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Seria Penélope mais astuta que Ulisses?

4. A TRAMA DE PENÉLOPE

4.4 Seria Penélope mais astuta que Ulisses?

Ulisses é reconhecido na Odisséia como grande estrategista. Vale lembrar que, na Ilíada, é ele quem sugere uma forma de vencer a guerra, depois de os gregos serem arrasados em batalha. Kohler (1997), citando o ensaio de Gabriel Audisio (1946) intitulado “Ulisses ou a inteligência”, mostra como Ulisses é o único dos heróis homéricos a receber qualificativos que definem uma inteligência elevada. Só a ele são atribuídos adjetivos que o diferenciam de outros heróis homéricos. Tomemos os três mais importantes, conforme Kohler: polymétis, polytropos e polyméchanos:

A métis que sob a forma divina, é mãe de Atena que tem por pai Zeus, é a faculdade de apreender rapidamente uma situação e adaptar-se a ela (p.899). Essa qualidade caracteriza tanto a invenção do artesão quanto a capacidade de desviar-se do perigo. Os tropoi e os mechanai são “engenhos”, no sentido antigo da palavra, equivalente a sagacidade, artifício, esperteza, astúcia, que a métis de Ulisses, pronta para captar o real, utilizará para vencer a dificuldade, seja desvendando-a, seja contornando-a. Como desvio, a métis é recuo, tempo de reflexão” (p. 899).

A “astúcia” de Ulisses, fruto de uma inteligência agenciada pela métis, permite o engenho, a capacidade de inventar estratagemas para superação das dificuldades. O verdadeiro poder de Ulisses consiste em saber manipular os discursos. Ulisses tem consciência do poder das palavras que, através do discurso, engendra mecanismos de poder, na medida em que nele se articula significações forjadas, operando assim formas de domínio eficazes. “Ulisses é sempre apresentado como o campeão vitorioso do partido da inteligência” (KOHLER, 1997, p. 899).

Se na Odisséia, Ulisses é o “astuto”, o “guerreiro solerte”, o “nobre” o “engenhoso”, é preciso lembrar também que Penélope é sempre precedida por adjetivos, a exemplo de, “sensata”, “prudente”, “ajuizada”, qualificativos de seu caráter elevado.

No poema “Os argonautas”, Penélope e Ulisses aparecem posicionados a partir do binômio “tecer” e “partir”. Ao colocar em dúvida a grandeza da “astúcia” de Ulisses frente a seu ato, Penélope põe em questão não só um atributo do herói mas toda a relação dicotômica estabelecida entre homens e mulheres. A partir dessa “astúcia”, questiona-se toda a primazia da razão (ligada à métis), sempre voltada para o homem, convencionalmente muito mais ligado à política, à arte, às letras, e voltado, sobretudo, para o espaço público.

A ironia interrogativa de Penélope frente a Ulisses corrói pela dúvida o seu lugar de herói e seus feitos, em contraposição ao solitário ato engendrado nas sombras pela trama do bordado que Penélope tece e destece:

Há os que partem E os que tecem,

Na urdidura das sombras É Penélope

Mais astuta que Ulisses? (FRAGA, 2008, p. 238)

Ulisses, no texto da poeta baiana, continua sendo o “astuto”. Mas a imagem do herói grego que sabia superar situações difíceis pelo manejo dos discursos é posta em xeque pelo questionamento do atributo que o qualifica. Ao questionar se “É Penélope / Mais astuta que Ulisses?”, ela desestabiliza a representação do herói grego dentro de seu próprio lugar.

O ato heróico de Penélope afrontando as circunstâncias que a atravessam só pode ser reconhecido por ela. É em torno dessa nova leitura do heroísmo que, no poema “Os argonautas”, Penélope lança uma interrogação:

Quem dirá na surdina Do heroísmo dos pontos, O selvagem pontear Das agulhas na carne? (FRAGA, 2008, p.238)

Reclusa em sua atividade, apenas ela pode reconhecer a dimensão heróica do seu ato valorizando-o. “O selvagem pontear”, as “agulhas na carne” apontam para a condição de quem tece, das circunstâncias do tecer, do ato heróico travado contra o tempo e contra a solidão no espaço fechado da casa, onde o tear está montado. Qual seria a história de Penélope senão a dos pontos feitos e desfeitos? Sua história heróica é, portanto, a que não poderá ser cantada por um aedo.

A estratégia do tecido de que Penélope faz uso opõe-se à estratégia de outras personagens que aparecem nos versos de Os Deuses Lares. No “Canto 6”, Penélope aparece destecendo as estratégias de sobrevivência dessas personagens e, de certa forma afirmando o meio escolhido por ela para driblar os desafios que encontra.

Penélope faz referência a duas delas: Circe, a feiticeira que transformou os companheiros de Ulisses em animais para seu jardim, e as Sereias, monstros femininos com vozes irresistíveis que seduziam os marinheiros cantando para devorá-los. Essas duas personagens aparecem sendo desmanchadas no bordado de Penélope:

(...)

Porisso

mais que perfeito traço e desfaço

o perfil das sereias e Circe, com seus filtros,

– lã vermelha e azul sobre o traçado – , um Polifemo risonho e infantil

com seu olho bordado.

E Circe com seus sumos, seu tropel de encantados, e a voz, a voz, a voz...

Meus venenos eu faço destes cuspes, desta saliva amarga, desses fusos – roca e roca – Porisso vivo do que tenho: um oco no vazio, um poço, um túnel. O lado escuro do avesso, o sem avesso. (FRAGA, 2008, p. 334 - 335)

A Penélope fragueana não se vê representada como mulher nas imagens de Circe – “com seus sumos”– ou das Sereias presentes no texto de Homero. Suas estratégias de reivindicação e/ou de construção de “si” são outras. A imagem lúdica do ciclope Polifemo “com seu olho bordado” aparece no tecido de Penélope contrabalanceando sua ação “amarga”, engendrada na trama de sua própria existência. Ao contrário da feiticeira Circe, que com suas poções feitas de ervas e substâncias secretas envenenava

os homens transformando-os em animais para o seu jardim, Penélope assume outra postura. Seus venenos são feitos de cuspe, uma “saliva amarga” que se acumula na boca – metáfora para o inconformismo – enquanto manipula os fusos e a roca do tear, tecendo e destecendo pensamentos sobre sua vida.