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Ser cientista de uma área “impura” da ciência

1. ENTRE PASTORAS COMO “IRMÔ PESQUISADORA

1.4. Ser cientista de uma área “impura” da ciência

“Impuramente acadêmica ou academicamente impura?”, essa é a pergunta que

Pierucci (2002) se faz com relação à Sociologia da Religião, no artigo publicado para a

coletânea “O que ler na ciência social brasileira (1970-1995)”, em que ficaria responsável em

descrever as principais pesquisas em Sociologia da Religião da década de 1970 -1995. Ele

explica que na maioria dos cientistas sociais que estudam religião no Brasil “existe uma especial

dificuldade de decidir até onde, em seu trabalho intelectual, vai a ciência e até onde vem a religião, dificuldade séria de demarcar o contraste com a não ciência, de se demarcar

reflexivamente sabendo onde começa uma e termina outra”. Ocasionando assim uma

dificuldade também aos leitores, de saber se os autores não estariam na verdade falando sobre

si mesmos. “Dilemas que se exponeciam quando o autor se mete a estudar sua própria religião.

O que, aliás, costuma acontecer.” (PIERUCCI, 2002, p. 238).

Além disso, incomoda-o o fato de haver maciçamente, entre os sociólogos da religião,

tolerância a “interesses religiosos” que não são muito claros dentro da academia. Seriam esses

religiosos os cientistas impuramente acadêmicos que se recusam as regras do jogo próprio do campo científico. Essa ligação entre ciência e religião seria perigosa à própria ciência, e principalmente às ciências humanas, pois estas careceriam ainda mais da nitidez dos resultados científicos. Para Pierucci (2002), a ciência deve buscar para si a pureza como ideal normativo

e para salientar com clareza a dificuldade de realizá-la com nitidez e de desvencilhá-la do que não é ciência.

E a conclusão a que o autor chega é que, mesmo após trinta anos de produção dos sociólogos da área de Sociologia da Religião (além de antropólogos, historiadores e outros cientistas da área de estudos sobre religião), ela ainda integra área academicamente impura.

“Não há dúvida, portanto: a locução impuramente acadêmico encaixa-se no domínio brasileiro das ciências sociais da religião como chave na fechadura” (PIERUCCI, 2002, p. 246). A própria

revista “Religião & Sociedade” foi formada por sociólogos da religião que aceitaram o desafio

de fazer uma revista com colaboração e parceria com sociólogos religiosos (2002, p.248)

Pondo as cartas na mesa: sabemos que entre os sociólogos, antropólogos e cientistas políticos que estudaram ou estudam religião no Brasil, há religiosos confessos; sabemos também que muitas vezes as motivações que os levam a “fazer ciência” são de ordem religiosa, quando não claramente pastoral; sabemos ainda, que por trás das motivações de ordem prática que presidem à realização das pesquisas e que geralmente se atribuem às agências eclesiásticas ou a fins que as encomendam, os pesquisadores eles mesmos são portadores de interesses ideais que não são cientificamente orientados. Interesses religiosos, digamos a palavra (PIERUCCI,2002, p. 246)

Prova da “mistura” em que a revista citada acima estava metida foi o vivo entusiasmo

em que sociólogos demonstraram pelo “retorno do sagrado” ao fim da década de 1970, contrapondo-o à inevitabilidade do fim da religião promovido pela secularização.

Segundo a análise de Pierucci (2002), a produção acadêmica sobre religião se apresenta nas décadas de 1950 e 1960, marcadamente na produção de textos sobre religião, ligados ao tema da perda da hegemonia da Igreja Católica, tanto em fiéis quando no clero (p. 255-257). “Eu diria que a Sociologia da Religião em seu primeiro desenvolvimento no Brasil é majoritariamente sociologia do catolicismo, não porque o catolicismo é a religião majoritária,

mas é porque nesse momento suas elites têm necessidade pastoral de sociologia” (PIERUCCI,

2002, p. 257)

Após esse momento, e ocorrendo os declínios da prática da religião católica no Brasil, ter-se-iam provas para legitimar a teoria da secularização.20“A situação social do catolicismo institucional, em ritmo acelerado e perda de espaço, de prestígio, de certezas e de rumos, não

podia ser mais própria, mais adequada, mas encaixável na teoria” (PIERUCCI, 2002, p. 259).

20

Teoria da secularização é a teoria que compreende que estaríamos vivendo na Modernidade um crescente declínio da religião, até que esta não existisse mais. É a fase da história humana do “desencantamento” do mundo, retratados por Nietzsche (1844-1900) e Weber (1864-1920). Sobre esse tema ver “O desencantamento do mundo” de Flávio Pierucci.

Assim, a partir da década de 1970, a Sociologia da Religião se torna então plural, abrangendo sociologia das religiões.

Pierucci (2002) se refere também ao artigo escrito por Rubem Alves, em 1978, no qual

afirmava “a volta do sagrado” e nova esperança aos estudiosos (e religiosos) da área. O retorno

do sagrado seria celebrado então e seria o mote das pesquisas, a partir da década de 1970 em diante.

Faz mais de vinte anos que os cientistas sociais da religião, nos menos sinais que repontam de sobrevivência do espírito religioso ou da persistência do sagrado, presságios benevolentes de ressurgência antes de mais nada da própria religião que professam, que via de regra costuma ser uma das variantes do cristianismo, mas também das outras, indiferenciadamente. Parecem não se dar conta de que um bom futuro para todas as religiões implica, logicamente, alguma diminuição do valor de cada uma delas (PIERUCCI, 2002, p. 264)

A Sociologia da Religião no Brasil, portanto, é vista como uma ciência impura por ser

feita ou por religiosos ou por “nativo” de alguma religião. “Por fim, o atual panorama cultural

brasileiro, em matéria de religião, está mais ou menos assim: em primeiro lugar, a conflitualidade aumentada, reforçada com a possibilidade concreta de adesões voluntárias, defecções e conversões, reconversões, desconversões, de trânsito religioso enfim banalizado,

sem escândalo, sem vergonha; em segundo lugar, o conflito em nível macro, redimensionado”

(PIERUCCI, 2002, p. 273).

Por isso que realizar um estudo dentro deste campo é também entrar nas questões que envolvem a construção do conhecimento científico nas ciências sociais. Pois essa área sempre está se debatendo para se afirmar com relevância entre as ciências humanas. E é por existir essa linha distinta entre os ideais científicos e os ideais religiosos que Pierucci (2002) insistiu em denunciar o eterno trânsito no Brasil “trazendo perigo” à própria noção de ciência. Apontamentos sobre esse tema serão feitos a seguir.