uma das maiores geradoras do terror e dos massacres (SCHMITT, 1950, p. 108-109).

Por isso, na visão filosófica de Schmitt, a relação teologia e política tende cada vez mais para sua própria “economização”, e, por isso, na redução ou despolitização, como analisou Agamben, da polis em oikos. A “economização”, isto é, o processo de tornar a política em uma esteira contemporânea do oikos, e, portanto, da gestão, é visto, com Schmitt, como o avanço desenfreado daquilo que ultrapassa72 o nexo da

política e da teologia. Note-se que, segundo o autor alemão, a herança maquínica de Hobbes – enquanto movimento constante de uma política fluída – desemborcou em uma acepção de que para garantir a decisão e a legitimidade das instituições, era preciso recorrer, não só ao direito como fez Bodin, mas também à teologia e encontrar nela o mote da decisão. Conquanto se encontra esse mote, é possível justificar, então, que o soberano contemporâneo, deslocado pela necessidade de gerir a política, está secularmente sustentado pela herança teológica.

Ter-se-ia de afirmar, portanto, que o cerne da política contemporânea, conforme Schmitt, é garantido por uma teologia política de intensa mediação e representação simbólica. Por isso, todas as instituições que se vinculam à figura do Estado carecem de um conjunto de ritos que remetem ao simbolismo teológico. É esse conjunto de ritos que traduzem a presença metafísica una de Deus à jurisdição e à ação do soberano, ou melhor, que reverberam como a instância divina permanece desvelada na tradição política.

A partir da exposição dessa abordem, mostrarei, em seguida, como Benjamin desenvolveu um diálogo próximo à conclusão de Schmitt acerca da proximidade entre a teologia e a política. Importa-me fazer este percurso para abordar como Agamben, ao tracejar uma linha conceitual entre Foucault, Schmitt e Benjamin, chegou à conclusão de que o oikos contemporâneo é fortuitamente um elemento denominado de paradigma governamental da economia, resultante de processos de (des)politização.

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