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e, em seguida, o conceito O desconsiderar o individual nos dá o conceito, e com isso começa nosso conhecimento:

No documento A arte na filosofia madura de Nietzsche (páginas 57-88)

no rubricar, na instituição de espécies. A isto não corresponde, porém, a essência das coisas: esse é um processo

de conhecimento que não atinge a essência das coisas. Muitos traços individuais determinam para nós uma coisa, não todos: a identidade desses traços nos propicia subsumir muitas coisas sob um conceito‖ [N.F. Sommer 1872-

Anfang 1873, 19[236]* (NIETZSCHE, 2002, p. 28)]. ―Nós vivemos e pensamos segundo autênticos efeitos do ilógico, no não saber e no falso saber.‖ [N.F. Sommer 1872-Anfang 1873, 19[242]** (NIETZSCHE, 2002, p. 29)].

* ―Das Erkennen, ganz streng genommen, hat nur die Form der Tautologie und ist leer. Jede uns fördernde

Erkenntniß ist ein Identifiren des Nichtgleichen, des Ähnlichen d.h. ist wesentlich unlogisch. Wir gewinnen einen Begriff nur auf diesem Wege und thun nachher, als ob der Begriff „Mensch“ etwas Thatsächliches wäre, während er doch nur durch Fallenlassen aller individuellen Züge von uns gebilde ist. Wir setzen voraus, daß die Natur nach einem solchen Begriff verfahre: hier ist aber einmal die Natur und sodann der Begriff anthropomorphisch. Das Übersehn des Individuellen giebt uns den Begriff und damit beginnt unsre Erkenntniß: im Rubriziren, in Aufstellungen von

Gattungen. Dem entspricht aber das Wesen der Dinge nicht: es ist ein Erkenntnißprozeß, der das Wesen der Dinge

nicht trifft. Viele einzelne Züge bestimmen uns ein Ding, nicht alle: die Gleichheit dieser Züge veranlaßt uns viele Dinge unter einen Begriff zusammenzunehmen‖ [KGW III.4, p. 81-82/KSA 7, p. 493-494].

** ―Wir leben und denken unter lauter Wirkungen des Unlogischen, in Nichtwissen und Falschwissen‖ [KGW III.4, p. 84/KSA 7, p. 496].

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similares dos sistemas filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a certas possibilidades outras de interpretação do mundo. Filósofos do âmbito lingüístico uralo-altaico (onde a noção de sujeito teve desenvolvimento mais precário) com toda probabilidade olharão ‗para dentro do mundo‘ de maneira diversa e se acharão em trilhas diferentes das dos indo-germânos ou muçulmanos: o encanto exercido por determinadas funções gramaticais é, em última instância, o encanto de condições raciais e juízos de valor fisiológicos‖ [JGB/ABM 2022 (p. 26 tr. br.)].

A função gramatical mais relevante nesse contexto é sem dúvida a do sujeito verbal, que se cristaliza como pressuposto do sujeito lógico-metafísico. Esta noção, por sua vez, desenvolve- se na crença em uma consciência humana unívoca e estável, pressuposta na Psicologia idealista tal qual vigorava até à época de Nietzsche e que ele critica (desenvolverei sua crítica à consciência mais adiante); e, no entanto, na base elas são todas dependentes de perspectivas fisiológicas, i.e. do corpo! Hiperbolizadas essas noções metafísicas, num processo via de regra inconsciente (pois não se pergunta a fundo sob a proveniência delas), chega-se, em última instância, por um lado à crença idealista no poder universal da razão, e, por outro lado, à idéia de Deus. No ver de Nietzsche, essas duas instâncias são faces da mesma moeda, que é a mais valorizada no mercado do pensamento idealista; ele afinal exclama: ―A 'razão' na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Temo que jamais nos livremos de Deus, posto que ainda cremos na gramática‖ [GD/CI III 523

(p. 28 tr. br. - tr. alt.)]. Voltarei várias vezes à caracterização da linguagem em Nietzsche, pois trata-se de um ponto que apresenta muitas ramificações no interior dessa filosofia, conforme se poderá verificar ao longo do meu texto (mesmo quando eu não faça necessariamente alusão direta; conto com a memória do leitor para perceber as relações que minha pesquisa permite e pressupõe).

Encerrando esta introdução, cabe então notar que pode-se compreender ao menos dois sentidos para metafísica em Nietzsche. O primeiro, mais amplo, refere-se à Metafísica tradicionalista ―por ele essencializada como doutrina dos dois mundos―, às noções e procedimentos que ele critica como sendo equivalentes ao Idealismo. Essa concepção figura em sua análise da linguagem, no que tange à crítica aos ―lógicos fanáticos‖ [v. n. 75 abaixo]; e se desdobra, ainda, em sua crítica ao ascetismo [v. capítulo III]. O outro sentido, mais particular,

22 ―Gerade, wo Sprach-Verwandtschaft vorliegt, ist es gar nicht zu vermeiden, dass, Dank der gemeinsamen Philosophie der Grammatik — ich meine Dank der unbewussten Herrschaft und Führung durch gleiche grammatische Funktionen — von vornherein Alles für eine gleichartige Entwicklung und Reihenfolge der philosophischen Systeme vorbereitet liegt: ebenso wie zu gewissen andern Möglichkeiten der Welt-Ausdeutung der Weg wie abgesperrt erscheint. Philosophen des ural-altaischen Sprachbereichs (in dem der Subjekt-Begriff am schlechtesten entwickelt ist) werden mit grosser Wahrscheinlichkeit anders „in die Welt“ blicken und auf andern Pfaden zu finden sein, als Indogermanen oder Muselmänner: der Bann bestimmter grammatischer Funktionen ist im letzten Grunde der Bann

physiologischer Werthurtheile und Rasse-Bedingungen‖ [KGW VI.2, p. 29/KSA 5, p. 35].

23 ―Die „Vernunft“ in der Sprache: oh was für eine alte betrügerische Weibsperson! Ich fürchte, wir werden Gott nicht los, weil wir noch an die Grammatik glauben …‖ [KGW VI.3, p. 71/KSA 6, p. 77].

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se refere à ―metafísica‖ inerente à conformação humana do real, também presente na linguagem mas de maneira benéfica e necessária, porque extremamente útil à nossa forma de vida; é parte componente de suas considerações sobre uma gaia ciência. Quanto a esta segunda acepção, não encontro preocupação significativa de Nietzsche no sentido de se perguntar se com isso incorreria numa tendência ―pró-metafísica‖, portanto incoerente, de seu pensamento. Até porque, a bem dizer ele não a chama diretamente de metafísica, muito embora ela possa ser compreendida de tal forma, segundo a maneira que descrevi. Parece que não haveria propósito, da parte de Nietzsche, em igualar tais processos naturais e inescapáveis com a Metafísica: pois é esta que pode transformar pessoas em odientas ―inimigas da vida‖, e jamais aqueles processos. Sem estes, isto é, sem ir além do estritamente físico, animal, esquece-se (segundo suas próprias palavras) do essencial, que é justamente o ―espiritual‖ (assim chamado por falta de termo melhor, e escrito quase sempre entre aspas); sem isso, o homem não seria um animal indefinido e interessante, e não haveria razão para filosofar. Quando se refere a essas atividades especificamente humanas, Nietzsche as descreve empregando preferencialmente termos como ―plasmação‖, ―idealização‖, ―metáfora‖ e ―metaforicamente‖, ―arte‖ e ―artisticamente‖. Ora, isso transferiria a questão da concepção positiva de metafísica nietzscheana para o âmbito da arte; com efeito, é nessa linha que tento responder à questão, mais ao final deste capítulo.

Retendo, portanto, essas relações observadas entre metafísica, arte e linguagem, começarei agora a expor e a evidenciar minha leitura da idéia de vontade de poder inerente ao pensamento propriamente nietzscheano.

Parto de uma exposição sucinta, embora assaz direta e esclarecedora, bem ao estilo do livro no qual Nietzsche a publicou: a que se encontra no parágrafo 36 de ―Para além do bem e do mal‖. Parece-me ser a exposição mais completa e detalhada que se pode encontrar a respeito dessa idéia central de Nietzsche, dentre aqueles textos de mais comum acesso, quer dizer, dentre os textos que ele mesmo fez publicar. Trata-se de um texto, aliás, não utilizado por Martin Heidegger, o que constitui tanto um indício positivo de sua relevância ímpar para a pesquisa propriamente nietzscheana, quanto (mais) um sintoma da parcialidade daquele. Esse texto excepcional apresenta os traços mais essenciais da estrutura da idéia vontade de poder, os quais, uma vez destacados e reconstituídos, formam uma boa base para uma leitura mais completa sobre a referida idéia, e daquilo que ela coloca em movimento.

Tal texto começa, pois, com um convite de Nietzsche ao leitor, no sentido de que este participe do ponto de vista inicial que o leva a conceber a idéia da vontade de poder:

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―Supondo que nada seja ‗dado‘ como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer ou subir a nenhuma outra ‗realidade‘, exceto à realidade de nossos impulsos ―pois pensar é apenas a relação desses impulsos entre si―‖ [JGB/ABM 3624 (p. 42-43 tr. br.)].

Isso nada mais faz que repetir, para esta seqüência argumentativa, um dos pontos de partida do pensamento maduro de Nietzsche, talvez mesmo seu elemento primeiro: o princípio de que não há transcendência ao corpo, de que não há outra realidade senão a realidade de ser corpo. Ou ainda, sob outra perspectiva: ―O puro espírito é a pura mentira‖ [AC/AC 825

(p. 15 tr. br. - tr. alt.)]. O corpo deve ser o fio condutor para o inquérito filosófico porque constitui a única realidade verificável; uma ―outra‖ realidade, afirma Nietzsche repetidas vezes, é completamente indemonstrável; o corpo, por outro lado, é inescapável: sem corpo não há pensamento. Vontade de poder é um pathos: paixão, afeto, afecção no sentido mais geral e fundamental. Walter Kaufmann o evidencia, documentando como essa idéia pode ter-se derivado das indagações psicológicas de Nietzsche, ao longo de seus textos anteriores ao Zaratustra: primeiro, chegando à oposição medo/poder; e, por fim, prosseguindo um tanto dialeticamente, até propor uma monologia, na hipótese da vontade de poder [v. KAUFMANN, 1974, p. 178-207].

Ainda a esse propósito, Michel Haar evidencia que a principal lacuna do texto de Heidegger sobre a fisiologia da arte nietzscheana reside exatamente na tentativa de enxertar, no pensamento de Nietzsche, uma fisiologia fantasmagórica, de fundo idealista e ascético, pois que visa desprezar a realidade corporal enquanto substrato inescapável da (e na) reflexão nietzscheana [v. HAAR, 1988]. Aliás, isso pode ser afirmado em relação a todo o ―Nietzsche de Heidegger‖, encerrando de vez as considerações sobre ele. O Nietzsche de Heidegger é algo que não teria mesmo como ―dar certo‖, ou seja, que não poderia jamais refletir o real pensamento de Nietzsche, uma vez que este parte do corpo e o enfatiza constantemente, ao passo que Heidegger o despreza, pois quer ir sempre em direção ao ―Ser‖, que é a negação absoluta da corporeidade.

O próprio pensar é definido, no § 36 de ―Para além de bem e mal‖, como uma relação estabelecida entre os impulsos (Triebe) corporais. (Considero, para todos os efeitos relativos à presente pesquisa, que ―impulso‖ e ―pulsão‖ são sinônimos entre si, e equivalentes a

Trieb; e que ―instinto‖ vem a ser nada mais que um impulso inconsciente e freqüente, i.e. que

ocorre ou que se verifica com freqüência). Em que isso implica? Implica na dissolução das

24 ―Gesetzt, dass nichts Anderes als real 'gegeben' ist als unsre Welt der Begierden und Leidenschaften, dass wir zu keiner anderen 'Realität' hinab oder hinauf können als gerade zur Realität unsrer Triebe —denn Denken ist nur ein Verhalten dieser Triebe zu einander—‖ [KGW VI.2, p. 50/KSA 5, p. 54].

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fronteiras entre mente e corpo; na implosão da noção de faculdades estanques, como a da ―faculdade da razão‖, ―faculdade de julgar‖, ou como a de uma ―necessidade metafísica‖ que levasse a filosofar. Não há um ―sujeito‖ ou uma ―substância‖ pensante, há pensamentos, ou melhor: há certos impulsos que se traduzem como pensamentos, quer dizer, impulsos que são apreendidos pela consciência racional enquanto formulações lógico-lingüísticas. Ora, essa dita ―consciência‖ não pode, por sua vez, tampouco ser outra coisa senão uma configuração de impulsos também, impulsos que arrogam a si mesmos (por períodos sempre passageiros) o comando dos outros, e que na medida em que exercem esse comando se identificam com a totalidade dos impulsos, e mesmo respondem por essa suposta ―unidade‖ assim forjada.

A conseqüência mais importante disso é que, segundo Nietzsche, o conhecimento é criado, no sentido mais radical que se possa conceber. Para se chegar a esta conclusão, basta levar a sério a proposição: o mundo é vontade de poder, e nada além disso. Não há nada ―em si‖ do qual se possa falar, ou que pudesse ser conhecido. ―Digo: o intelecto é uma força criadora. Para que ele possa deduzir e fundamentar, precisa antes criar o conceito do incondicionado. Ele acredita naquilo que cria como verdadeiro: eis o fenômeno fundamental‖ [N.F. Sommer-Herbst 1884, 26[217]26 (NIETZSCHE, 2005, p. 187)]. Nossas percepções e nossos pensamentos formam o mundo, no sentido de que eles são o mundo, de que eles são a única realidade, tout court. Não há possibilidade para dicotomias, para distinguir entre fenômeno e coisa-em-si (ou sujeito e objeto, ou sujeito e ação): Nietzsche retira o espaço mesmo onde essas tradicionais divisões tinham lugar. Aquele-que-quer e o aquilo-que-é- querido são uma única e mesma coisa: um ato-de-querer, um querer efetivo, uma vontade de poder. Conhecer é vontade de poder, criar é vontade de poder; todo conhecimento é criação da vontade de poder, e nada além disso.

Consonantemente à caracterização da vontade de poder por Müller-Lauter, já exposta acima, os impulsos não são concebidos atomicamente, ou seja, como algo que exista em si, como um ente acabado: eles são força efetiva, poder, sua ação é toda sua existência. Toda ação é relativa, e toda existência também o é:

―que saberia eu dizer de qualquer ser por essência que não fosse, que não sejam os atributos da sua aparência! Certamente não uma máscara morta que se pode pôr e tirar a um X desconhecido! Aparência é para mim a própria vida e a própria ação, a

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―Ich sage: der Intellekt ist eine schaffende Kraft: damit er schliessen, begründen könne, muss er erst den Begriff

des Unbedingten geschaffen haben ―er glaubt an das, was er schafft, als wahr: dies das Grundphänomen‖ [KGW

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vida que na sua auto-zombaria chega a me fazer sentir que aqui há aparência e fogo- fátuo e dança de espíritos, e nada mais‖ [FW/GC 5427

(p. 92 tr. br. - tr. alt.)].

Percebe-se assim que não faz sentido, para Nietzsche, resguardar a diferença entre aparência e realidade, ou mesmo entre verdade e mentira. Ele separa-se definitivamente da necessidade imposta pela teoria correspondencial do conhecimento e da verdade (adequatio intellectu et rei). Não há qualquer realidade externa aos impulsos, fosse ela mais ou menos acessível ou inacessível. Conhecemos apenas aquilo que criamos, conforme o criamos, e somente porque o criamos. Conhecer é relação entre impulsos, conhecimento é vontade de poder. A verdade deixa de (supostamente) se constituir por uma relação de exterioridade ―ou seja, deixa de ser uma adequação do pensamento ao mundo―, e passa a ser ―ser vista como nome para um produzir (Hervonbringen) nos processos de interpretação‖ [ABEL, 200228, p. 44]. Não mais se

sustenta a dicotomia mundo/pensamento; tudo que há são relações entre impulsos. Se isso é tudo que há de cognoscível, prossegue a exposição nietzscheana no § 36

―não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou ‗material‘)? Quero dizer, não como uma ilusão, uma ‗aparência‘, uma ‗representação‘ (no sentido de Berkeley e Schopenhauer), mas como da mesma ordem de realidade que têm nossos afetos, ―como uma forma mais primitiva do mundo dos afetos, na qual ainda esteja encerrado em poderosa unidade tudo o que então se ramifica e se configura no processo orgânico (e também se atenua e se debilita, como é razoável), como uma espécie de vida instintiva, em que todas as funções orgânicas, como auto-regulação, assimilação, nutrição, eliminação, metabolismo, se acham sinteticamente ligadas umas às outras ―como uma forma prévia da vida? ―Afinal, não é apenas lícito fazer essa tentativa: é algo imposto pela consciência do método. Não admitir várias espécies de causalidade enquanto não se leva ao limite extremo (―até ao absurdo, diria mesmo) a tentativa de se contentar

27 ―was weiss ich von irgend welchem Wesen auszusagen, als eben nur die Prädicate seines Scheines! Wahrlich nicht eine todte Maske, die man einem unbekannten X aufsetzen und auch wohl abnehmen könnte! Schein ist für mich das Wirkende und Lebende selber, das soweit in seiner Selbstverspottung geht, mich fühlen zu lassen, dass hier Schein und Irrlicht und Geistertanz und nichts Mehr ist‖ [KGW V.2, p. 91/KSA 3, p. 417].

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Este mesmo comentador oferece uma boa sugestão para hierarquização das interpretações segundo o critério nietzscheano:

―O grau de verdade de uma interpretação depende: (i) da relevância da interpretação para o indivíduo; (ii) do

enraizamento e da firmeza da interpretação dentro do corpus de interpretações; (iii) da capacidade de coalizão

com outras interpretações; (iv) da aptidão para poder ser adotada pela malha das interpretações já existentes; (v) da capacidade de organizar nossa experiência de forma mais abrangente e simples do que até hoje; (vi) da força de poder contribuir para a intensificação de experiência; (vii) da liberação de perspectivas diferentes e também convergentes e (viii) do transcender horizontes estreitos e da capacidade de abrir novos horizontes da interpretação.

Os primeiros cinco aspectos podem servir, ao mesmo tempo, para reformular a concepção de verdade de acordo com o esquema antigo (isto é, a verdade no sentido do fixar, do ‗prender‘). Mas os três últimos aspectos citados dizem respeito mais ao novo sentido do discurso da ‗verdade da interpretação‘. Esse novo sentido é referente ao não fixável fluxo das interpretações, ao constante fluir das coisas do mundo e da vida.‖ [ABEL, 2002, p. 50-51]

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com uma só: eis uma moral do método, à qual ninguém se pode subtrair hoje; ―ela se dá ‗por definição‘, como diria um matemático‖ [JGB/ABM 3629

(p. 42-43 tr. br.)].

Nesse trecho, Nietzsche indica como se lhe impôs a necessidade de estabelecer uma hipótese radical sobre, ou a partir de, sua base. Sendo os impulsos corpóreos o único tipo de dado de que se dispõe para formar a realidade, mais rigorosa e eficiente será, portanto, a teoria que se atenha apenas a eles para tudo explicar, dando conta inclusive dos eventos exteriores ao corpo pensante.

Não obstante, deve-se manter em vista que, no presente contexto, o ―corpo‖ mesmo é entendido apenas como um rótulo para denominar a pluralidade continuamente mutante de vontades de poder que constitui cada homem. O corpo é um fio condutor para as investigações, mas a fisiologia não chega a constituir explicação última: ela é uma porta de entrada melhor que as explicações metafísicas; porém, trata-se ainda de ―fatos que até agora não puderam ser formulados com exatidão‖ [GM/GM III 1630 (p. 118 tr. br.)]. Tem-se então que

devemos nos ater ao corpo enquanto realidade primeira, mas que este não se explica a si mesmo; daí a necessidade de uma teoria que parta do corpo, mas que, concomitantemente, baste-se para dar conta do todo.

A explicação física descreve os acontecimentos em termos de força mecânica. A filosofia moderna alemã coloca o acento na vontade. Em todo caso, o paradigma irredutível de explicação da realidade é sempre um só: o de causalidade. Segundo Nietzsche, quando se pensa em causalidade, pensa-se em um tipo específico de causalidade: a da vontade. Esse é o ponto fundamental, como sublinha o próprio autor:

―A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo ―e no fundo a crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma―, temos então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a única. ‗Vontade‘, é claro, só pode atuar sobre ‗vontade‘ ―e não sobre ‗matéria‘ (sobre ‗nervos‘, por

29 ―ist es nicht erlaubt, den Versuch zu machen und die Frage zu fragen, ob dies Gegeben nicht ausreicht, um aus Seines-Gleichen auch die sogenannte mechanistische (oder „materielle‟) Welt zu verstehen? Ich meine nicht als eine Täuschung, einen „Schein‟, eine „Vorstellung‟ (im Berkeley'schen und Schopenhauerischen Sinne), sondern als vom gleichen Realitäts-Range, welchen unser Affekt selbst hat, —als eine primitivere Form der Welt der Affekte, in der noch Alles in mächtiger Einheit beschlossen liegt, was sich dann im organischen Prozesse abzweigt und ausgestaltet (auch, wie billig, verzärtelt und abschwächt— ), als eine Art von Triebleben, in dem noch sämtliche organische Funktionen, mit Selbst-Regulirung, Assimilation, Ernährung, Ausscheidung, Stoffwechsel, synthetisch gebunden in einander sind, — als eine Vorform des Lebens? —Zuletzt ist es nicht nur erlaubt, diesen Versuch zu machen: es ist, vom Gewissen der Methode aus, geboten. Nicht mehrere Arten von Causalität annehmen, so lange nicht der Versuch, mit einer einzigen auszureichen, bis an seine äusserste Grenze getrieben ist ( —bis zum Unsinn, mit Verlaub zu sagen): das ist eine Moral der Methode, der man sich heute nicht entziehen darf; — es folgt „aus ihrer Definition‟, wie ein Mathematiker sagen würde‖ [KGW VI.2, p. 50-51/KSA 5, p. 54-55].

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―von bisher nicht exakt zu formulirenden Thatbeständen‖ [KGW VI.2, p. 393/KSA 5, p. 375]. Cf. N.F. Herbst 1885-

Herbst 1987, 5[56]: ―Das Phänomen des Leibes ist das reichere, deutlichere, faßbarere Phänomen: methodisch voranzustellen, ohne etwas auszumachen über seine letzte Bedeutung‖ [KGW VIII.1, p. 209-210/KSA 12, p. 205-206].

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exemplo―): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem ‗efeitos‘, vontade atua sobre vontade ―e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade‖ [JGB/ABM 3631

(p. 43 tr. br.)].

A razão suficiente da apreensão humana da realidade é, admite Nietzsche, o princípio de causalidade. De onde advém, porém, a noção mesma de causalidade? Advém, como não poderia ser diferente, de uma vivência, de uma experiência corpórea, a saber: a da efetividade da vontade. As coisas são como são por que ―Deus assim o quer‖, diz o povo mais simples; as coisas são assim porque são vontade de poder, diz Nietzsche. A crença na vontade leva à hiperbólica crença na causalidade. Como esse processo se dá?

Uma resposta de Nietzsche encontra-se na Segunda Dissertação de ―Para a

No documento A arte na filosofia madura de Nietzsche (páginas 57-88)

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