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5. Confrarias ou Irmandades e outras devoções marítimas em Sesimbra

5.1 Devoções marítimas em Sesimbra

5.3.10 Senhor Jesus dos Passos da Cruz, vulgo Senhor dos Passos, e a Irmandade

As primeiras referências ao Senhor dos Passos surgem em finais do século XVII470, apesar

das várias alusões anteriores às celebrações na Quaresma e procissões na Semana Santa. Um

Termo de 1718 remete-nos para o “longo costume” devocional, no qual se inclui

necessariamente as procissões da Semana Santa, os “sermões, as armações dos passos, a cera

e a música”. Por este Termo, sabemos que vários devotos fizeram uma petição ao Provedor

da Santa Casa da Misericórdia com o fim de criar a Irmandade dos Passos da Cruz. As celebrações que até aí se fizeram, eram custeadas por parte da Santa Casa da Misericórdia, cerca de “60 mil reis (…) que se gasta em cada ano,” questão que acarretaria avultados custos, que a Santa Casa não conseguiria suportar uma vez que “os rendimentos dela [seriam]

escassos (…) e muito diminutas as rendas.” Assim, a futura “Irmandade da Cruz fará à sua

468 Idem, ibidem, p. 62

469 Idem, ibidem, p. 66; 84; 200-201

470 MONTEIRO, Rafael, op. cit., 2002, p. 24; e AMS SCMS Livro dos Termos da Stª Casa da Misericórdia 1669-1712, p. 53v.

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própria custa [as celebrações] com a condição de que os que são e forem irmãos da Santa Casa se possam alistar quando queiram na mesma irmandade da Cruz.” Parece-nos que a

condição não seria apenas aquela. O documento471 onde encontramos todas estas referências

acha-se em bastante mau estado, mas a questão monetária vai para além dos fracos rendimentos que alegadamente a Misericórdia teria. Numa parte lê-se que “ (…) facilmente a

Santa Casa lhe levantará altar e fabricará capela (…) ”, o que nos leva a supor que por parte

destes devotos poderia ter havido uma sugestão estratégica para conseguirem obter um local de veneração para a imagem dos Passos, uma vez que se “facilmente a Santa Casa lhe (…)

fabricará capela,” esta não estaria assim financeiramente tão mal. A sugestão de suportar

com as despesas das celebrações leva-nos a este entendimento. A resposta da Santa Casa Misericórdia, dada a 3 de Abril de 1718, é a de conceder “licença do direito que [tinham] de

fazer a procissão dos Passos com as condições na suplica expendidas.” Como referimos o

documento original encontra-se em muito mau estado e falta-lhes algumas páginas. Temos agora um hiato de tempo, sobre o qual nada sabemos do evoluir das celebrações. No entanto, há alguns factos curiosos nesta fase do processo, nomeadamente o aparecimento de uma nova irmandade.

Em 1728/29 o provedor

“ (…) achou a sagrada imagem do Senhor dos Passos metida em um caixão a qual saía a publico senão pela quaresma na (…) procissão e vendo o pouco culto que se lhe dava e que sendo a dita irmandade da

Misericórdia senhora da dita igreja [leia-se Misericórdia] e capelas472 e a dita imagem era indecência

estar esta como de presente se achava em um caixão sem culto sem a reverência que lhe é devida.”

Por aqui se pode depreender que a anterior irmandade não teria prosseguido com os seus intentos. Sabe-se que constituição desta nova Irmandade dos Passos se teria constituído a partir da própria Irmandade da Santa Casa da Misericórdia473, uma vez que os “oficiais e irmãos da mesa da dita Santa Casa da Misericórdia (…) hão-de ser os mesmos dos Passos.”

E porquê, porque são estes “os que hão-de pagar [pelas] insígnias conforme lhes for

ordenado pela dita mesa da misericórdia em tal forma que este acto é todo da Misericórdia.”

471 AMS SCMS Livro de Registo de Termos e Despesas da Santa Casa da Misericórdia, 1718-1773, p. 5-8v. 472 Leia-se Capela da Senhora da Piedade e do Senhor das Chagas, segundo informação constante no

documento. (AMS SCMS Livro de Registo de Termos e Despesas da Santa Casa da Misericórdia, 1718-1773, p. 14v)

473 A maior parte dos irmãos da Irmandade da Misericórdia eram também eles “irmãos da Confraria das Santíssimas Chagas de Christo.” (AMS SCMS Livro de Registo de Termos e Despesas da Santa Casa da Misericórdia, 1718-1773, p. 14v)

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Temos agora a ‘criação de uma nova Irmandade’, ao que parece sem autonomia, e que assim surge como uma entidade que servirá apenas os propósitos da própria Santa Casa da Misericórdia, considerando que o referido “acto é todo da Misericórdia porque em sua mente

não é fazer de novo nova irmandade é somente virem de capas roxas naquela procissão e nas sextas-feiras da quaresma e de todo o ano assistindo à sagrada imagem do Senhor dos Passos.” Esta nova irmandade teria a seu cargo “pedir pela terra as esmolas por ela.”

Se em 1718 houve a “suposta” condição da Santa Casa da Misericórdia “fabricar capela,” depreendemos que tal não aconteceu, uma vez que sendo a “irmandade da Misericórdia

senhora da dita igreja e capelas de que se compõem e tendo comodidade para poder celebrar em uma das ditas capelas a dita imagem,” chegaram os vários irmãos474 à conclusão de que

“na capela onde antigamente estava Nossa Senhora da Piedade e [onde] também tenha

estado a soberana imagem do Senhor das Chagas nela fosse colocada a imagem do Senhor dos Passos pela comodidade (…) que tem (…) e serventia em se tirar (…) quando necessário for” a imagem do Senhor dos Passos. Logo a solução não seria a de construir uma nova

capela, mas a de efetuar obras na capela fronteira, onde se encontrava a imagem da Senhora da Piedade, passando a mesma a albergar também a imagem do Senhor das Chagas. Esta nova irmandade assim constituída obrigava ao pagamento anual de 300 reis, e “aquele que faltasse

à sacra procissão” e não pagasse os “trezentos reis seria logo riscado e excluído da dita irmandade”475. Havia também a obrigação de “nas sextas-feiras da quaresma” em que

estivesse “patente a soberana imagem do Senhor dos Passos um dos Irmãos” deveria estar “junto ao altar pedindo para a mesma imagem”476, além de que todos os anos deveria haver

peditório pela vila e termo para ajudar nas despesas da Santa Casa.

Entretanto e porque sendo a Irmandade da Misericórdia e a Irmandade dos Passos “uma só

quanto aos indivíduos que são seus membros”, em 1805, é feito o Compromisso das Irmandades da Misericórdia e Passos da Villa de Cezimbra.477

Foi ao longo de todo o século XVIII e inícios do XIX um dos grandes cultos sesimbrenses e para cujas celebrações muito contribuíram capitães, armadores e armações, arrais, mestres e

474 Será de referir que os irmãos de que falámos, constituem a Irmandade da Misericórdia e a “Confraria das Santíssimas Chagas de Christo”, porque se refere que “de uma e de outra parte e todos junto convieram assim,”

em efetuar a mudança da imagem dos Passos para a Capela que era das Chagas.

475 AMS SCMS Livro de Registo de Termos e Despesas da Santa Casa da Misericórdia, 1718-1773, p. 15 476 AMS SCMS Livro de Registo de Termos e Despesas da Santa Casa da Misericórdia, 1718-1773, p. 15 477 MMS Compromisso das Irmandades da Misericórdia e Passos da Villa de Cezimbra 1805. No prefácio deste

compromisso lê-se “havendo-se regulado desde a sua Instituição por dois Compromissos alheios a da

Misericórdia pelo da Misericórdia de Lisboa, e a dos Passos pelo da Irmandade de Stª Cruz e Passos sita no Convento da Graça da mesma cidade”.

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barcas, chinchas e xinxorros, lanchas e barcos, e as redes de pescada, entre outros, cujas referências se podem encontrar nos livros de Receita da Santa Casa da Misericórdia. Em 1805, pelo referido compromisso, constata-se que a procissão dos Passos por falta de verba e alfaias já não se realizaria há algum tempo, podendo apenas vir a realizar-se caso “tenha cada

um dos irmãos a sua capa por compra, empréstimo ou aluguer, e concorrendo as Armações e Barcos com sua esmola do costume, então poderá haver a dita Procissão”.478

Figura 38 – Procissão do Senhor dos Passos479

Nas celebrações da Semana Santa, o culto ao Senhor dos Passos foi sem dúvida um dos mais importantes de Sesimbra, e no período em que o mesmo se desenvolveu, os cultos então existentes perderam fôlego, como foi o caso do Espírito Santo, ou mantiveram-se, acabando por persistir até à atualidade, como é o caso do das Chagas de Cristo.

Como nota final, não podemos deixar de mencionar aqui uma memória da Procissão de Sexta- feira Santa, no século XX. Em 1995 as irmãs Lucília e Gaudência Mesquita descreveram-me assim essas celebrações:

“O pendão roxo que vai à frente da Procissão [leia-se das Chagas] é o Pendão da festa do Senhor das Chagas e da Semana Santa. (…) Remonta ao período em que se fazia a procissão da Semana Santa com o Senhor Morto na Sexta-feira Santa e eram os padres que levavam o Senhor nos braços. Os padres iam todos de alva, percorriam todas as ruas, as ruas do Forno, do Norte, da Fortaleza, [entre outras], e ia-se marcando os sete passos do Senhor. Na procissão, além do Senhor Morto iam também as imagens de S. João Evangelista e de Santa Maria Madalena. Os anjinhos iam vestidos de roxo, e levavam os 7 símbolos da crucificação e do martírio do Senhor: os cravos, a coroa de espinhos numa salva, a corda com que foi amarrado, o martelo, o dinheiro do Judas, etc. Escolhia-se uma rapariga com boa voz para cantar na

478 MMS Compromisso das Irmandades da Misericórdia e Passos da Villa de Cezimbra 1805, p. 58. 479 Fotos AMS (EFDV FD F7; EFHAM FD 03 F1)

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igreja e a sua recompensa era um cartucho de amêndoas. Esta procissão já se deixou de fazer há cerca de30 anos.”480

480 Testemunho recolhido das irmãs Lucília e Gaudência Mesquita em 29 de Dezembro de 1994, infelizmente já

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