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O Senado Federal atuaria com discricionariedade plena, como Tribunal

PARTE I – A INTERPRETAÇÃO TRADICIONAL DO IMPEACHMENT COMO

CAPÍTULO 1 – ARGUMENTOS DOUTRINÁRIOS QUE ATRIBUEM NATUREZA

1.6. O Senado Federal atuaria com discricionariedade plena, como Tribunal

Aponta Brossard que o desenho institucional preconizado pela Constituição visa a garantir o equilíbrio entre os Poderes, os quais, apesar de serem independentes, guardariam forte interconexão, de maneira que o alcance das finalidades constitucionais dependeria do harmônico exercício das competências outorgadas a cada um deles. Para que tal dinâmica se desenvolvesse de maneira equilibrada, seria necessário que os Poderes se limitassem uns aos outros, o que evitaria movimentos desviantes ou arbitrários por parte de qualquer deles. Nesse panorama, embora ocupem o mesmo patamar na hierarquia institucional, a Constituição teria outorgado ao Congresso Nacional competência exclusiva para promover a apuração da

144 Sobre a questão assevera Brossard: “Afeitos à aplicação da lei, consoante métodos estritamente jurídicos, é duvidoso que, de ordinário, os juízes tenham condições para decidir acerca de fatos que, por vezes, transcendem a esfera da pura legalidade, inserem-se em realidades políticas, vinculam-se a problemas de governo, insinuam-se em planos nos quais a autoridade é levada a agir insinuam-segundo juízos de conveniência, oportunidade e utilidade, sob o império de circunstâncias imprevistas e extraordinárias”. BROSSARD, Paulo. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. 3. ed., ampl. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 143.

145 BROSSARD, Paulo. Idem, p. 182.

responsabilidade política do Presidente, como forma de equilibrar eventuais desvios funcionais ou políticos do Chefe do Poder Executivo. Tal ordem de competência poderia ser compreendida como espécie de “poder disciplinar constitucional”, sujeitando o Presidente da República, na hipótese específica do processo de impeachment, a julgamento perante o Poder Legislativo como forma de se resguardar a integridade da Constituição.146

Michel Temer é quem sustenta tal argumento de maneira mais explícita. De acordo com Temer, o julgamento proferido pelo Senado Federal em processos por crime de responsabilidade seria de natureza rigorosamente política: o órgão legislativo, nessa hipótese, apreciaria a denúncia a partir de um juízo de conveniência e oportunidade. Ainda que a conduta praticada pela autoridade acusada esteja devidamente tipificada como crime de responsabilidade, poderiam os Senadores apreciar a conveniência de se condenar ou não o Presidente da República. Inclusive destaca o jurista que se o objetivo do instituto fosse o de aplicar objetivamente o comando legal à hipótese fática, o mister seria atribuído ao Poder Judiciário, e não ao Senado Federal.147

Também José Afonso da Silva defende essa posição, aduzindo que a Constituição alçou o Senado à posição de tribunal especial, com o objetivo de proferir julgamento político do Presidente da República, diferentemente dos julgamentos técnico-jurídicos proferidos pelos tribunais judiciais.148 Mas, alerta Silva, o julgamento deve decorrer de um fato devidamente tipificado, e não meramente em razão de incompetência do governante.149

146 De acordo com Brossard, “entre os muitos poderes que o Congresso Nacional possui, alguns – políticos, sem dúvida – se relacionam com o poder disciplinar. A pena política que o Senado impõe, ao acolher acusação da Câmara, consistente na destituição do Presidente da República e sua desqualificação temporária para exercer função pública, decorre do poder disciplinar constitucional”. BROSSARD, Paulo. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. 3. ed., ampl. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 133.

147 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 169-170.

148 Para José Afonso da Silva, “Essa lição [de Paulo Brossard] é correta, pois a Constituição erigiu o Senado Federal, sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal, em tribunal especial, para o julgamento político, que não é um tipo de julgamento próprio de tribunais jurisdicionais, porque estes não devem senão exercer a jurisdição técnico-jurídica”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 37. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 558.

149 Nas palavras do autor: “Juristas há que sustentam que o impeachment é processo político e, portanto, as Casas do Congresso têm ampla discricionariedade na configuração dos fatos e de seus motivos. Acho que não é bem assim. A sua natureza política está apenas na natureza da sanção, que se limita na cassação do mandato da presidente e sua inabilitação por oito anos para o exercício de função pública. É político porque ele não objetiva a aplicação de pena criminal. Vale dizer, pois, que processo de impeachment tem que obedecer a regras jurídicas quer quanto à configuração dos fatos e seus motivos. Advirta-se, por outro lado, que a mera incompetência na gestão governamental não constitui motivo para o impeachment. Se o povo elegeu um mau governo, só o povo deve desfazê-lo em nova eleição. Quer dizer, pois, que só a incidência num dos crimes de responsabilidade previstos no art. 85 da Constituição dá oportunidade para a formação do processo de impeachment”. SILVA, José Afonso da. Crise política e sua solução institucional: reflexões sobre o controle político no Brasil. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 13, n. 51, p. 9-18, out./dez. 2015, p. 17.

Assim, a depender dos objetivos políticos pretendidos pelos julgadores (por exemplo, evitar “agitação interna”, como menciona o Temer), o acusado poderia ser absolvido, mesmo que tenha praticado a conduta vedada. A hipótese inversa (condenação mesmo na ausência de crime de responsabilidade) também é admitida pelo autor, para quem “pode até dar-se o fato de as provas não serem definitivamente incriminadoras, mas a situação de ingovernabilidade pode ser de tal porte que o parlamentar decide pelo afastamento para restaurar a governabilidade”.150 De qualquer modo, a única exigência jurídica que recairia sobre o manuseio do impeachment seria a observância do procedimento fixado para a espécie na Constituição e na lei de regência.151

Também defendendo a feição política do instituto, Antonio Riccitelli argumenta, de maneira extrema, que através do instituto os órgãos legislativos incumbidos do processamento do Presidente da República podem interagir com a vontade popular, de modo a afastar governantes que não mais dispõem da confiança dos eleitores e que não se mostrem mais aptos a dar efetividade ao interesse público.152

Brossard chega a especular a similitude do processo de impeachment com o processo administrativo disciplinar. Tanto que o autor admite que o exercício daquele instituto representa modalidade de “poder disciplinar constitucional”, através do qual é outorgada ao Poder Legislativo a competência de promover a responsabilidade funcional do Presidente da República. O instituto, nesse passo, teria o escopo de garantir a integridade da Constituição contra desmandos do Chefe do Poder Executivo, justificando, inclusive, a flexibilização da garantia democrática consagrada na eleição do Presidente. A autoridade e superioridade da Constituição, assim, restariam resguardadas.153

Seria o impeachment, portanto, mecanismo de controle político (ou de exercício de

“poder disciplinar constitucional”) franqueado ao Poder Legislativo para ser usado em face do Presidente da República. Inclusive, o autor lança importante reflexão: “Admitida a sanção política como variante ou modalidade do poder disciplinar, não estaria aí uma explicação a mais para a não ingerência do Poder Judiciário em questões relativas ao impeachment? (...)

150 TEMER, Michel. Constituição e política. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 39.

151 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 170.

152 RICCITELLI, Antonio. Impeachment à brasileira: instrumento de controle parlamentar? Barueri: Minha Editora, 2006, p. 97-98.

153 BROSSARD, Paulo. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. 3.

ed., ampl. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 132.

Daí a razão pela qual, contra as penas disciplinares, não se admite habeas corpus nem mandado de segurança, salvo para apreciar-lhe a legalidade, sem entrar no mérito.”154

O caráter essencialmente político do instituto é destacado em capítulo próprio da obra de Brossard, intitulado “para infrações políticas, um tribunal político”, em que destaca o jurista que “com tais características e peculiaridades, é natural que do julgamento político, prolatado por uma corporação política, em virtude de causas políticas, ao cabo de processo político, instaurado sob considerações de conveniência política, não haja recurso ao Poder Judiciário”.155 Tal interpretação foi contestada por Humberto Ribeiro Soares ao defender ser incompatível com o regime presidencialista brasileiro a atribuição de competência política, discricionária, ao Parlamento para a derrubada do Presidente da República. Na interpretação de Soares, o impeachment teria natureza constitucional-penal, haja vista que o delineamento constitucional da matéria o aproximava do sistema punitivo criminal, como a exigência de fixação em lei especial dos crimes de responsabilidade e das normas de processo e julgamento. Como consequência, não haveria qualquer espaço para apreciação discricionária de eventual crime de responsabilidade praticado por Presidente da República.156

1.7. O Senado Federal desempenharia função jurisdicional quando julga o Presidente da