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Segundo Excurso sobre encontros e desencontros metodológicos

Nos dois capítulos anteriores me dediquei à exposição de reflexões acerca do pensamento de um grupo de autores que discutiram a teoria econômica de Marx. Como observei no Primeiro Excurso, o enfoque de tais autores se limita à análise dos textos de Marx e de alguns marxistas, o que nos permite classificá-los como estudos de teoria marxista. Ao mesmo tempo, um dos autores considerados – David Harvey – apesar de também fazer uma discussão teórica dos textos de Marx é caracterizado por uma tentativa de ir além de tal discussão. Esta observação não se pretende uma crítica àqueles estudos teóricos, e sim uma constatação de que são dois enfoques diferentes. O enfoque da análise teórica do pensamento de Marx é indispensável para que se entenda com precisão do que trata este autor, procurando assim evitar as interpretações vulgares que tanto marcaram a tradição marxista. Desta forma, este tipo de estudo jamais pode ser preterido em nome de análises digamos mais empíricas ou mais históricas da realidade capitalista. Por outro lado – a não ser que se tenha como objetivo estudar teoricamente a obra de Marx (a exemplo do que fazem Fausto, Grespan, Belluzzo e muitos outros) – em estudos que pretendam se apoiar nesta obra para decifrar a realidade do capitalismo de nossos dias, sem dúvida é preciso superar Marx.

Nos próximos capítulos muitos dos autores considerados adotam de diferentes maneiras a perspectiva de superação do pensamento de Marx o que acaba dando, desta forma, o tom do que seguirá. Mas antes de adentrarmos nesta última parte do trabalho é importante que se entenda com mais precisão do que se trata esta superação. Sobre isso, um curto apontamento já foi feito no Primeiro Excurso, quando afirmei que a superação do pensamento de Marx deveria ser como a Aufhebung hegeliana, isto é, uma superação que conserva o que foi superado. Mas vejamos mais concretamente o que significa isso no contexto do presente trabalho.

A obra econômica de Marx é marcada por uma escolha fundamental, qual seja, concentrar-se na lógica do capital como se ela fosse a mediação universal nas relações de poder que possibilitam a alguns controlarem o trabalho de outros. Isso, claro, para as sociedades nas quais dominem as relações de produção capitalistas. Assim sendo, não fazem parte das preocupações de Marx possíveis usos de métodos não econômicos para a efetivação do poder de classe. No caso de O Capital a grande (e importante) exceção é o capítulo sobre a acumulação primitiva, mas isso é claro porque, a priori, esta forma de

106 capitalistas passam a ser dominantes numa dada sociedade. Depois desta transição a lógica do capital se destaca como o principal nexo das relações de poder e, por isso, deve ser analisada em sua especificidade1.

É preciso destacar, no entanto, que à época de Marx a universalidade da lógica do capital como mediação para as relações de dominação não parecia ser uma realidade. Em todo o mundo (mesmo na Europa) poder-se-ia encontrar formas não puramente econômicas de extração do excedente nas relações de trabalho, fora o fato de que as principais potências econômicas do mundo utilizavam-se de métodos não econômicos para garantir o escoamento de suas mercadorias mundo afora. Há, portanto, um desencontro – ao menos aparente – entre a escolha de Marx em concentrar-se na lógica do capital como a forma universal de dominação e a realidade de sua época. Sobre tal desencontro podemos levantar duas hipóteses.

A primeira seria a de que, mesmo consciente da não universalidade da dominância do capital naquele momento, Marx está considerando a universalização das relações capitalistas como uma tendência a se realizar num crescente necessário. Cada vez mais a lógica do capital dominaria as relações sociais, substituindo formas não capitalistas de mediação até o ponto que toda a estrutura social fosse determinada pelo capital. Assim sendo, a discussão feita na obra econômica de Marx seria suficiente para explicar todos os nexos das sociedades capitalistas. A meu ver só duas posturas em relação ao pensamento de Marx levam a sério esta hipótese. Uma delas é aquela que procura rejeitar este pensamento tachando-o de teleológico e determinista. Teleológico por acreditar numa tendência histórica crescente e irreversível. Determinista por acreditar que a lógica do capital poderia determinar todos os outros âmbitos da socialização. A outra postura é aquela que como chama nossa atenção Holloway (2003), fetichiza o pensamento de Marx não permitindo qualquer relativização ou para usar o termo adequado, nenhuma dialetização deste pensamento.

1 Para Harvey (2004) e Grespan (1998) os pressupostos de Marx são bastante próximos dos da economia

política clássica, nas palavras de Harvey, tais pressupostos são: “mercados competitivos de livre funcionamento com arranjos institucionais de propriedade privada, individualismo jurídico, liberdade de contrato e estruturas legais e governamentais apropriadas, garantidas por um Estado ‘facilitador’ que também garante a integridade da moeda como estoque de valor e meio de circulação. O papel do capitalista como produtor e comerciante de mercadorias já está bem estabelecido, e a força de trabalho tornou-se uma mercadoria trocada pelo seu valor apropriado. A acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’, e seu processo agora tem a forma de reprodução expandida (embora mediante a exploração do trabalho vivo na produção) em condições de ‘paz, prosperidade e igualdade’. (2004, página 120).

A segunda hipótese é a de que Marx considera de forma isolada a lógica do capital para apreender sua especificidade. Isso não significa que outras lógicas de dominação não existissem naquela época ou que não existam atualmente, mas apenas que estas outras lógicas estão em relação direta com a mediação do capital. Assim sendo para começar é preciso se evitar qualquer forma de teleologia. Alguns podem questionar afirmando que em textos do próprio Marx – como no Manifesto, por exemplo – a teleologia aparece claramente. A resposta a tal questionamento seria justamente a proposta de se superar o pensamento de Marx conservando aquilo que muitos chamam de seu núcleo dialético e não fetichizá-lo como se fosse um texto sagrado ao qual teríamos que nos remeter sempre que quiséssemos adquirir legitimidade. Mas para retornar à questão principal, evitar qualquer forma de teleologia significa, principalmente, compreender que não há uma tendência de eliminação de todas as formas não capitalistas de mediação e de dominação. Ao contrário, é importante perceber que a convivência de formas capitalistas com outras não capitalistas não é exclusividade da época de Marx, sendo esta também a realidade de nossos dias.

Como se sabe há esta perspectiva na tradição marxista desde os textos de Lênin e Rosa Luxemburgo, mas mesmo estes clássicos estão embebidos em pressupostos teleológicos ligados às perspectivas políticas de sua época. Neste sentido, a convivência de formas capitalistas e não capitalistas de dominação aparecia na maioria das vezes como algo passageiro ou próprio das margens do sistema capitalista2, como era o caso da escravidão no Brasil ou do Imperialismo europeu na África e na Ásia. Uma hora ou outra estas formas seriam eliminadas, o que, na visão de Rosa, levaria ao fim do próprio capitalismo. Mas o questionamento à teleologia tem de ir além disso e é neste sentido que devemos considerar, para começar, o pensamento de Henri Lefebvre.

A obra de Lefebvre é bastante diversificada envolvendo desde análises dos pensamentos de Marx, Hegel e Nietzsche até suas reflexões sobre o mundo moderno e a sociedade urbana, passando por uma volumosa obra sobre o Estado. Em muitos de seus textos é possível apreender uma idéia mais complexa sobre a temporalidade das formas sociais. Uma perspectiva que procura evitar qualquer teleologia. Como chama nossa atenção Martins (1996), isso fica claro no uso que Lefebvre faz do conceito trabalhado, mas não levado à últimas conseqüências, por Lênin, qual seja, o conceito de formação econômico-social. Este conceito em contraposição ao de modo de produção – o qual ganhou uma rigidez no pensamento marxista que não lhe era próprio no pensamento

108 marxiano – procura vislumbrar a convivência de diferentes temporalidades na sociedade capitalista, isto é, a convivência de relações sociais desigualmente datadas.

Em tempos de guerra (imperial) como este que estamos vivendo esta idéia é preciosa e a prova disto é a ascensão do debate sobre a permanência de formas de acumulação primitiva nas fases avançadas do capitalismo. Como veremos um grupo de autores (estrangeiros, como David Harvey, John Holloway, Daniel Bensaïd e Massimo De Angelis, ou nacionais como Paulo Arantes, Amélia Damiani e Francisco de Oliveira) vem se preocupando justamente com isso. O que é preciso destacar é que a idéia geral que perpassa estas reflexões é a de que o capitalismo, só se efetiva com a permanência de formas não capitalistas de acumulação. Esta perspectiva – que se procura seguir no presente trabalho – leva-nos a um grande ganho teórico para a superação do pensamento de Marx no que se refere ao entendimento da composição de diferentes lógicas na reprodução do poder de classe.

Porém, se por um lado, não se pode entender que os elementos não propriamente capitalistas de dominação tendem a ser eliminados pela crescente efetivação da lógica do capital, por outro não se pode trabalhar com a hipótese de que tais elementos sejam autônomos em relação a tal lógica. Se assim o fosse não se estaria promovendo uma superação do pensamento de Marx, mas, isto sim, sua refutação. E, com isso, os capítulos anteriores não teriam sentido nenhum neste trabalho. Ao invés disso, o sentido deles é, a meu ver, o mesmo que marca a opção de Marx por analisar em separado a lógica do capital, isto é, apreender a especificidade de uma determinação fundamental da sociedade moderna. Uma determinação que não é de modo algum autônoma, mas que, ao mesmo tempo, limita a autonomia das outras determinações ao se tornar a mediação para elas. Desta forma, as discussões que virão a seguir se apóiam, ao mesmo tempo em que procuram ultrapassar, as que precedem este excurso.