• Nenhum resultado encontrado

Ser absolutamente, existir.

100. Não se trata aqui do ser absolutamente, que significa existir (Averroès, 2000, p. 129): “Se se disser apenas que Homero é, isso é falso, [...] porque ele não existe nesse momento. A razão disso é que a palavra pela qual nós dizemos e’ se predica de Imru’uTQaus (poeta árabe, que substitui, no exemplo de Averroès, Homero) quando esse é objeto da imaginação ou poeta, e não segundo uma predicação primordial e relativa à sua essência, a saber, de uma maneira absoluta. E, ao se dizer que ele é, enquanto ele é objeto da imaginação no pensamento, o enunciado é verdadeiro”.

101. κατηγορία [atribuição],

102. λόγος, em grego, traduz-se por enunciado, discurso. Aqui segui Pacius, o qual traduziu λόγος por definição.

103. Uma coisa, o indivíduo, o particular, rigorosamente, é a substância. Por isso não se poderia em um sentido primeiro dizer que o azul é, mas se poderia dizer que as coisas azuis são e, por conseguinte, que o azul é. // Na frase “Nicômaco é o filho de Aristóteles”, se Nicômaco existir, Nicômaco será por si mesmo e não por acidente em relação ao ser filho de Aristóteles. Nesse caso, será verdadeiro dizer que Nicômaco é absolutamente.

104. O contingente em Pacius e em grande parte da tradição. A opção por admissível (Ackrill, 1974, Capítulo XIII) me parece mais assimilável, todavia. Há que se ter presente aqui que esses termos (possível, impossível, necessário, admissível) condicionam o espaço proposicional e modificam a negação. Aristóteles mos­ trará que essa deverá incidir sobre o modo e não sobre o verbo que se situa entre o sujeito e o predicado, diferentemente das proposições não modais. A (Lei dos Pares Contraditórios - LPC), como observa Whitaker, é mantida, mas graças ao deslocamento da negação, como se verá adiante.

105. A conclusão a que se chega aqui é semelhante àquela a que se chega pelo princípio da contradição. Esse fato apenas denuncia a relação entre a LPC e o princípio dos princípios.

106. Em verdade, no segundo caso a cópula segue importante para a determinação da posição da partícula negativa. Se ela incide sobre a cópula, temos uma proposição não metatética; se ela incide sobre o predicado, temos uma propo­ sição metatética.

107. Não se pode deixar de identificar a relação dessa passagem com o princípio da contradição (Metafísica, 1005b 19 e seguintes). Também um pouco mais adiante: “[...] a mesma coisa é afirmada e negada simultaneamente de um mesmo”. O fato de o verbo nas contraditórias se apresentar em um mesmo tempo e de estar embutido na proposição conduz ao ocultamento do tempo ou à sua limitação na formulação seguinte: “todavia, é impossível em relação à mesma coisa que as proposições opostas sejam verdadeiras”. O princípio da contradição, por enfocar a coisa e não a proposição, vai explicitar o aspecto e o tempo. Isso tem importantes consequências. Consideremos as proposições “Sócrates é calvo” // “Sócrates não é calvo”. Pela LPC, suponha-se que a proposição “Sócrates é calvo” seja verdadeira, “Sócrates não é calvo” será proposição falsa. É possível, porém, que Sócrates não é calvo tenha sido uma proposição ver­ dadeira no passado. Essa hipótese, porém, vai muito além da LPC, não lhe diz respeito, ainda que se submeta ao âmbito do princípio da contradição. Esse fato confirma a universalidade e o nível de generalização superior do princípio dos princípios. No presente trecho, trata-se de demonstrar que a negação do modo da possibilidade deve incidir sobre o possível e não sobre o verbo fora do modo. 108. A posição da partícula negativa nas proposições modais se cola ao modo. Se ela comparece no restante da proposição, no ser isso, em é impossível (não) ser isso, por exemplo, ela tem uma função similar à da partícula metatética nas proposições não modais.

109. Sujeitos atuais por oposição aos sujeitos regidos pelo modo.

110. No texto grego utilizado, essa oração se separa da anterior por ponto e vírgula. 111. Evidentemente, Aristóteles foi aqui movido pela necessidade de preservar uma mesma regra para as modalidades em geral. A lógica não examina as coisas que apenas servem ao correto por acidente, observou Averroès em seu ensaio “A propósito dos predicados isolados e compostos e da crítica da posição de Avicena” (2000, §3.1). Todavia, o modo da necessidade tem a sua especificidade e as duas proposições - “é necessário que isso aconteça” e “é necessário que isso não aconteça” - são incoexistíveis. Essa é mais uma diferença desse modo em relação ao modo do possível.

112. Também as proposições “é impossível isso ser” e “é impossível isso não ser” são incoexistíveis, ou incompatíveis, mas se trata de preservar aqui a universalidade da regra lógica da modalidade e da negação que se cola ao modo.

113. Aqui se apresenta um jogo das modalidades, as inferências que elas se permitem entre si, que revelam as relações entre os modos. A palavra grega óa<oA.oij0r|aiç [inferência], derivada do verbo òcKoXovGèco [seguir], literalmente significa sequência; por exemplo, a operação lógica que faz com que de A siga logicamente B.

114. Sempre se fala da equivalência do possível e do admissível. Já observara João de Salisbury (apud Isaac, 1953, p.55) que o possível e o contingente (admissível) têm praticamente o mesmo sentido no Da Interpretação. O possível, porém, parece remeter à objetividade e o admissível à ordem do pensamento. Não faria

sentido Aristóteles colocá-los meramente como sinônimos. Enfim, temos aqui as duas ordens: a ordem das coisas e a ordem do pensamento. Cf. Primeiros analíticos, 32a 18. O leitor terá oportunidade de observar que o admissível é essencialmente uma posição do pensamento. Cf. ainda Lukasiewicz, 1972, p. 163. Cf. também Ackrill, 1974, p. 149. Sustento, porém, que não há palavras a sobrar no Da Interpretação, especialmente neste capítulo. A questão não é de sinonímia, portanto.

115. O próprio Aristóteles confirma a equivalência do possível e do admissível, nessas passagens. Todavia, há que subsistir alguma distinção de sentido para que os termos sejam apresentados como modalidades distintas, e a razão me parece a apontada na nota anterior. Demais, a equivalência é uma forma de articulação de modos diferentes aqui. Articulação que acontecerá também entre o possível e o necessário, mas mediante o uso da negação ou ainda mediante o uso dos conectivos e e ou (é possível p e ~p equivale a é necessário p ou ~p). A lógica das modalidades de Aristóteles só tem o alcance que tem porque considera a articulação dos diferentes modos. É exatamente aí que ela é genial e interessa mesmo às matemáticas atuais.

116. Estamos aqui no campo das inferências, que Aristóteles chama de sequências: umas por contradição e outras por contraposição. Por exemplo, do impossível, por contradição, segue o possível; do impossível, por contraposição, segue o não é possível. Da primeira inferência segue a contraditória; da segunda segue um mero espelhamento, uma reversão do enunciado em sua forma mais analítica.

117. Não se trata aqui de proposições contraditórias.

118. A expressão αίτιον traduz-se aqui por “causa” (Pacius, 1967).

119. O impossível por maneira inversa corresponde ao necessário; isto é, o comple­ mento do modo de um é negado em face do outro: “é impossível isso ser” corresponderá a “é necessário isso não ser”.

120. Temos aqui uma redução ao absurdo perfeita. Vejamos: se “é necessário isso ser” não supõe “é possível isso ser”, então “é necessário isso ser” suporá “é im­ possível isso ser”, mas como algo é necessário ser, se for impossível que seja? 121. A possibilidade é mais ampla que a necessidade e, como modo, não pode

ser reduzida ao modo da necessidade. “É possível isso ser” encerra, no plano meramente abstrato, simultaneamente “é necessário isso ser” e “é necessário isso não ser”, “não é necessário isso ser”, “não é necessário isso não ser”. De toda maneira, esse trecho guarda alguma dificuldade. Em que sentido se pode dizer que o “é necessário isso ser” e o “é necessário isso não ser” não seguem de “é possível isso ser”? A resposta é, talvez, in concreto que ambas não seguem lógica e simultaneamente do é possível, mas isoladamente cada uma delas sucede (e não segue necessariamente), no singular, do épossível. Demais, do momento em que uma delas é real, a outra já não é possível. E aí já não cabe mais falar do possível, mas simplesmente do necessário.

122. “É necessário isso ser” e “é necessário isso não ser” não podem ser verdadeiras simultaneamente, ainda que não sejam modalmente contraditórias. Esse é um fato que mostra a especificidade da necessidade e da posição na negação nesse modo. Com efeito, a negação interna nesse modo (interna por oposição da negação que incide sobre a modalidade) tem um significado totalmente distinto da negação interna no modo do possível, pois as proposições “é possível isso ser” e “é possível isso não ser”, ao contrário daquelas, coexistem. E, diria, constituem apenas uma proposição (vide comentários ao Capítulo IX). 123. Absurdo seria que a LPC fosse violada e se chegasse a duas contraditórias

verdadeiras.

124. O raciocínio por absurdo segue nesse trecho. Se algo deve ser necessariamente, esse fato exclui que esse mesmo possa não ser ou se admita não ser, afinal o modo da necessidade como que corta a disjunção puxada pela possibilidade, essa a sua especificidade. Eis por que o necessário não é redutível ao possível. 125. Aquelas coisas que podem ser pela intervenção da razão, sujeitas à deliberação,

a qual sempre trata de escolhas entre possibilidades, ou melhor, entre admis- sibilidades (comentários ao Capítulo XIII).

126. O exemplo torna claro o conteúdo da expressão: as potências da natureza, não humanas, isto é, sem o uso da razão.

127. As palavras gregas δυνατόν e δύναμις são traduzidas aqui por “possível” e “potência”. Potência no sentido de feixe de possibilidades ou capacidades. 128. Como observa Tricot, em nota que corresponde a esse trecho: “O possível não

pode ser afirmado do que é necessário absolutamente, mas pode ser do que é necessário ex hipothesi, pois será necessário que a coisa seja quando ela for”. O absolutamente necessário não pode ser apresentado como a potência sepa­ rada do ato, pois de alguma forma já é também ato.

129. O possível tem um nível de generalidade maior do que o necessário. A pro­ pósito, vide nota 120.

130. XÒ ÕV [o que é], aqui com o sentido de existência.

131. A substância primeira aparece aqui em sentido próprio à passagem da Metafísica, 1050b 3. Aí Aristóteles se refere a substâncias que seriam atos puros. Mais do que uma questão teológica, tais substâncias revelam hipótese lógico- -ontológica onde se dá a supressão do momento de potência para alguns seres. O sentido de substância no caso nada tem a ver com o sentido do Capítulo V, 2a 11-15, Categorias.

132. Em 17b 28, Aristóteles se referiu a tais proposições como contraditórias. 133. Nas Categorias, 13b 12-36, Aristóteles trata dessa matéria. Aí responde por

que precisamente seriam contrárias (contraditórias) a afirmação e a negação. É que uma delas será sempre verdadeira e a outra falsa. Suponham-se as pro­ posições “Heliodoro é doente” // “Heliodoro não é doente”, se Heliodoro existe, uma delas será verdadeira e a outra, falsa; se Heliodoro não existe, “Heliodoro é doente” será falsa, e “Heliodoro não é doente”, verdadeira. Para isso ser possível,

há necessidade de trânsito da incidência da negação: lá ela incide sobre o pre­ dicado; aqui ela incide sobre a existência do sujeito. Nesse caso, o verbo é mais do que a cópula.

134. O objeto do tratado é o exame das proposições, dos seus tipos e das leis de inferência entre elas, da negação que é um dos pontos-chave da lógica proposicional. Sob esse ponto de vista, não cabem discussões psicológicas (Cf. Da Interpretação, 16a 7). Porém, aqui Aristóteles volta à sede produtora das proposições, onde elas aparecem como juízos (ou crenças, segundo outras traduções), isto é, como produto da atividade mental ou do espírito.

135. Ali, isto é, na mente. 136. O bom e o mau (Pacius).

137. Essa passagem põe uma pedra nas dúvidas que o texto tenha gerado no que concerne ao emprego da expressão contrário e da expressão contraditório. Os juízos são essencialmente contrários, ou melhor, contraditórios, por serem expressos de modo contraditório, isto é, por meio da negação e não por meio de uma expressão meramente contrária. Para levar a cabo a sua argumentação, Aristóteles chega ao exagero de dizer que o juízo que diz do bom que é bom e o juízo que diz do mau que é mau talvez sejam o mesmo.

138. É infinito o número de possibilidades de atribuições a um sujeito de predicados que nele não subsistam; porém, em que sentido se poderia dizer que a coisa tem sempre um conjunto de atributos infinitos que poderiam equivocadamente serem ditos não subsistentes nela? No mínimo, há uma assimetria entre as duas colocações. Com efeito, o primeiro número deverá ser maior que o segundo. 139. O engano se produz quando se espera a proposição verdadeira e se alcança a

falsa, isto é, se produz entre as contraditórias.

140. Na gênese, algo que não era passa a ser: dois juízos opostos e contraditórios nela figuram: isto é, isto não é.

141. O objetivo dessa passagem é desqualificar a negação que não se faz pelas contraditórias. No caso, se o bom não é mau, o contrário de bom será mau, mas esse será um contrário acidental, e não por si mesmo ou essencial. 142. Por si mesmo, não por outro, por sua própria essência.

143. O juízo falso por si mesmo, isto é, aquele que diz do bom que não é bom, ou do que não é bom que é bom, será mais falso do que aquele que diz do bom que é mau, ou do que não é bom que não é mau.

144. O parto da doutrina exige uma complexa argumentação cujo fecho é que a afirmação e a negação encerram o juízo mais verdadeiro e o mais falso. 145. O engano, o erro, se dá ao se atribuir um contrário daquilo que é àquilo que é. 146. A propósito, pelas diferenças e semelhanças, vale conferir o Capítulo X das Categorias, que trata dos opostos. Em 11b 17 pode-se 1er: “Diz-se que uma coisa se opõe a outra de quatro modos: ou como os relativos, ou como os contrários, ou como a privação e a posse, ou como a afirmação e a negação”.

147. Introduzi a expressão “por si mesmo” entre colchetes, para que a passa­ gem se tornasse coerente. A expressão pode ser traduzida por em essência, essencialmente.

148. Esse juízo é a articulação de dois juízos: isso é bom, isso é mau; donde o que é bom é mau.

149. Ao invés de mau, deve-se supor “não é bom”. 150. “O homem é homem”; “o homem não é homem”. 151. Por exemplo, “a árvore é árvore” // “a árvore não é árvore”.

152. Se fosse o verdadeiro contrário ao verdadeiro, estaríamos não diante de um contrário, mas de um mesmo, e de um mesmo contrário a si mesmo. Enfim, estaríamos diante de um absurdo.

153. O texto é muito sintético como que a revelar a economia das anotações e não o texto rematado dos tratados. Em verdade, está-se sempre a tratar de juízos ou discursos declaratórios: isso não é bom, isso é mau etc.

154. O neutro plural foi usado aqui e também poderia ser traduzido por essas coisas, essas determinações, no caso.

155. A interpolação de Minio-Paluello foi modificada aqui por mim, uma vez que pareceu confusa. De fato, operei a disjunção dos colchetes da edição de Lorenzo Minio-Paluello.

156. O nada no grego, como no português, torna a segunda negação expletiva: tanto faz, assim, dizer nada do que é bom é bom, ou nada do que é bom não é bom. Por sua vez, o artigo definido como quantificador equivale a um quantificador universal.

157. O “bom é bom” e “o que é bom é bom”; ou ainda como está explícito no texto: “tudo o que é bom é bom”.

158. O juízo ou a opinião se apresentam como operações da mente (ou alma); a proposição, por sua vez, aparece como um momento objetivo, onde essas con­ siderações psicológicas são desprezadas. /// Há dois níveis aqui, o da alma (juízos) e o das proposições como tais, objetivamente consideradas por sua estrutura. No primerio caso, estaríamos diante do que Quine (1956, p. 177- 87) chamou atitudes proposicionais. Em alguns textos gregos, a palavra áv-úíjxxaiç [proposições contraditórias, par de proposições contraditórias] não aparece, mas sim ówtóíjxxaiç [negação]. É o caso da solução paciana onde a distinção entre os níveis desaparece. // / Quer tenha esse trecho sido agregado por Theofrasto ou não, a sua proximidade com o princípio da contradição em sua formulação na Metafísica é patente. Cf. 1005b 19. Em todo caso, essa é uma das passagens que mais geram diferenças nas traduções. O leitor poderá conferi-lo se cotejar o presente trecho com o de outras traduções. Sobre opostos e contrários, vide Categorias, 11b 17-24.

O livro Da Interpretação, de Aristóteles, é um daqueles peque­ nos textos que conheceram a glória ainda na Antiguidade, seja pelo tema, seja pelo tratamento genial conferido ao seu conteúdo, seja pela concisão, que facilitaria o trabalho de reprodução dos copistas.

Com as Categorias, tratado a que o Da Interpretação segue,1

chegou ao Ocidente pela via latina, e não pelas mãos dos árabes ou pela herança de Bizâncio.2

Poucos autores terão influenciado na recepção de sua própria obra pelos pósteros como Aristóteles. Alexandre Magno, de quem fora preceptor, funda a cidade de Alexandria, cuja importância para a cultura universal é extraordinária, basta lembrar a sua famosa biblioteca.

O romano e patrício Boécio, cujo pai fora administrador do Egito, será um dos grandes tradutores de Aristóteles e entrará em contato com a tradição filosófica grega na cidade de Alexandre. Cogita-se mesmo que aí tenha sido aluno de Ammônio, um dos principais epígonos do Estagirita na Antiguidade e autor de famosos comentários sobre a obra de Aristóteles.

Nascido por volta do ano 480 d.C., Boécio já em 5103 passa a fazer parte do corpo de servidores do rei godo Theodorico, a quem servirá como cônsul e, depois, como ministro no palácio. Desde cedo ele se impôs o dever de trazer para o tesouro da língua latina a opulência literária dos gregos.

1. Até o século XII d.C., Categorias e Da Interpretação eram os únicos tratados do Órganon conhecidos na Idade Média latina.

2. Isaac, 1953, p.15. 3. Id., p. 16.

Com a sua tradução e os seus comentários, Da Interpretação

será difundido no Ocidente. Registra-se, é verdade, uma tradução latina anterior, de Mário Vitorino, que se estima ter sido feita pela metade do século IV d.C.

Acusado de traição, Boécio é preso e passa longo período na

prisão, onde escreve De Consolatione Philosophiae. Seu fim não pode­

ria ter sido mais trágico: foi executado por ordem de Theodorico.

Sete séculos depois, o tesouro Da Interpretação chega às mãos da

cristandade medieval e será matéria de discussões e comentários de Abelardo, Alberto, o Grande, e Tomás de Aquino, entre outros.

A par da sua vida ocidental, Da Interpretação conheceu tra­

duções e comentários hebraicos, siríacos, armênios e árabes muçul­

manos. Avicena, Algazel e Averroès o comentaram. O Comentário

médio, de autoria do último, será traduzido em Nápoles em 1321. De alguma forma, esse ramo oriental também chegará ao Ocidente medieval, a enriquecê-lo.

Outro grande tradutor de Aristóteles, particularmente do

Peri Hermeneias, foi o flamengo Guilherme de Moerbeke, destacado intelectual do século XIII. Em 12 de setembro de 1268, em Viterbo,

ele concluía a tradução do Tratado da Enunciação, um dos nomes

do Da Interpretação, atendendo a encomenda de Tomás de Aquino, que ignorava o grego clássico. Moerbeke, helenista oficial da cúria romana, fora colocado à disposição do Doutor da Igreja, graças ao concurso do papa Urbano IV.4

Porém, o uso do tratado Da Interpretação nas disputas teoló­

gicas já fora inaugurado bem antes por São Pedro Damião5 (1007- 1072), no seu esforço de rebater a perigosa tese de São Jerônimo segundo a qual mesmo a onipotência divina não poderia devolver a virgindade à rapariga deflorada. É verdade que a lógica de Aristóteles e, particularmente, o tratado aqui apresentado pouco poderiam fazer para restituir a inocência à pobre seduzida. Todavia, São Pedro

4. O livro de Isaac detalha a sorte do tratado nas mãos e no entorno de São Tomás. 5. Pier Damiani, apud Isaac, 1953, p.46.

Damião faz referência ao Da Interpretação apenas para descrever as leis lógicas a que estão presos os mortais e para concluir que elas não se aplicam à figura mui poderosa do Deus dos cristãos. O fato é que

sua citação porá, de modo definitivo, o Da Interpretação na tradição

da cristandade do medievo e, assim, a obra se tornará componente essencial dos estudos lógicos e aristotélicos de diversas universidades europeias.

No final do século XVI, precisamente em 1592, vinha à luz a

primeira edição do Órganon com tradução latina e comentários de

Julius Pacius. Trata-se de um trabalho monumental. Pela argúcia de Pacius, pelo seu grande conhecimento do grego e do latim e pelas fontes em que pôde beber na maturidade do Renascimento, o texto grego, a tradução e os comentários de sua edição merecerão sempre ser revisitados.

A presente tradução

Esta tradução foi feita com base em texto estabelecido por L. Minio-Paluello e publicado em 1949, na Grã-Bretanha, em primeira edição e reimpresso em 1966 pela editora da Universidade de Oxford. Consultaram-se também os textos gregos estabelecidos por

Documentos relacionados