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3 AUTONOMIA E EMANCIPAÇÃO EM PAULO FREIRE

3.6 Sectarismo e Irracionalismo

São vários os agentes que contribuem e restringem a conquista da autonomia. Entre essa variedade de agentes, Freire ressalta o caráter de violência que permeia esse fenômeno. Neste sentido, podemos visualizar toda relação de dominação, portanto, opressão, como violência e não importa se muitas vezes adocicada pela falsa generosidade. Todo ato desumanizante é, não somente em potencialidade, mas rigorosamente uma forma de violência.

Uma das formas presentes de violência é aquela fundada no sectarização e seu caráter intransigente frente à realidade. Freire aponta a potencialidade do sectarismo equivalente ao irracionalismo, e este não pode ser desvinculado da idéia de heteronomia, pois a irracionalidade é, radicalmente, distinta de toda e qualquer possibilidade de autonomia.

Este ponto apresenta um estágio, do pensamento freiriano, que extrapola cada vez mais o contexto escolar e a sala de aula. Não que estivesse limitado ou preso, mas que sua articulação entre política e educação se torna mais enfática. Nesta etapa, ele direciona uma atenção especial ao caráter sócio-político da teoria dialógica.

O conceito de sectário é direcionado para a militância, é nesse sentido que caracteriza o extrapolar do contexto escolar estendendo à política. A evolução conceitual toma a teoria da ação dialógica como ação social, crítica e prática. Neste aspecto começa a delinear a educação como um ato, por isso ela não muda nada, se não for situada dentro de um consistente bojo político.

É a partir dessa circunscrição que funda a possibilidade de compreendermos a linearidade do pensamento de Freire, e consequentemente meios para atingirmos um ideal de autonomia e suas possibilidades de efetivação.

Nota-se, neste particular, que a razão tem um papel importante e fundamental na conquista da autonomia, pois ela exige a coerência de trazer para prática, a decência. Freire sempre esteve atento às premissas histórico-sociológicas, que desenrolam os conceitos filosóficos mais fundamentais, tal como a autonomia, mas ele acena para possível superação conceitual, mediante a efetivação da “posse da realidade” por parte dos oprimidos, dos homens em suas relações uns com os outros.

Sua originalidade é advêm do pensamento crítico, e comprometida politicamente com sua realidade, é singularmente única, dado as especificidades histórico-sociológicas da qual o homem não se isenta, nem se abstrai ignorando-as, mas ao contrário, considerando-as como uma parte fundamental de sua constituição no mundo.

A partir de tal ótica perspectiva e consideração, evidencia uma concepção de autonomia que não se limita ao conteúdo abstrato racionalista, mas juntamente com princípios racionais, em diálogo com a tradição iluminista, traz à tona a reflexão à realidade histórico-sociológica singular. Dado a esta singularidade, específica de cada realidade, de cada povo, de cada indivíduo, é que figura a autonomia como experiência singular, sempre em conquista, pois é este o papel do educador, da prática educativo-crítica: “propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros, e todos com o professor, ou professora, ensaiam a experiência profunda de assumir-se” (FREIRE, 1996, p. 41).

O assumir-se, na lógica Freiriana, só é possível, enquanto e, “como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos” (FREIRE, 1996, p. 41).

Com efeito, se na tradição iluminista, tendo como marco o kantismo, a transição da heteronomia e assim por dizer da “menoridade”, se figura, necessariamente, através da razão esclarecedora, Freire evoca a razão consciente, na e pela práxis que toma posse de sua realidade, e apodera-se da realidade na medida em que esta não pertence a outro, senão a si mesmo.

O que está em questão não é, meramente, a razão no sentido abstrato, desprendido da realidade concreta, mas a própria concretização apoderada

pelo oprimido20. Compreendida desta forma, o sectarismo caracterizado, pertencente ou relativa ao ato intransigente, intolerante, também como membro ou seguidora de uma seita religiosa, como uma pessoa que segue e defende partidariamente outra no seu modo de pensar é alvo de crítica, isto porque intensifica a heteronomia.

Esta prática, conforme, apontada acima, nutre e alimenta a alienação, o fatalismo, o fanatismo, o mítico, isto porque a sua essência é “ser para outro” e não “ser para si”. É por isso que o sectário configura um obstáculo para a emancipação. Dessa forma, o caráter mítico e irracional configura um obstáculo, e deve ser superado para que haja, efetivamente, emancipação.

Se a ação libertadora e a autonomia, desenhada por Freire, buscam justamente a posse da realidade pelo oprimido, portanto, sua emancipação, a ação sectária, transforma a verdadeira realidade concreta, histórico-social, em “falsa realidade”. Significa, então, que um dos objetivos fundamentais da prática educativo- crítica, é combater toda e qualquer forma de sectarismo.

Sendo assim, a distorção da realidade, a maquiagem, a ficção e outras pseudoformas de compreender, consequentemente, de se relacionar com a realidade, deve ser objeto constante de reflexão, de curiosidade, de pesquisa e questionamento.

Especificamente no Brasil, juntamente com a colonização, o sectarismo entrou por todas as vias possíveis, tanto é que, mesmo depois de séculos de sua dita independência, as suas barreiras são quase intransponíveis e impera fortemente, pois o oprimido se posiciona passivamente, acriticamente, diante do irracionalismo que sem duvida é reproduzido culturalmente pelo próprio oprimido. De acordo com Vicente Zotti: “o irracionalismo fez-se presente, freqüentemente, na história do país, na defesa de privilégios inautênticos”, afirma que;

20Neste particular, é possível evidenciar uma dicotomia entre o pensamento kantiano de autonomia em relação ao

pensamento freiriano. A emancipação advinda do processo de autonomização kantiana antecede e sobrepuja a própria concreticidade e até mesmo a historicidade mediante a razão a-histórica e a-temporal. Tanto é que Kant afirma na introdução da Fundamentação da Metafísica dos Costumes que “nada é mais estimável, neste mundo e também fora dele, que uma boa vontade” (KANT, 1996, p. 20). Kant entende por vontade a faculdade de agir segundo princípios racionais, ao passo que boa vontade seria a vontade sempre guiada por esses princípios. Tanto a vontade quanto a boa vontade independe da matéria e do espaço, por isso o dizer de Kant “neste mundo e também fora dele”, ou seja, há uma independência das leis e princípios em relação ao contexto histórico-social. Freire não nega, em hipótese alguma, a razão abstrata que antecipa a história e o tempo como fundamental, essa abstração é entendida como necessária, porém, pode ser uma razão “em si mesmada” se não alinhavada na temporalidade. Com efeito, diferentemente de Kant, para Freire não há uma super estimação da razão em detrimento do contexto social. Portanto, qualquer medição entre ambos deve levar em considerações essas especificidades conceituais.

(...) vítima dos altos índices de analfabetismo ou semi-analfabetismo e historicamente sem hábito de participar ativamente, em muitos momentos foi manipulado por irracionalismos. (ZOTTI, 2007, p. 44).

O oprimido vitimado e alienado não reconhece a inautenticidade dos privilégios advindos do irracionalismo, e não reconhecendo o abuso, também não, a possibilidade de mudança da realidade que lhe priva de direitos. Isso ajuda compreender o fato de, historicamente, o país ser marcado por uma apatia política, por uma expressiva ausência de reivindicações e protestos.

Dessa teia, como aponta Zotti:

Isso reforça a necessidade de um processo educativo que promova a responsabilidade social e política, de uma ação educativa criticizadora, que promova o esclarecimento e emancipação do homem, com acento cada vez maior de racionalidade (ZOTTI, 2007, p. 44).

A racionalidade apontada acima é uma oposição ao modo irracionalista, portanto dogmático, fechado, advindo do sectarismo. Com efeito, tem- se uma crítica contundente à estrutura conservadora, marcada pela concepção mítica e irracional. Essa marca conservadora transforma a realidade numa falsa realidade, quase intransponível e de difícil mudança.

A crítica freiriana visa uma busca crescente pelo real desvelo, pela real conscientização das relações que permeiam a existencialidade e suas respectivas possibilidades apoderamento da mesma. Se o sectário nega e impossibilita o movimento dialético, dado seu caráter intransigente, rígido e estático, por outro lado, Freire, coerentemente, sinaliza a necessidade da ação política da militância se pautar em bases dialógicas para a emancipação. Nesta, há um rompimento com a fixes, com a intransigência, possibilitando o movimento permanente do ser.

Esses traços desenham um amadurecimento do pensamento freiriano, solidificando e dando consistência ao corpo teórico chamado Teoria Dialógica. A totalidade desse corpo teórico pode ser expressa através das categorias e dimensões do diálogo.

4 AÇÃO DIALÓGICA: DIMENSÃO ÉTICA, EPISTEMOLÓGICA, POLÍTICA E

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