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CAPÍTULO II: CENAS DA PESQUISA

2.3 Cenas do Bairro, cenas da escola

2.3.2 Segunda Cena: o cotidiano da escola – família italiana e as bergamotas de outono

Observo correria. O SOE constantemente atendendo ocorrências de alunos. Há sempre um número grande de crianças e adolescentes sentados no corredor, do lado de fora da sala, esperando pelo atendimento. Somam-se a eles, não com pouca frequência, um número considerável de pais, mães, responsáveis por esses alunos, que por algum motivo, foram chamados à escola. Alguns dos estudantes estão ali porque não se sentem bem: dor de barriga, febre, dor de cabeça, corpo com feridas, pé machucado. Outros porque foram retirados da sala de aula pelos professores: a maior parte, por problemas de comportamento, por se negarem a fazer determinada atividade ou por terem sido demasiadamente desrespeitosos. Ainda há aqueles eventuais que estão ali por terem sido flagrados em atitudes inadequadas na hora do recreio ou no pátio da escola por alguém da Direção. São três as professoras que atendem no SOE durante o dia: todas possuem 40 horas semanais para desempenhar essa função. Eventualmente outras pessoas da Equipe Diretiva auxiliam nessa tarefa, incluindo a Diretora e a Vice-Diretora da escola.

Na escola, há dois prédios com dois andares; dois prédios de um andar – um destinado à Educação Infantil, mas que é também ocupado por turmas de Primeiro Ano, e o outro em que se localizam a Cozinha, o Refeitório, a Sala de Artes e o Laboratório de Ciências –; duas quadras esportivas, sendo uma delas coberta. Além disso, há um prédio menor, também de um andar, onde ficam os banheiros, dois deles para uso dos professores. Há, no pátio, uma área coberta, que é passagem do prédio do refeitório ao dos banheiros e das quadras. Ali foi construído um palco de madeira, onde são feitas as apresentações artísticas nos diversos eventos que acontecem ao longo do ano. É também nesse local que os estudantes do segundo ao quinto ano fazem as filas no início de cada turno e no final do recreio.

No corredor onde estão os alunos aguardando pelo atendimento do SOE, encontram-se a biblioteca, a secretaria, a sala da direção, a da supervisão (e também da coordenação cultural e de projetos), o banheiro e a sala dos professores. É o primeiro prédio, localizado à direita do portão de entrada da escola. Tanto este prédio, quanto o outro de dois andares, tem sua entrada pela lateral que fica voltada para o pátio interno. As janelas das salas do lado direito estão direcionadas para a rua em que passam ônibus e carros, e as do lado esquerdo, para o pátio e para a passagem que conduz ao portão. Assim, as salas de aula são barulhentas em ambos os lados. Além disso, como o prédio está orientado para o leste, as salas do lado direito, que voltam-se para o norte, recebem luz solar durante a tarde, o que as deixa extremamente quentes no verão ou em dias de temperatura elevada. Outro aspecto importante, é que não se consegue

ter uma visão da rua de entrada da escola, uma vez que a única janela que existe no andar térreo pertence a um pequeno depósito da biblioteca.

Neste prédio, além dos setores mencionados, que funcionam no andar térreo, há salas de aula no andar superior, ocupadas por alunos de 6º a 9º anos, fazendo que no corredor circule uma grande quantidade de pessoas. O trânsito, então, é ininterrupto ao longo do dia, com alguns raros momentos de tranquilidade. Poucos são os professores que conseguem ler ou planejar na sala destinada para isso, pois o banco em que sentam os alunos que aguardam pelo atendimento do SOE fica bem na frente, do outro lado do corredor da porta da sala dos professores.

Também são poucos os que falam com volume de voz adequado: quase todos (incluindo alunos, professores e funcionários – além de alguns pais que invadem, às vezes, o corredor) falam muito alto, principalmente na sala dos professores: é uma escola barulhenta!

Alguns professores estão lá desde quando a escola foi provisoriamente inaugurada nos pavilhões de madeira. Isso os aproximou, fazendo com que criassem laços afetivos mais estreitos, que vão além do relacionamento profissional. A maioria dos demais professores que foram ingressando ao longo desses treze anos acabou por incorporar essa forma de relacionar- se: muitos dividem seus problemas, suas angústias e suas alegrias. Isso também se dá em virtude de grande parte do corpo docente ter um regime de trabalho de quarenta horas semanais: como o tempo que separa os turnos da manhã e da tarde é de apenas uma hora e dez minutos e a escola é distante dos locais onde moram, os professores permanecem ali durante o horário do almoço. A sala dos professores neste horário transforma-se em uma pequena sala de jantar.

Há duas geladeiras, dois fornos de micro-ondas, dois sofás, uma mesa grande, que fica no centro da sala, e uma pequena, que fica próximo à pia e que serve de suporte para as garrafas térmicas de café e água quente, açúcar e os potinhos que aguardam pacientemente para serem aquecidos na hora do almoço. Frequentemente há biscoitos e pães, cucas e bolos, que algumas pessoas levam para compartilhar com as demais. Também há várias cadeiras em torno da mesa central, e dois sofás, que servem de descanso após o almoço. É bastante frequente as pessoas dividirem seus alimentos: saladas, arroz, carne, sobras de churrasco de domingo, sopas, etc. Tudo isso sempre com muita conversa, gargalhadas e alguns choros. Parece ser uma família em que os seus membros brigam, se abraçam, choram e riem muito, e com a mesma facilidade que isso ocorre em uma casa italiana de um filme de Ettore Scola, de Martin Scorsese, ou de Francis Ford Coppola.

Alguns conseguem cochilar nesse horário, apesar do barulho. Outros refugiam-se na biblioteca e alguns outros, quando não chove ou não está muito frio, sentam-se nos bancos

espalhados pelo pátio da escola. Nos dias ensolarados de outono e de inverno, o número desses aumenta em virtude das bergamotas62.

Por volta de uma hora, a sala torna-se pequena; os professores que trabalham no turno da tarde juntam-se aos que, agora, despertam, arrumam seus cabelos, retocam os batons, pegam seus casacos, abrem os armários para pegar materiais, encontram seus cadernos de chamada nos escaninhos e, recentemente, batem o seu cartão-ponto63. Também é o horário em que o portão é aberto para que os alunos do turno da tarde dirijam-se ao refeitório para almoçarem antes da aula. Não há porteiro: dessa forma o trabalho é realizado pela Equipe Diretiva – que se reveza por meio de uma escala previamente organizada – além de funcionários da limpeza que auxiliam nessa tarefa.

O sinal bate: hora de começar mais um turno de trabalho. Os professores colidem com os adolescentes dos anos finais que entram no prédio, uma vez que caminham em sentidos contrários. Algumas vezes, já há alunos sentados no banco aguardando pelo SOE.

Nas paredes dos corredores há muitos cartazes: alguns elaborados por professores; outros pelos setores, como biblioteca e coordenações; e outros pelos alunos. Nas salas de aula do prédio B, onde ficam as turmas do segundo ao quinto ano, há muitos trabalhos expostos, murais coloridos, alfabetos, relógios, varais literários e cantinhos de leitura. Em algumas, há tapetes e almofadas. Já no prédio A, o espaço é organizado em salas ambiente: Sala de Matemática, de História, de Português, de Geografia, de Música, de Inglês, e uma sala que é ocupada, no turno da manhã pela turma de Progressão64 do Terceiro Ciclo. Dessa forma, nas trocas de blocos65, os alunos encaminham-se às respectivas salas, conforme seu horário, que está afixado no mural que se encontra no final da escada entre os dois andares. Diariamente os estudantes dirigem-se, ao subir para as salas, ao mural, uma vez que frequentemente os horários são alterados em virtude de alguns professores estarem ausentes por diversos problemas, que vão desde enfermidades consigo ou com filhos, até acidentes de carro.

62 A safra de tangerinas no Brasil se estende, normalmente, de março a setembro, com concentração nos meses de maio a agosto. (SEBRAE, S/d).

63 O ponto eletrônico, nome contemporâneo do “cartão-ponto”, começou a operar no dia 3 de agosto de 2015 em três escolas da Rede: duas de Educação Infantil e uma, a nossa, de Ensino Fundamental. Está em fase de experiência e logo será instalado nas demais escolas do município. Até o final de 2016, 24 escolas desta rede já haviam introduzido o ponto-eletrônico.

64 As Turmas de Progressão são compostas por alunos que apresentaram fracasso escolar ao longo de sua trajetória ou por alunos que apresentam distorção idade/ano-ciclo. Atualmente a escola possui apenas uma Turmas de Progressão; uma turma constituída por adolescentes do 3º Ciclo. Essas turmas de progressão só são compostas se há professores que optam por serem referências das mesmas. Apenas algumas escolas ainda mantêm esse tipo de turma, uma vez que há muitos que defendem a ideia de que os alunos não devem ser agrupados dessa forma. Nossa experiência nos leva a acreditar que os efeitos são muito positivos no sentido de promover espaço em que tais alunos percebem-se capazes de aprender, uma vez que o tempo, aqui, é tratado de uma outra forma. 65 Desde o início do ano de 2015, o tempo é dividido em blocos de duas horas e cinco minutos cada.

No prédio em que ficam as turmas de jardim e primeiro ano, as salas também são decoradas com alfabetos, cartazes de rotina, espelhos. São quatro salas ao todo, e cada uma delas tem banheiros adequados para a faixa etária dessas crianças e closets onde são guardados materiais pedagógicos, jogos e brinquedos.

Por toda a parte para qual se olha nessa escola, vê-se cor: os bancos de madeira espalhados pelo pátio; as colunas cilíndricas que sustentam os telhados; o chão do pátio e de alguns corredores; as paredes. É uma escola colorida!

Figura 2: EMEF Nossa Senhora do Carmo

Figura 3: EMEF Nossa Senhora do Carmo

II PARTE: COMPONDO A PESQUISA OU

JUNTANDO OS RETALHOS

Ela trabalhava nisso havia quinze anos, levando-a consigo por toda parte numa sacola informe de brocado, que continha toda uma coleção de pedaços de tecido colorido, com todas as formas possíveis. Ela jamais conseguia decidir-se a dispô-los segundo um modelo definitivo, por isso ela mudava-os, recolocava- os, refletia, mudava-os, recolocava-os novamente como pedaços de um jogo de paciência nunca terminado, sem recorrer às tesouras, alisando com seus dedos suaves.

(FAULKNER, 1929, apud DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 182).

Guardadas as proporções temporais, este momento assemelha-se muito ao da moça narrada por Faulkner: a procura da melhor disposição dos tecidos. Tecidos que emaranham-se na composição, mas que mantém sua especificidade. Desafio que se coloca na arte do patchwork e da escrita; um ofício que ao mesmo tempo em que se lhe é esperado por uma definição, não se quer deixar apreender pela necessidade objetiva das coisas.

Dessa forma, inicio a segunda parte deste trabalho: organizando os elementos que o constituem, com o propósito de articular as intenções da pesquisa com os resultados que dela surgiram. Esta segunda parte, então, procura juntar as peças expostas nos capítulos anteriores, buscando compreender de que maneira a maquinaria escolar se constitui. Para isso, faço um mergulho na Modernidade, conforme dito anteriormente, a fim de que os temas centrais desta pesquisa – tempo, espaço e currículo – possam ser percebidos como construções históricas, e não elementos naturais. Compreender como se dão as mudanças na maneira de pensar na Modernidade é de fundamental importância para este estudo, uma vez que é nela que a escola, nos modelos como a conhecemos hoje, é concebida.

Posteriormente, apresento as inquietações que me levaram à pesquisa, procurando problematizar o tempo, o espaço e o currículo. Para isso, acrescento às minhas, as inquietações apontadas pelos professores da EMEF Nossa Senhora do Carmo, e procuro analisar como tais inquietações ou percepções afetam o currículo.

Assim, a Segunda parte está organizada em dois capítulos: Revisitando a História, ou “percorrendo os porões”, em que discuto a Modernidade; e Inquietações e os incômodos relógios derretidos de Dali, em que apresento as inquietações com o tempo, o espaço e o currículo contemporâneos, e realizo análise das percepções dos professores da instituição pesquisada sobre esses temas, propondo alguns questionamentos a respeito do currículo escolar.

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