• Nenhum resultado encontrado

sentir o invisível

No documento Campos de invisibilidade (páginas 79-82)

2.1 “eu sou um outro”

2.3 sentir o invisível

Em Estudo para duelo (2013)32, obra que desenvolvi em coautoria

com a artista Paula Garcia (figura 32), há o desejo de fazer sentir – de modo absolutamente físico, no encontro frontal e concentrado entre duas pessoas – esse tecido imaterial que tensiona as relações.

Dois coletes imantados são dispostos um em cada ponta de uma instalação. Duas barras de aço formam um corredor de aproxima- damente 6m de comprimento. Essas barras servem de trilho para o deslocamento das vestimentas e consequentemente das pessoas que ocupam essa estrutura. Ao deslizarem pelo trilho e tentarem se encontrar ou se chocar em algum ponto da instalação, os par- ticipantes produzem um jogo de forças mediado por um campo magnético invisível que repele e impossibilita o contato entre eles.

32. Esta instalação foi desenvolvida como parte da residência artística Videobrasil em Contexto, realizada pela parceria entre Casa Tomada, Videobrasil (São Paulo) e Delfina Foundation (Londres). O desenvolvimento desta peça contou com a colaboração imprescindível do artista Paulo Galvão.

Fig. 32 – Estudo para Duelo (2013), Cláudio Bueno e Paula Garcia. Assista o vídeo-registro da obra disponível em: http://vimeo.com/72106734. Acesso em:10 Jan. 2015.

Aqui, o invisível é apreendido no próprio corpo das pessoas, fisicamente e mentalmente. Flertamos assim com uma Kafka ma- chine, descrita por Kafka em seu conto Na colônia penal33 em 1914

e publicado em 1918. Nessa máquina o prisioneiro condenado tinha sua sentença gravada na carne antes de morrer. A imateria- lidade do texto era convertida em materialidade física brutal ao ser transferida dessa maneira para o corpo.

A obra Estudo para duelo produz uma experiência de impacto físico com o invisível. Espera-se assim que o sujeito crie uma memória sensível e psicológica em seu corpo, permitindo-lhe perceber as forças invisíveis presentes nas relações cotidianas. Devemos considerar que, apesar da forte experiência trazida em Estudo para duelo, não se trata evidentemente de uma máquina de tortura, como aquela descrita por Kafka. Aqui, não há qualquer possibilidade de ser condenado ou vitimizado, mas o contrário, o sujeito é convocado a responder de modo ativo à estrutura.

Ao contrário das máquinas cotidianas de aparência amigável, cujas estruturas não são questionadas devido a sua fácil adaptação aos corpos de seus usuários, a máquina produzida aqui procura refletir certa inversão de valores, assumindo sua brutalidade.

A instalação revela totalmente a sua arquitetura, quase como um modo improvisado de uma tecnologia baseada em gambiarras. Não há caixa preta. O caráter precário é assumido por meio de elementos da construção civil comprados parcialmente em ferro velho. Trata-se de um trabalho sujo, que se difere da assepsia do cubo branco dos espaços da arte.

33. Na colônia penal: título original

In der Strafkolonie.

Fig. 33 – Estudo para duelo (2013), Cláudio Bueno e Paula Garcia.

A peça criada não sugere liberdade, intensifica o caráter dis- ciplinar dos deslocamentos diários nas cidades por meio de sua arquitetura. Tal condição material e imaterial, corporal e incorpo- ral trazida aqui entre a estrutura metálica e o campo magnético repulsivo, oferece um questionamento que duvida de certo tom leve e libertário que possa estar ideologicamente impregnado no espaço contemporâneo. Entendemos que o desconforto dispendido pela participação na instalação, diante de um tempo de máquinas “fofas”, torna-se hoje uma experiência necessária.

Essa máquina revela um sentimento distópico. Pois se espe- rávamos que as tecnologias nos trouxessem mais liberdades e produzissem algo em função de um bem-estar comum, essa noção demonstra-se hoje altamente paradoxal. O uso de dispositivos tecnológicos tem criado novos centros de produção escrava (in- visíveis) pelo mundo. Sob a lógica de mercado baseada na obso- lescência programada, os equipamentos tornam-se rapidamente “velhos”, gerando uma enorme quantidade de lixo sobre o planeta –, que não queremos ver onde são depositados. A esperteza do capital também é ágil ao inventar novos modelos de centralização e comercialização de dados, quando tudo apontava para a descen- tralização. Esses dados, em casos extremos tem sido fornecidos para o exercício da vigilância e do controle realizado pelos Estados (como será estudado no capítulo 4). Sendo assim, Estudo para duelo não pretende revelar nenhuma idealização utópica de futuro, mas problematizar fortemente a experiência do tempo presente e das máquinas que mediam as nossas relações.

A noção de duelo proposta aqui adiciona nova camada às dis- cussões dos pronomes que vinham sendo trabalhadas por Ricardo Basbaum. Ao impossibilitar o contato total com o outro, também impossibilita a criação de um superpronome [euvocê, vocêeu]. E tal impossibilidade, que marca a distância e a diferença entre “eu” e “ele”, reforça também a responsabilidade individual de cada um diante do corpo do outro. Sejam os participantes conhecidos ou não, ao assumirem seus postos dentro da obra, tem seus olhares dire- cionados e precisam estabelecer rapidamente um jogo ético entre [eles], que regulará a intensidade do “choque” e poderá envolver maior ou menor grau de perversidade e cumplicidade.

Diversas obras de outros artistas também promovem esse tipo de encontro frontal, no qual o campo de invisibilidade não tem

chance de se dissipar, é duro, porém, demanda a um enfrentamente, necessário e inevitável. Um exemplo são as performances de Marina Abramovic e Ulay, em trabalhos como Relation in space (1976) ou Rest energy (1980), nos quais expunham seus corpos a limites físicos e mentais. Na primeira (fig. 34), em Relation in Space, os artistas cho- cam seus corpos um contra o outro, rompendo com o campo invisí- vel e possivelmente atormentador da tensão entre eles, que na época eram casados. Na segunda (fig. 35), utilizando um arco e uma flecha, o corpo da artista é colocado sob a iminência de um acidente.

Verificamos a seguir, não mais o confronto direto, inevitável entre duas pessoas, mas o enfrentamento de um indivíduo com a multidão. A noção radical, física e psicológica desse tipo de encontro é estudada através da performance Experiência no 2 (1931), de Flávio de Carvalho.

No documento Campos de invisibilidade (páginas 79-82)