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Semiótica: estrutura, (poli)sistemas, signo e jogo

Se o dialogismo de Bakhtin forma nossa arquitetura filosófica, as teorias sistêmicas de Iury Lotman e Itamar Even-Zohar são as ferramentas de construção para nossa engenharia, necessárias para a construção de um diálogo entre obras de autores, contextos e linguagens tão diversas como as que trabalharemos. Para falar dos processos de adaptação fílmica teremos que discutir questões como sistemas culturais, interferência entre sistemas e

(re)inserção/tradução de novos elementos. Porém, gostaríamos de evocar, antes, o conceito de

bricoleur postulado por Lévi-Strauss em La Pensée Sauvage, aqui entrevisto na obra de

Jacques Derrida, A Escritura e a Diferença.

O bricoleur, diz Lévi-Strauss, é aquele que utiliza "os meios à mão", isto é, os instrumentos que encontra à sua disposição em torno de si, que já estão ali, que não foram especialmente concebidos para a operação na qual vão servir e à qual procuramos, por tentativas várias, adaptá-los, não hesitando em trocá-los cada vez que isso parece necessário, em experimentar vários ao mesmo tempo, mesmo se a sua origem e a sua forma são heterogêneas, etc. Há portanto uma crítica da linguagem sob a forma da bricolagem, e chegou-se mesmo a dizer que a bricolagem era a própria linguagem crítica, em especial a da crítica literária [...] (DERRIDA, 1995, p. 239).

É que, ainda que estejamos filosoficamente próximos de Bakhtin e Derrida, portanto, duvidemos da possibilidade de manter o pensamento e a fluidez da cultura definidos e percebidos por e através de um sistema anterior ao próprio advento dos elementos culturais, é preciso, de modo a enunciar cientificamente, utilizar as ferramentas que nos estão à disposição para tratar da matéria dada. Aqui, também, propomos um dialogismo entre forças que se opõe e tentam se excluir, bem como o próprio Lévi-Strauss propunha segundo Jacques Derrida, “Lévi-Strauss permanecerá sempre fiel a esta dupla intenção: conservar como instrumento aquilo cujo valor de verdade ele critica.” (DERRIDA, 1995, p. 238). É necessário, como nas palavras de Bakhtin citadas na seção anterior, reconhecer o parentesco de nosso discurso com o discurso que tentamos tornar objetos silenciosos (o discurso das 4 obras que propomos estudar). É necessário, segundo a leitura de Lévi-Strauss:

[...] conservar, denunciando aqui e ali os seus limites, todos esses velhos conceitos: como utensílios que ainda podem servir. Já não se lhes atribui nenhum valor de verdade, nem nenhuma significação rigorosa, estaríamos prontos a abandoná-los a qualquer momento se outros instrumentos parecessem mais cômodos. Enquanto esperamos, exploramos a sua eficácia relativa e utilizamo-los para destruir a antiga máquina a que pertencem e de que eles mesmos são peças. É assim que se critica a linguagem das ciências humanas. (DERRIDA, 1995, p. 238).

Vamos às ferramentas, então. Ora, este célebre texto de Derrida, A Estrutura, o Signo

e o Jogo no discurso das ciências humanas (DERRIDA, 1995, p. 229-249), se propõe a

criticar a ideia de que seja possível dar regras ao jogo deslizante do discurso e a retirar a máscara do cientificismo inflexível das ciências humanas. Derrida é muito veemente também em negar que haja um centro em torno do qual esses sistemas possam se organizar, exatamente porque qualquer sistema que se debruce sobre o âmbito da cultura é, naturalmente, dinâmico e está sempre em jogo. Então, como poderia haver algo dentro desse

sistema, a saber, seu centro, que fizesse parte do sistema e, ainda assim, estivesse fora do

jogo?

Iury Lotman (1996) e Itamar Even-Zohar (1990) nos apresentam exatamente tais sistemas. Suas teorias, por vezes coincidentes, dão conta da formação de sistemas culturais e da possibilidade de trânsito, tanto dentro do sistema, em relações intra-sistêmicas; como fora dele, em relações inter-sistêmicas, ambas orquestradas por um organismo gerenciador central, necessário ao sistema.

Lotman propõe seu conceito de semiosfera a partir de e em analogia a conceitos, nascentes em sua época, advindos da biologia e da ecologia, particularmente o conceito de biosfera introduzido por Vladimir Vernadsky. A semiosfera seria o continuum semiótico30 em que todas as operações comunicativas estão inseridas e apenas dentro do qual o sistema semiótico poderia se constituir, “Somente dentro de tal espaço se tornam possíveis a realização dos processos comunicativos e a produção de novas” (LOTMAN, 1996, p.11, tradução nossa). A semiosfera seria também, como a biosfera, uma estrutura absolutamente definida e delimitada espacialmente que determina tudo que ocorre dentro dela.

Pode-se considerar o universo semiótico como um conjunto de textos e linguagens distintos fechados entre si. Desse modo, todo o edifício terá o aspecto de ser constituído de tijolos distintos. Entretanto, o contrário parece mais frutífero: todo o espaço semiótico pode ser considerado como um mecanismo único (se não como um organismo). Assim, torna-se primário não um ou outro tijolo, mas o grande sistema denominado semiosfera. A semiosfera é o espaço semiótico fora do qual é impossível a própria existência da semiose. (LOTMAN, 1996, p. 12, tradução nossa).

Essa distinção entre o que há dentro da semiosfera versus o que está fora dela, ou seja, a existência do processo semiótico e a sua inexistência, torna necessário o advento de outro mecanismo da semiosfera, aquele capaz de semiotizar, ou seja, trazer para dentro do sistema, elementos estrangeiros. Mais uma vez analogamente à biologia, é no estudo da estrutura celular que Lotman encontrará o motivo para descrever o mecanismo da fronteira, “[...] a fronteira semiótica é a soma dos tradutores (filtros) bilíngues [...] através dos quais um texto se traduz a outra linguagem (ou linguagens) que se encontra fora de uma dada semiosfera” (LOTMAN, 1996, p. 12, tradução nossa). O que está fora da semiosfera são não-elementos e não-textos. De modo a que estes não-elementos adquiram realidade para a semiosfera são

30 Seja ele baseado numa cadeia de signos como propunha Peirce ou na distinção entre langue e parole como propunha Saussure; o importante é que em ambos os casos a cadeia se estruturava a partir de um elemento básico que servia de princípio norteador, e todo o sistema ou o continuum comunicacional era montado em relação a esse elemento básico. Esse é o fundamento da teoria semiótica. A semiose se estabelece pela relação entre os seus elementos, e os processos comunicacionais se dão em cadeias infinitas nas quais um elemento leva naturalmente a outro.

necessários os elementos fronteiriços, tradutórios, bilíngues. Esses elementos marginais que ocupam as bordas do sistema, tais quais populações que ocupem as linhas divisórias entre nações (e que normalmente falam as línguas nativas de ambos os lados da fronteira), funcionam como uma membrana plasmática que permitiria ou negaria a entrada de elementos estrangeiros, de acordo com os interesses e necessidades da célula (sistema), controlada por seu núcleo (elementos dominantes e mais regulares do sistema). A função elementar da fronteira seria “Limitar a penetração daquilo que é externo naquilo que é interno, filtrá-lo e elaborá-lo adaptativamente” (LOTMAN, 1996, p. 14), ou seja, realizar a semiotização do elemento e transformá-lo em informação existente para o sistema.

Obviamente, se esse sistema se relaciona com o exterior é porque existem elementos fora do sistema. São elementos que constituem outros sistemas. Porém, para Lotman, como estrangeiros, esses sistemas e seus elementos são nada para o primeiro sistema. A noção de sistema é, portanto, relativa; depende do ponto de vista e da subjetividade. Já havia aí, não obstante, o vislumbre da teoria inter-sistêmica que seria desenvolvida por Even-Zohar, mais tarde, a Teoria dos Polissistemas.

Outra função da fronteira seria, para Lotman, por consequência da primeira, a de iniciar os processos dinâmicos internos ao sistema. Os processos semióticos mais acelerados se originam nas áreas fronteiriças e fazem seu caminho até o centro a partir de lá, com o desígnio de desalojar os elementos das áreas centrais, onde o dinamismo é menor e os elementos são mais regulares. O sistema seria, à vista disso, dinâmico. Esse dinamismo variaria, sendo mais acelerado nas áreas periféricas e diminuindo de acordo com o avanço em direção ao centro sistêmico. “Nos setores periféricos, organizados de maneira menos rígida e com construções flexíveis, os processos dinâmicos encontram menos resistência e, consequentemente, se desenvolvem mais rapidamente”. (LOTMAN, 1996, p. 16-17, tradução nossa).

O sistema seria dinâmico e heterogêneo, não diferente de como Bakhtin enxergava os processos entre forças centrífugas e forças centrípetas. “O desenvolvimento dinâmico dos elementos da semiosfera (as infraestruturas) está orientado para a especificação deles e, por consequência, para o aumento da variedade interna da semiosfera” (LOTMAN, 1996, p. 20, tradução nossa). Lotman adicionará que outra propriedade do sistema da semiosfera é o diálogo. Reforça-se, também com a adição do caráter relacional da consciência individual, sua aproximação com Bakhtin, “Do intercâmbio entre os hemisférios cerebrais ao intercâmbio entre culturas. A consciência sem comunicação é impossível”, e a teoria do dialogismo, “A possibilidade de um diálogo pressupõe, por sua vez, tanto a heterogeneidade como a

homogeneidade dos elementos” (LOTMAN, 1996, p. 20, tradução nossa) e o paradoxo do comum/diverso (comentado na seção anterior).

Even-Zohar, por sua vez, se preocupará mais firmemente com a natureza das traduções entre sistemas, debruçando-se sobre o problema da literatura traduzida. O teórico israelense estabelece o que ficou conhecido como Teoria dos Polissistemas (1990), de forma a orientar o entendimento destes processos. Além disso, o crítico literário fará a proposição de que as obras traduzidas formam por si só um novo sistema dentro do sistema literário mais amplo para o qual elas foram semiotizadas. Estas obras traduzidas terão características similares, a saber: o modo como são escolhidas pelo sistema literário de chegada e o modo como elas adotam o repertório (normas, comportamentos e políticas) deste sistema em detrimento ao seu sistema de partida; o que reflete o modo como os dois co-sistemas se relacionam um com o outro. (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 46, tradução nossa)

Even-Zohar introduzirá o conceito de interferência, que pode ser definido como “Uma relação (relacionamento) entre duas literaturas, através da qual uma certa literatura A (literatura de partida) pode se tornar fonte de empréstimos diretos ou indiretos para outra literatura B (literatura de chegada)”. (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 54, tradução nossa). A interferência pode ser unilateral ou bilateral, dependendo da relação existente entre os dois sistemas. Além disso, ele teoriza que uma situação onde a literatura traduzida terá papel fundamental pode vir a ocorrer em três casos, como manifestação da mesma lei.

(a) quando um polissistema ainda não se tornou cristalizado, isso é, quando uma literatura é “jovem”, no processo de se estabelecer; (b) quando uma literatura é “periférica” (dentro de um grupo maior de literaturas correlacionais) ou “fraca”, uma das coisas ou ambas são possíveis; e (c) quando há momentos de revolução, crises ou vácuos literários dentro da literatura (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 47, tradução nossa).

Como vimos na seção Imagem e Verbo. Poética e Narrativa do presente trabalho, algo parecido com o cenário (a) ocorre com os sistemas cinematográficos e literários na primeira metade do século XX. Claro, enquanto Lotman trata de sistemas culturais não específicos à linguagem, Even-Zohar teorizou a abordagem polissistêmica para tratar de obras literárias traduzidas a diferentes idiomas. Vale ressaltar que quando a teoria foi lançada o mundo não se encontrava no estado atual de globalização e fácil acesso à informação permitido pela internet. As fronteiras geográficas entre países e comunidades se faziam muito mais relevantes para definir o contato entre sistemas culturais. Desde então, entretanto, a teoria tem sido utilizada para outros enfoques não antecipados por seu postulante. Ajustes devem ser e vem sendo feitos, de modo a permitir que essa mudança de enfoque bem ocorra. Os já

referenciados trabalhos de Hermans (2012) e Catrysse (1992) são exemplos de tentativas de estabelecer uma metodologia da abordagem polissistêmica para lidar com adaptações fílmicas de obras literárias31.

Even-Zohar também postula certas diferenças que definem as relações entre dois sistemas quaisquer ou grupos de sistemas (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 55). Eles podem ser, um em relação ao outro, independentes (estado de maturidade do sistema) ou dependentes (estado de desenvolvimento); dominantes ou não-dominantes; hegemônicos ou não-hegemônicos; centrais ou periféricos32.

E, finalmente, o teórico israelense define os princípios da interferência (EVEN- ZOHAR, 1990, p. 59), ou seja, das relações intersemióticas entre sistemas.

Os princípios gerais da interferência33 são: (1) as literaturas nunca estão em um estado de não interferência; (2) a interferência é, na maioria dos casos, unilateral; (3) interferência literária não está ligada necessariamente com outras interferências em diferentes níveis da comunidade.

As condições gerais para emergência e ocorrência de interferências são: (1) contatos gerarão, mais cedo ou mais tarde, interferência, caso não haja condições de resistência; (2) a literatura de partida é selecionada por prestígio; (3) a literatura de partida é selecionada por dominância; (4) a interferência ocorre quando um sistema tem necessidade de itens não disponíveis em si.

As leis gerais de processos e procedimentos da interferência são: (1) contatos podem ocorrer com apenas uma parte da literatura de chegada, daí então prosseguirem para outras parte; (2) um repertório traduzido não mantém necessariamente as funções que tinha na literatura de partida; (3) as apropriações tendem a ser simplificadas, regularizadas e esquematizadas.

Em vista disso, gostaríamos de ressaltar algumas secções das leis propostas por Even- Zohar que serão importantes em relação à nossa proposta de trabalho. Primeiramente, a escolha da literatura de partida se dá por contato, prestígio, dominância e necessidade.

É inegável que haja contato entre literatura e cinema. Este contato, por sua persistência já secular, está firmado em várias esferas das diversas comunidades culturais globais. Parece-

31 Mais sobre essas tentativas abaixo.

32 As literaturas de minorias étnicas ou sociais seriam, na Teoria dos Polissistemas, exemplos de sistemas dependentes dentro de um sistema dominante maior. A dominância pode ser exercida também sobre sistemas estrangeiros numa relação inter-sistêmica. Por exemplo, a literatura anglofônica seria caracterizada como um sistema central dominante, enquanto a literatura brasileira seria descrita como um sistema periférico. A dominância pode ter razões e implicações sociais, políticas, históricas e raciais.

nos duvidoso, no entanto, dizer que um sistema (seja o cinematográfico ou o literário) domine a relação presentemente. A saber, a relação se tornou simbiótica a um ponto em que os dois sistemas constantemente se confundem, com itens sendo transmitido de um lado para o outro de acordo, principalmente, com as demandas mercadológicas.

Por outro lado, parece-nos claro que as obras em questão em nossa dissertação foram adaptadas ao cinema devido ao seu prestígio inicial no sistema cultural literário (esse prestígio é atestado se não segundo o cânone acadêmico, certamente em termos de popularidade e influência cultural), porém não foi sem a falta de um quid pro quo. Quer dizer, a intenção das produções fílmicas era também resgatar, reavivar e expandir o prestígio literário das obras em questão, através da propagação midiática possibilitada por uma adaptação fílmica. Dessa forma, caracterizar-se-ia uma interferência bilateral, na qual o prestígio estaria em jogo para todas as partes envolvidas. Não haverá dominância também se considerarmos que as quatro obras são parte de sistemas de língua inglesa norte-americana, do ponto de vista econômico, social e cultural, atualmente ainda hegemônico, capaz de impor sua proeminência em relação a outros sistemas. Porém, há diferenças internas desse sistema e a dominância emerge em termos políticos, econômicos e culturais na relação entre os dois subsistemas sociais norte- americanos. Como Willer comenta, os beats nunca foram cooptados. Em vida, eram “metáforas vivas da rebelião e do inconformismo” (WILLER, 2014, p. 52), ideologias as quais encarnaram “ao se recusarem a integrar-se” (WILLER, 2014, p. 53). Porém, parece-nos que talvez, em morte, o fenômeno de incorporação dos itens culturais representados por eles, tenha sido iniciado. Vide as publicações do manuscrito original – antes a impublicável “salvaguarda final contra a cooptação” (VLAGOPOULOS, 2008, p. 66, tradução nossa) – e as próprias adaptações fílmicas, que, como tais e enquanto financiadas por grandes produtoras hollywoodianas, remetem a um produto inscrito dentro dos interesses políticos e econômicos de um setor não-marginalizado da população.

Podemos considerar, por exemplo, que a dominância política e financeira do sistema cinematográfico sirva-se de elementos considerados anteriormente marginais dentro de um sistema literário mas que atualmente são prestigiosos no sistema cultural para se justificar enquanto arte.

Ora, a integridade artística34 na contemporaneidade parece estar às vezes associada de modo paradoxal à rejeição de certos ditames mercadológicos35. A integridade artística

34 Claro, a ideia de integridade artística evoca uma concepção de valor que é atualmente relativizado. Uma vez que muito já foi discutido sobre o assunto, não nos alongaremos sobre o tópico aqui. Ver especialmente o capítulo “O valor” em O demônio da literatura (Compagnon, 2012).

(relativizar) se torna um fenômeno de natureza negativa, pois se estabelece através do que o artista não faz, não vende, não compactua, etc. Basta olhar para exemplos de autores de best-

sellers mundiais, J.K. Rolling, Stephenie Meyer, Paulo Coelho, etc. Quantos deles têm

prestígio dentro do meio acadêmico, literário, artístico? Sabemos que prestígio e integridade artísticos são socialmente construídos, mas, ao que parece, há momentos em que o prestígio artístico é inversamente proporcional ao prestígio mercadológico. No caso dos filmes estudados, isso se dá particularmente em relação ao grupo de estrelas jovens que se interessam pelos papéis de destaque nas obras em questão, Kirsten Stewart, James Franco, Daniel Radcliff36. É possível que esses atores, jovens, todos, busquem a justificação de sua arte através da tentativa de se filiar a ideais estéticos presentes em obras que uma vez estiveram no lado artístico/marginal dessa balança de prestígio que tem como contraponto o âmbito mercadológico/central das produções. Ademais, talvez essa associação possa ser uma tentativa de se ligar a um processo de recriação de certos ideais libertários, ainda que nas obras resultantes desse processo esses ideais transpareçam silenciados.

Sobre os processos e procedimentos da interferência, gostaríamos de ressaltar que, segundo Even-Zohar, os conjuntos de apropriações de um sistema pelo outro tendem a ser simplificadas, regularizadas e esquematizadas, de modo que elementos que sejam submetidos a esses processos são semiotizados pelo sistema de chegada de acordo com um padrão que tende a se repetir em outros elementos que passem pelo mesmo processo. Ou seja, segundo a tese de Even-Zohar, a adaptação de “Howl” tende a demonstrar padrões similares à adaptação de On the Road. Essa tese há de ser um dos pontos centrais da nossa análise. Por ela, inclusive, justifica-se a escolha dos pares de obras que passaram pelo mesmo processo, ao invés da abordagem de uma só adaptação fílmica para uma obra literária.

Por fim, ressaltamos a tese de Even-Zohar de que o repertório de partida não mantém necessariamente suas funções na literatura de chegada, ou seja, as relações que um elemento desenvolve com outros elementos na literatura de partida não terão necessariamente correspondentes na literatura de chegada. Essa é uma questão essencial à teoria da tradução e que será mais profundamente discutida na seção seguinte. Se a obra há de passar da não- existência para a existência, quer dizer, passar pelo processo de semiotização de um novo

35 Jonah Raskin, estudioso da obra de Allen Ginsberg, nota que à época da publicação de “Howl”, talvez ainda como hoje, havia uma injunção não escrita de que poetas deveriam evitar o mundo comercial. Nos olhos de muitos poetas, professores e críticos literários promover sua obra poética era um comportamento apoético. (RASKIN, 2004, p. 175).

36 Outro caso de estrelato juvenil, o ator conhecido pela saga cinematográfica Harry Potter (2001-2011), fez o papel de Allen Ginsberg na versão fílmica de uma das lendas mais poderosamente mítica relacionada aos beats, um assassinato que envolveu boa parte do grupo, narrado em Kill your darlings (2013)

sistema, ou melhor ainda, nascer; como podemos esperar que ela retenha algo de sua não- existência anterior? O que haverá de subsistir? Uma essência talvez? Algo central a ela que, independente do tudo que revolve ao seu redor, se manterá estática tal qual o núcleo em um sistema teórico? O que seria essa essência, esse núcleo? Uma origem? Ou um fim?

No Fédon, bem como em outras obras assinaladas à sua autoria, Platão postula a teoria de que “o conhecimento [...] é uma recordação” (PLATÃO, 2004, p. 136). É o argumento da reminiscência. Em seu diálogo, Sócrates parte dessa premissa para estabelecer que a alma humana, sua parte imortal, é apenas aprisionada no corpo durante sua breve existência. Ao habitá-lo, a alma decai de seu estado puro e está então sujeita às vicissitudes do mundo. Porém, antes e depois dessa habitação, ela está integrada a um “lugar análogo a ela, excelente, puro, invisível, ou seja, ao país de Hades, para junto do deus repleto de bondade e sabedoria, lugar a que espero minha alma vá dentro em breve” (PLATÃO, 2004, p. 146). Além, disso, toda forma de conhecimento só é possível graças à capacidade da alma humana de se lembrar

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