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2. A FICÇÃO, TUDO PARA O LEITOR: TÉCNICA NARRATIVA DE

2.2 Aspectos estruturais da narrativa do Quixote (Iª parte)

2.2.2 Segunda saída de Dom Quixote

Leitores em foco nesta seção: o narrador-leitor da história do cavaleiro, o tradutor e a família do vendeiro Palomeque.

Se a hipótese levantada foi a de uma narração fechada nos primeiros seis capítulos do Quixote, com a intenção de aniquilar os livros de cavalaria como gênero literário, a narrativa, então, cursou outro rumo, que não a sua conclusão, mas sim a continuação dessa história. Após o escrutínio, Dom Quixote, mais esperto, procurou agir com mais cuidado e discrição. Apesar de estar por quinze dias no sossego de sua fazenda, entremeado por conversas com o cura, o cavaleiro demonstrava que a cavalaria andante ainda era o propósito de sua vida. Contudo, teve a reserva de não deixar escapar que pretendia ganhar novamente os campos de La Mancha:

En este tiempo solicitó don Quijote a un labrador vecino suyo, hombre de bien – (…) –, pero de muy poca sal en la mollera. (…), sancho Panza, que así se llamaba el labrador, dejó su mujer y hijos y asentó por escudero de su vecino. Dio Don Quijote orden en buscar dineros, y, vendiendo una cosa y empeñando otra y malbaratándolas todas, llegó un razonable cantidad. (…), avisó a su escudero Sancho del día y hora que pensaba ponerse en camino, para que él se acomodase (…).Todo lo cual hecho y cumplido, sin despedirse Panza de sus hijos y mujer, ni don Quijote de su ama y sobrina, una noche se salieron del lugar sin que persona los viese; en la cual caminaron tanto, que al amanecer se tuvieron por seguros de que no los hallarían aunque los buscasen.405

Nesta segunda saída, as aventuras de Dom Quixote vêm acompanhadas das intervenções do narrador da história com mais assiduidade, num jogo metalinguístico que discute a origem do texto, a questão da autoria, o foco narrativo e a tradução da história da língua árabe para a língua espanhola. E, ainda, continuam as conversas sobre os livros de cavalaria, entremeadas por abordagens acerca da narrativa e do teatro: questões de verossimilhança, imitação e ficção. Cervantes, então, se aprofunda na discussão do fazer literário, através da composição da narrativa e dos mecanismos impressos e trabalhados na história de Dom Quixote.

405 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. Madrid: Alfaguara, 2004, p.

141 A conhecida aventura do vizcaíno, que abrange os capítulos VIII e IX, surpreende o leitor quando a história é interrompida em plena ação, porque faltava a

parte escrita que daria continuidade à história: «(…); y que en aquel punto tan dudoso

paró y quedó destroncada tan sabrosa historia, sin que nos diese noticia su autor dónde se podría hallar lo que de ella faltaba» 406. Nesse ponto, ocorre uma estranheza em relação ao texto: o narrador, com o qual estávamos familiarizado desde o primeiro capítulo, revela que a história de Dom Quixote estaria misteriosamente inacabada ou inadvertidamente perdida. Há então um deslocamento em relação à autoria da história do cavaleiro, que simplesmente pensávamos ser de Miguel de Cervantes, que escolheu um narrador um tanto desmemoriado para a narração. Mas o jogo cervantino começa já na voz em primeira pessoa do narrador, que lamenta esta suspensão da história, que até então poderia ser definitiva:

Causome esto mucha pesadumbre, porque el gusto de haber leído tan poco se volvía en disgusto de pensar el mal camino que se ofrecía para hallar lo mucho que a mi parecer faltaba de tan sabroso cuento. Pareciome cosa imposible y fuera de toda buena costumbre que a tan buen caballero le hubiese faltado algún sabio que tomara a cargo el escribir sus nunca vistas hazañas, cosa que no faltó a ninguno de los caballeros andantes, (…). Y, así, no podía inclinarme a creer que tan gallarda historia hubiese quedado manca y estropeada, y echada la culpa a la malignidad del tiempo, devorador y consumidor de todas las cosas, el cual, o la tenía oculta, o consumida.(…). Por otra parte, me parecía que, pues entre sus libros se habían hallado tan modernos como Desengaño de celos y Ninfas y pastores de Henares, que también su historia debía de ser moderna y que, ya que no estuviese escrita, estaría en la memoria de la gente de su aldea y de las a ella circunvecinas. Esta imaginación me traía confuso y deseoso de saber real y verdaderamente toda la vida y milagros de nuestro famosoespañol don Quijote de la Mancha, luz y espejo de la caballería manchega…407

As marcas do narrador, então, o redimensionam como leitor da história de Dom Quixote. E foi pelo filtro de seu olhar que a história nos foi contada até aqui. Suas considerações sobre a suspensão da história merecem algum destaque: a ideia da impossibilidade da história não ter sido escrita, porque era costumeiro que sábios registrassem as façanhas dos cavaleiros andantes. E, ainda, sua busca verossímil das possibilidades de resgatar a história do cavaleiro pela via da memória da gente do povoado de La Mancha, uma vez que é uma história moderna, devido à referência de obras modernas citadas no interior do texto. Entretanto, as marcas do narrador que indicam a aceitação total de Alonso Quijano como o cavaleiro andante Dom Quixote de

406 Ibidem, p. 84. 407 Ibidem, pp. 84-85.

142 La Mancha chamam a atenção e nos instigam uma questão: será ironia, ou Dom Quixote tem no narrador-leitor um seu aliado nas investidas cavalheirescas, através das refrações plurilíngues de vozes discursivas?

Mikhail Bakhtin, no ensaio “O discurso no romance”, quando aborda a questão da introdução e da organização do plurilinguísmo no romance, centra-se na particularidade da introdução de um narrador e autor suposto, através da estratificação

da linguagem. Isto significa que a prosa romanesca – principalmente o romance

humorístico que tem suas raízes no Quixote, enfatiza Bakhtin – se configura como o

“resultado do trabalho de todas estas forças estratificadoras,408 a língua não conserva mais formas e palavras neutras ‘que não pertencem a ninguém’, ela se torna como que

esparsa, penetrada de intenções, totalmente acentuada”.409

Para Bakhtin, o caráter plurilíngue do romance projeta-se sobre diferentes planos linguísticos, nos quais “as intenções do autor, ao sofrerem refração através de todos

esses planos, podem não encontrar eco em nenhum deles”.410 Mas, mesmo não sendo

regra absoluta que as intenções do autor coincidam exatamente com essas vozes discursivas que introduz em seu romance, sobre o autor, Bakhtin não coloca dúvida em momento algum de que suas intenções estão sempre presentes através da refração na estratificação da linguagem do narrador. Nessa discussão, ainda, o teórico russo deixa claro que outra importante introdução e organização do plurilinguismo no romance são as vozes das personagens que também apresentam refratariamente as intenções do autor suposto. Esclarecendo que o autor suposto está personificado na palavra escrita e que o narrador está concretizado na palavra oral, Bakhtin evidencia que este autor suposto se efetiva em diversos segmentos dessas duas vozes discursivas (a sua própria e do narrador), ao estabilizar-se tanto no ponto de vista do narrador, como também no seu discurso e na sua linguagem:

Por trás do relato do narrador, nós lemos um segundo, o relato do autor sobre o que narra o narrador, e, além disso, sobre o próprio narrador. Percebemos nitidamente cada momento da narração em dois planos: no plano do narrador,

408 Bakhtin entende que “as correntes literárias e outras, os meios, as revistas, certos jornais, e mesmo

certas obras importantes e certos indivíduos, todos eles são capazes, na medida de sua importância social, de estratificar a linguagem, sobrecarregando suas palavras e formas com suas próprias intenções e acentos típicos e, com isto, torná-las em certa medida alheias às outras correntes, partidos, obras e pessoas. Ver BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 2010. p. 97.

409 Ibidem, p. 100. 410 Ibidem, p. 116.

143 na sua perspectiva expressiva e semântico-objetal, no plano do autor que fala de modo refratado nessa narração e através dela.411

Observando desde o prisma bakhtiniano a questão do narrador-leitor da história de Dom Quixote, que aceita essa personagem prontamente como um cavaleiro andante, corroborando, então, a transformação de Alonso Quijano em sua nova identidade de Dom Quixote, que ocorre no primeiro capítulo, tal aceitação nos coloca diante da ironia cervantina, uma reconhecida característica do autor espanhol. Entendendo Cervantes

como suposto autor – cujas intenções estão refratadas pela introdução de todas as

demais vozes de seu romance – assim como teoriza Bakhtin, nós devemos ler a

confirmação da identidade do cavaleiro pelo narrador-leitor em dois planos de narração que estão justapostos. É nessa justaposição dos relatos do plano do narrador e do plano do autor (“que fala de modo refratado nessa narração e através dela”) que reside a ironia cervantina.

Nosso olhar lançado à ironia de Cervantes se desvencilha em parte das teorias sobre a ironia que a entende como uma dialética da negação: Sócrates, Kierkeggard, Horkeimer, Benjamim, Adorno. Muito embora, Adorno tenha feito, de certa forma, uma crítica à dialética negativa, iniciada por Kierkeggard, chegando a um conceito de ironia que nos é interessante, “a ironia se constrói com o não dito através do que é dito, mas o não dito não é somente o contrário do dito, é sempre o outro do dito...”.412 Linda Hutcheon observa que a ironia se configura, entre outras coisas, como “uma tentativa indireta de ‘trabalhar’ contradições ideológicas e não deixá-las se resolver em dogmas

(...) potencialmente opressivos”.413 Essa observação de Hutcheon, sinaliza Eiliko Flores,

aponta para uma sobra na concepção de ironia de Adorno, que enclausura o objeto ou o

sujeito em sua definição.414 Por isso, nosso exame da ironia cervantina se distancia do

conceito de ironia como dialética negativa, uma vez que a personagem de Dom Quixote implode e transcende, através de seus diversos desdobramentos, a possibilidade de clausura em si mesma.

411 Ibidem, pp. 118-119.

412 Ver FLORES, Eiliko L.P. “Alegoria e ironia: confrontos e divergências”. Revista Água Viva, vol.

1, n. 1, 2010, p. 8: “A censura à dialética negativa feita por Kierkeggard, com o devido distanciamento histórico que possuímos hoje sobre sua obra, pode receber as possíveis ressalvas

acima, baseadas na filosofia adorniana”. Disponível em:

<http://seer.bce.unb.br/index.php/aguaviva/article/view/3275>. Acesso em: 12 ago. 2013.

413 HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 56. 414 FLORES, Eiliko L.P. op.cit., p. 7.

144 O escritor, crítico e ensaísta peruano Alfredo Bryce Echenique, no ensaio Del humor quevedesco a la ironía cervantina (2007),415 reúne inúmeras referências de diversas fontes sobre ironia, que abrangem desde citações de escritores, críticos e ensaístas até filósofos que idealizaram teorias sobre o tema. Algumas dessas referências oferecem as bases para a nossa compreensão da ironia cervantina, relacionada à postura do narrador-leitor. Uma referência citada por Echenique é Ítalo Calvino:

(…) en sus 6 propuestas para el próximo milenio (1989), obra publicada póstumamente, y en la que el autor italiano se refiere a Cervantes, lo asocia con la palabra ironía, y afirma que ésta «es lo cómico que ha perdido la pesadez corpórea (…) y pone en duda el yo y toda la red de relaciones que lo constituyen».416

Este fragmento de Calvino, Echenique o relaciona com a definição de ironia de Luis Racionero, tomada de seu livro El Mediterráneo y los bárbaros del norte

(1985/1996): «(…); la ironía es la demostración a contrario, es llevar una cosa a su

extremo opuesto para que se convierta en su contrario y de esta súbita fusión de opuestos obtener una distanciación nos hace sabios».417 Essas duas referências trazidas por Bryce Echenique têm duas implicações que nos interessam: a primeira em Calvino, quando ele pontua a dúvida (ou vacilo se preferirmos) instaurada no eu e, portanto, em todas as suas relações; a segunda em Racionero (mesmo que aborde a ironia a partir de uma perspectiva negativa do “extremo oposto da coisa”), quando ele define a ironia como “demonstração ao contrário”, resultando na “súbita fusão desses opostos”.

Tanto Racionero como Calvino ultrapassam o tropo negativo da ironia quando mencionam, um, o vacilo do eu; o outro, a fusão dos opostos. Não é mais a coisa e o seu contrário, e sim a dissolução da coisa e seu contrário, resultando em algo impossível de definir, por isso o eu e tudo relacionado a esse eu vacila, é posto em dúvida. Neste caso, é pertinente registrar o frágil paradoxo na definição de ironia de Racionero, pois se entendermos a ironia como “levar a coisa a seu extremo oposto para que se converta em seu contrário”, não resultaria absolutamente na fusão de contrários: a coisa não seria mais a coisa, seria o seu extremo oposto, portanto, não haveria fusão. Desse modo,

415 ECHENIQUE, Alfredo Bryce. Del humor quevedesco a la ironía cervantina. 2007. Disponível em:

<http://cvc.cervantes.es/literatura/conferencias_spinoza/bryce.htm>. Acesso em: 09 ago. 2013. O ensaio de Alfredo Bryce Echenique é o resultado de uma conferência ministrada no Instituto Cervantes, e encontra-se publicado na página da web indicada.

416 ECHENIQUE, Alfredo Bryce, op.cit., p. 10. 417 Loc.cit.

145 escolhemos momentos pontuais dessas duas referências trazidas por Echenique para mostrar que seria tibiamente porosa a visão de que a ironia cervantina implica simplesmente apontar para algo contrário do que está expondo ou propondo.

A partir dessas referências e de outras tantas sobre a ironia de Cervantes, Bryce Echenique imprime sua visão de como a personagem cervantina pode ser compreendida pelo leitor: «Así ocurre que debiendo tener a Don Quijote por el ser más ridículo y a menudo loco de atar, admiramos en cambio con infinita ternura sus ridiculeces, siempre ennoblecidas por un ideal tan alto y tan puro»418. Compreender a perspectiva que o leitor lança sobre a personagem de Dom Quixote é a nossa finalidade nessa abordagem da ironia cervantina, até porque, enfatizamos, uma vez mais, o narrador da história do cavaleiro, do capítulo I ao capítulo VIII, que é sobretudo leitor dessa história. É como leitor, antes mesmo de narrador, que queremos analisar sua aceitação total da identidade de Dom Quixote como cavaleiro andante, para isso, tomemos a passagem de sua mais intimista ou subjetiva declaração como leitor da história:

Esta imaginación me traía confuso y deseoso de saber real y verdaderamente toda la vida y milagros de nuestro famoso español don Quijote de la Mancha, luz y espejo de la caballería manchega, y el primero que en nuestra edad y en estos tan calamitosos tiempos se puso al trabajo y ejercicio de las andantes armas, y al desfacer agravios, socorrer viudas, amparar doncellas, de aquellas queandaban con sus azotes y palafrenes y con toda su virginidad a cuestas, de monte en monte y de valle en valle: que si no era que algún follón o algún villano de hacha y capellina o algún descomunal gigante las forzaba, doncella hubo en los pasados tiempos que, al cabo de ochenta años, que en todos ellos no durmió un día debajo de tejado, y se fue tan entera a la sepultura como la madre que la había parido. Digo, pues, que por estos y otros muchos respetos es digno nuestro gallardo Quijote de continuas y memorables alabanzas…419

As palavras do narrador-leitor evidenciam as marcas de sua leitura, experienciadas na vivência das primeiras aventuras do herói, sendo este a personagem mais proeminente e significativa nesses primeiros oito capítulos. Então, é muito mais plausível que o leitor se identifique totalmente com o discurso do herói. Neste caso, essa identificação implica a junção do discurso do herói com o discurso do narrador, por este ser um leitor dessa história. Nota-se que o narrador-leitor fala ‘quase’ exatamente o mesmo que Echenique, deixando de lado a ideia de ridículo, pois que o narrador-leitor vê nas investidas de Dom Quixote um ideal alto e nobre de ser cavaleiro andante nesses «tan calamitosos tiempos». E essa nobreza reside justamente no fato de esse homem se

418 ECHENIQUE, Alfredo Bryce, op.cit., p. 10.

419 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. Madrid: Alfaguara, 2004, p.

146 propor a um serviço que ninguém mais se presta a fazer: salvar donzelas, por exemplo, que «al cabo de ochenta años, que en todos ellos no durmió un día debajo de tejado, y se fue tan entera a la sepultura como la madre que la había parido»420. Nos primeiros capítulos, apesar de já aparecem outras vozes discursivas que se opõem ao discurso de Dom Quixote - a sobrinha, a ama, o barbeiro e o cura, principalmente - essas vozes opositivas não causam o mesmo efeito no leitor por não exercerem uma ação contrária de forma contundente e eficaz às ações quixotescas.

O discurso do cura é emblemático nesse sentido, pois que é contra os livros de cavalaria, devido ao efeito nocivo que causam em seus leitores. Mas mesmo esse discurso deixa lacunas que apontam para a supremacia de se deixar levar pelos prazeres da ficção, pois, como já dito, ele salva do fogo a matriz do gênero: Amadís de Gaula. Os discursos e as ações opositivas à Dom Quixote são tão ineficazes que ele começa, muito discretamente, a planejar sua segunda saída, como mencionamos antes. O cervantista Luiz Fernando Franklin de Matos destacou essa questão no Quixote, pontuando as grandes contradições que permeiam o romance. No ensaio “D. Quixote, una escritura

desatada”,421 Franklin de Matos insinua a simpatia que Cervantes nutria pelos livros de

cavalaria e questiona qual realmente o estatuto que o autor espanhol reservou para estes livros no seu romance: “O modelo a recusar ou a preservar?”.

Prenunciando que “com Cervantes nada é muito seguro”, o cervantista brasileiro justifica seu prognóstico com os discursos hesitantes dos dois eclesiásticos, tal como se apresentam na primeira parte do romance: o cura que salva o Amadís de Gaula do fogo (no capítulo VI) e o Clérigo de Toledo, no capítulo XLVII, que teoriza efusivamente contra os livros de cavalaria, mas acaba seu discurso com uma ressalva laudatória à escritura desatada do gênero. Essas condutas contraditórias, Franklin de Matos avalia que:

De fato, se há algo de comum no desfecho destes sermões arrebatados e proselitistas, nós podemos afirmar que o que sempre se repete é a sua

inutilidade. D. Quixote não se deixa convencer por eles. O resultado a que

conduzem, se é que isto é possível, só faz exacerbar a loucura do herói. Soluções mais extrematas, talvez? Incluir no Index, um a um, os textos de

420

Loc.cit.

421 MATOS, L. F. Franklin. D. Quixote, una escritura desatada. [s.l.:s.n.,s.d.]. In: O leitor quixotesco: o

leitor de Dom Quixote. 1979. Tese (Doutorado) - USP, São Paulo. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D08_D_Quixote.pdf>. Acesso em: 27 mar. 2013.

147 cavalaria? Recorrer às fogueiras? Também não basta: o Cura recorreu a elas e nem por isso conseguiu prejudicar as andanças de D. Quixote.422

Ao evidenciar essas contradições que permeiam todo o Quixote, Franklin de Matos responde ao questionamento de qual estatuto cabia aos livros de cavalaria no romance de Cervantes, dizendo que o autor espanhol tinha conhecimento e respeito pelos preceitos aristotélicos, mas também tinha a consciência de que o Quixote iniciava uma “nova tradição narrativa, não estranha aos livros de cavalaria. Enquanto escrevia, burlava as regras com muita frequência e, fazendo teoria, procurava domar-se, tomando-

as como irrecusável ponto de referência”.423 Assim, não é totalmente seguro afirmar que

Cervantes intencionava aniquilar para sempre os livros de cavalaria, como também não se pode garantir que seu propósito era preservá-los ao longo dos séculos. Por isto, partindo desse veio que relativiza a intenção cervantina, endossamos a perspectiva de Franklin de Matos, que entende a ironia em Cervantes comprometida no humor ambivalente e carnavalesco da Idade Média, tal como Bakhtin a brande na história do riso:

Basta reter a dívida de Rabelais, Cervantes ou mesmo Shakespeare como o humor carnavalesco da Idade Média. Quando se refere a este humor, Bakthin acentua não apenas o caráter popular e universal que possui, mas também sua natureza essencialmente ambivalente: “alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlão e sarcástico, nega e afirma, amortalha e recussita de uma só vez” (7).424 O que está implicado neste riso não é apenas a negação

pura e absoluta, mas a sabedoria exultante da relatividade: o carnaval festeja o processo da mudança425.

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