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O Mito da Serpente e a Deusa Mãe

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CAPÍTULO I – O DOMÍNIO DA GRANDE MÃE: A DEUSA SERPENTE COMO METÁFORA SIMBÓLICA DO SAGRADO FEMININO

1 SAGRADO FEMININO E OS PRIMEIROS VESTÍGIOS DA DEUSA MÃE

1.2 O Mito da Serpente e a Deusa Mãe

A ideia da simbologia do mito da Deusa Mãe pode ser entendida como uma forma de narrativa de uma criação, um relato no qual se conta determinado fato a partir do momento em que ele surgiu, ou mesmo uma poesia da criação. Esse fato é um relato ocorrido, contém personagens sobrenaturais de uma cultura cuja realidade é complexa; ocorreu num tempo primevo, expressando a cosmovisão de um determinado grupo, seu Ethos coletivo e as concepções de tempo/espaço, da natureza, do ser humano e da sociedade nos seus aspectos sagrados e profanos. Nesse sentido, Eliade (2007, p. 11) afirma sobre o mito: “ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu,

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“Un serpente che si avvita verticalmente simbololeggiava la forza vitale in ascesa, concepita come uma colonna di vita Che sorge dalle caverne e dalle tombe e costituiva um símbolo intercambiabile com l’albero di vita e il midollo spinale”.

do que se manifestou plenamente”. O mito fala de fragmentos da cultura na qual estão submersas expressões simbólicas que se transfiguram e assumem uma dimensão estética. Com olhar semelhante, Brandão (2009 I, p. 37) afirma, nessa acepção, que o mito

é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos dos princípios, illo

tempore, quando, com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade passou a

existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão somente um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um comportamento humano.

Acreditando na recuperação dos símbolos, imagens e mitos entre as manifestações do espírito humano que auxiliam na transformação e no processo evolutivo do humano, Croatto (2001, p. 200) sintetiza a opinião de Eliade e afirma que “as imagens e os símbolos podem dizer mais que as palavras, e que os mitos não morrem”. Continuando, ele sustenta que “o mito revela de alguma maneira a experiência do objetivamente transcendente. O mito descobre uma realidade ontológica inacessível à experiência lógica superficial”. Nesses estudos, Croatto (2001, p. 202) observa que Eliade ressalta a íntima solidariedade do ser humano com o cosmo ao dizer que:

O simbolismo religioso – a linguagem dos mitos – descreve uma situação humana com termos cosmológicos e vice-versa; mas precisamente revela a continuidade entre as estruturas da existência humana e as estruturas cósmicas.

Entendida como narrativa na ordem literária, a poética do mito flui na ampliação do seu dizer algo sobre alguma coisa, na qual relampeiam imagens com inversões de sinais do imaginário do universo primevo. A palavra mito deriva do grego como mythos e do latim como mythu, que é afirmado por Reimer (2009, p. 20): “Mitos pertencem à ordem literária. São narrativas hermeneuticamente construídas. Podem ser orais ou escritos. [...] Na origem da maioria dos mitos, deve-se considerar a oralidade como modo originário da transmissão”. Na tradição oral, sempre é possível uma nova narrativa como forma de intervenção social, é sempre algo novo que vai ser colocado mediando e reunindo a comunidade.

O sentido do mito pode significar o que não possui realidade, pode expressar o pensamento em sua comunicação, como pode representar personagens ou narrar fatos reais em dramas que remetem à memória de fatos relevantes. Sua narrativa possui um significado simbólico, no entanto, o mito não tem por desígnio de que algo aconteça, mas sim o deleite do mistério da fruição de algo a que denominamos estética. De acordo com Chevalier (1991, p. 611):

Outras interpretações, à maneira de Evêmero (séc. IV a.C.), viram nos mitos uma representação da vida passada dos povos, sua história, com seus heróis e suas façanhas, sendo de alguma maneira reapresentada simbolicamente ao nível dos deuses e de suas aventuras: o mito seria uma dramaturgia da vida social ou da história poetizada.

O mito interliga elementos comuns de um fio tecido na dimensão do devir e desperta um sentido para a existência humana, assim como a construção de sistemas explicativos da origem dos seres e das coisas, na busca angustiada do significado do viver humano. Considerado como uma ‘filosofia poetizada’, o mito, “para Platão, era uma maneira de traduzir aquilo que pertence à opinião e não à certeza científica” (CHEVALIER, 1991, p. 612). Continuando, Chevalier (1991, p. 612) afirma que: “Sejam quais forem os sistemas de interpretação, eles ajudam a perceber uma dimensão de realidade humana e trazem à tona a função simbolizadora da imaginação. Ela não pretende transmitir a verdade científica, mas expressar as verdades de certas percepções”. A sua verdade está no seu modo de ser, não de provocar e, como uma função referenciada da linguagem, o mito representa o processo de comunicação na passagem do antropológico para o poético, que é ressaltado nas artes como estética sagrada.

É, pois, através de uma linguagem que o mito se configura no mundo como texto da manifestação divina, sendo reflexo de uma articulação essencial, que não se exprime por palavras. A linguagem é uma ciência e, como tal, exige um esquema de comunicação, que, de acordo com Nunes (2011, p. 74): “Há um emissor de signos e há um receptor, abstratamente isolados. Mas tanto o emissor quanto o receptor não são apenas sujeitos, mas também interlocutores. O fenômeno de se poder falar um ao outro seria uma condição transcendental”. A linguagem simbólica corresponde à estrutura do mundo e possui um poder que está além da simples descrição e diálogo entre quem emite e quem recebe a mensagem e a decodifica.

Nas artes, o mito possui uma linguagem de elementos e códigos que dialogam entre o real e o imaginário do coletivo na performatização do sagrado em atos ritualísticos. Esta linguagem simbólica e codificada, quando deixa de representar o funcionamento dos códigos sociais, provoca uma mudança na dialética da sua função social; ao se reportar à extinção de símbolos de uma cultura, bem como ao aniquilamento do mito da criação como a força ctônia da Deusa Mãe, Silva (2007, p. 67) diz que: “Os mitos helênicos, tal como costuma fazer o colonizador, transformaram em monstro as divindades femininas minoicas, como parte do combate cultural que o simbolismo celeste desenvolvia contra o simbolismo ctônio”. Nesse

sentido, observa-se que, quando um mito fundante de uma sociedade é enfraquecido nas suas expressões e bens simbólicos e destituído dos valores fundantes dessa cultura, ele deixa de estruturar e construir os códigos sociais, como ‘sentido’ de realidade para essa sociedade.

Ao se distanciar da consciência coletivizada, o mito transforma-se na expressão do sensível com uma linguagem poética que re-evoca a coreografia do si mesmo, como uma expressão epifanizada. Por narrar uma passagem, a primeira coisa que aparece no mito é a sua condição literária, e Capel (2009, p. 150) afirma que: “Mitos são composições dramatúrgicas de símbolos, possuem força arquetípica, possibilitam a análise dos elementos históricos relacionados à economia, política, à religião dos povos em que está relacionado”. Continuando, conclui que “[...] mitos são narrativas e, por esse motivo, favorecem as discussões sobre o ofício de historiar, representar o passado, interpretá-lo de forma não empática, mas com olhar e as preocupações do presente”. O mito, como referência histórica, é sujeito a interpretações subjetivas relacionadas às realidades vividas.

A peculiaridade desses eventos ocorre quando a ideologia vigente se une para derrubar o que representa um poder que não pode mais ser exercido e precisa ser banido do espaço sagrado, eliminando a epifania do imaginário popular, deixando limitada sua linguagem expressiva, assim como o sentimento expresso pelo sagrado que se reevoca de uma sensibilidade estética.

O escuro e a quietude vazia de uma memória atávica remetem-se ao espaço ideal para o imaginário do impulso primevo do qual surgiu a vida e as origens primordiais. A história da criação e do Mito da Serpente é narrada em diversas culturas e povos da antiguidade, em algumas é conhecida como Gênesis, ou seja, a semente a partir da qual toda a criação se originou.

De decisões súbitas e metamorfoseantes, ela aparece tanto como manifestação telúrica quanto cósmica e se transforma com as polaridades gêmeas em si mesmas. Em sua expressão visível na terra, assim ela é definida por Chevalier (1991, p. 814): “Ela não passa de uma linha, mas uma linha viva; uma abstração, [...] uma abstração encarnada. A linha não tem começo nem fim; é só movimentar-se para tornar-se suscetível a todas as representações, a todas as metamorfoses”. Como reservatório de latências telúricas e subjacentes à terra, a qual se origina suas manifestações ctônias, conclui sua definição: “A serpente é uma hierofania do sagrado natural, não espiritual, mas material” (CHEVALIER, 1991, p. 815). Ela é encontrada em muitas culturas como símbolo de poder e de energia vital, sendo reconhecida como símbolo da Deusa Mãe, ou síntese do poder ctônio e telúrico.

No plano humano, encontra-se como representação do arquétipo da alma e da libido; como manifestação no mundo terreno, imagina-se na sua intemporalidade cósmica e telúrica que ora se manifesta feminina (seduz, se enrosca, engole e digere), ora irrompe com os ímpetos masculinos, sendo objetiva e fálica. Partindo desse pressuposto, Chevalier (1991, p. 815) diz que: “A serpente não apresenta, portanto, um arquétipo, mas um complexo de arquétipos ligado à noite fria, pegajosa e subterrânea das origens: todas as serpentes formam, juntas, uma única multiplicidade indivisível que não cessa de desenroscar-se, desaparecer e renascer”. A serpente pode ser considerada uma epifania do imaginário que encena seu próprio ato e caminha paralela ao seu jogo surreal, que fascina e revela sua configuração funcional.

Nos mais distintos níveis de existência ocorrem tensões entre a vida e a morte. Tratando-se de forças opostas que coexistem numa relação simbólica na qual, por um lado, tudo que é vivo está fadado ao fim concreto e, por outro, encontra-se a vida que renasce ciclicamente. Nascimento e morte, como um “Mistério não desvelado” encontra na figura da Serpente esta ambiguidade, quer como símbolo, mito ou mesmo como uma alegoria ou metáfora simbólica. Ela sempre está relacionada não só ao mistério da vida, como também ao renascimento e aos caminhos trilhados de forma sinuosa encontrados no corpo da Deusa.

As deusas e suas representações relacionadas à morte aparecem desde tempos remotos, visto que a arqueologia e a estética sagrada mostram essa relação entre a Serpente, a morte e o renascimento, que se deve à troca cíclica da pele. Quando encerra seu ciclo, a serpente despe- se da sua pele e inicia a nova jornada sem perecer: ela é jovem novamente, está pronta para mais um vir-a-ser.

A serpente é, pois, um mito e um símbolo de poder, do mistério da vida e da morte. Ao surgir como vida brotando da Mãe-Terra, que nasce para mais um ciclo da jornada da vida, deixa a sua pele como demonstração do seu poder de autorregeneração. Apesar do seu caráter fálico, ela representa o feminino potente, é encontrada em muitas culturas como símbolo de poder e de energia vital, e reconhecida como símbolo da Deusa Mãe, ou síntese do poder ctônio e telúrico.

Por sua representação, o Mito da Serpente possui uma aparência estetizada de valores plurais, como uma mimese do fluxo da vida que ocorre na dramaticidade cênica decorrente da função simbolizadora e da linguagem expressiva que lhe confere um caráter poético.

Remanescente de heranças e tradições arcaicas, a mitologia de diferentes povos narra um mito da criação que está relacionado aos fenômenos celestes, e fala de uma dança cósmica

sagrada entre um ser alado e a serpente, sendo que desse colóquio amoroso nasce o ovo da criação. O ovo é um símbolo do mito da criação que representa seu grande mistério e está presente desde tempos imemoriais em antigas culturas e civilizações.

Maclagan (1997) apresenta, em ilustração antiga, o mito da criação do mundo, a lenda de Fanes/Dionísio, que nasce do ovo prateado do Cosmo. Nesta figura (28), encontra-se a serpente enroscada de forma espiralada no ovo, e este sinal é a representação do Tempo como limite do mundo criado. O ovo, ao explodir, separa e divide o cosmo em um mundo superior e um mundo inferior, representando o espaço sagrado nos dramas e mistérios que reflete e revela a linguagem oculta de mitos arcaicos. Da explosão do ovo, surgem os contrários e complementares que vivificam o tempo, o espaço e toda a criação.

Figura 28 - O Ovo e a Serpente. (MACLAGAN, 1997, p. 16) 

A figura nascida da explosão do ovo de prata é o Eros que surge, sendo ele o primeiro nascido; nele estão contidos princípios do Sagrado Feminino, que se expressam como sinais sagrados e a sua memória ancestral permanece nos costumes e no inconsciente coletivo da humanidade. Os sinais que se configuram com a explosão do ovo e da serpente são considerados partes da trajetória da serpente, com a sua diversidade de caminhos sagrados, como explica M-GWosien (2002, p. 15): “São estes os sinais da trajetória da serpente da luz e seu caminho bipartido no decorrer do ano, ligando o de cima com o de baixo”, conforme demonstra na figura (29) abaixo.

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Figura 29 - Sinais do caminho da serpente. (M-GWOSIEN, 2002, p. 15)

Como sinais, essas variantes do espaço são elementos essenciais para designar os símbolos do caminho como ordenador de comportamentos e do devir que vai ao encontro do centro do universo, da fonte sagrada da criação. Nesse sentido, conclui M-GWosien (2002, p. 15) que: “Variantes dos signos para a união do céu e da terra, que foram separados no mito da criação e se repetem anualmente como metáfora cósmica, são também os motivos básicos da dança de roda e das formas de seus movimentos e de seus passos”. O cenário virtual é o espaço quimérico no qual se constrói cenicamente a função da ação performatizada, e os sinais da serpente no espaço sagrado correspondem à sua atuação como caminhante do Cosmo Celeste.

Esses sinais simbolizadores da Serpente Celeste são retratados com acentuação poética e representação encantada de seus mitos e lendas ao narrar a imaginação configurada de uma cultura que, em alguns casos, se traduz em regulações sociais aceitas no seu não existir. As imagens primevas da serpente, bem como a sua simbolização como ambiguidades e mudanças performativas, demonstram um diálogo entre a força ctônia da serpente e a sua elevação da consciência, como pássaro peregrino que voa em busca da luz.

A imagem do pássaro com asas negras é comum em antigas lendas da Deusa Mãe e associado às deusas, tanto da criação como da morte. Devido à sua aparência encurvada, sua força e energia metamorfoseante, ela passou para o folclore europeu como a “bruxa” nos contos de fadas. Em estudos arqueológicos, imagens semelhantes foram encontradas em diversos santuários pesquisados por Gimbutas (2008), e apresentam enorme relevância simbólica. Seu corpo possui inscrições diversas, como linhas, labirinto, zig-zag, pontos, além de nariz, olhos e boca, entre outras características. Interpretando o mito, diz M-GWosien (2004.b, p. 18): “A deusa-pássaro, enquanto representação da grande mãe tem no seu negro corpo da ‘noite primeva’, o fogo primordial que dá a luz a toda criação”. A figura do ‘pássaro negro’ é parte do acervo de Gimbutas (2008) e foi encontrado na região da Bulgária, sendo

sua datação de 5000-4500 a.C.; seu corpo é negro com desenhos na cor branca, e sua altura é de 13 cm.

Figura 30 - Deusa Pássaro: Estatueta vinca com máscara de coruja e asas. O desenho tem incisões e incrustações em branco no corpo preto e alisado. Gradesnica, Noroeste da Bulgária; nordeste. 5000-4500 a.C. (GIMBUTAS, 2008, p. 194)



Desde a pré-história, a Deusa Pássaro Coruja é considerada uma divindade que anuncia a morte, cuja crença é encontrada no imaginário popular em diversos países da Europa, que é afirmado por Gimbutas (2008, p. 190): “Para os egípcios, a coruja era o hieróglifo da morte. [...] Segundo muitos escritores de épocas posteriores, a coruja era ameaçadora, abjeta, desprezível, e odiada por todos os outros pássaros54”. No imaginário artístico, existem muitas lendas que permeiam sua composição estética. Esse imaginário referente à Deusa Coruja, que emergiu no Neolítico, se fortaleceu e foi muito significativo por toda a Idade do Bronze.

A Deusa Coruja é ricamente representada nessa estatueta vinca (figura 30); sua cor é negra com incisões e as incrustações em branco formam desenhos labirínticos na região do

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“La civetta era il geroglifico della morte per gli egize. [...] Secondo molti scrittori d’epoche posteriori la civetta era malaugurante, abietta, spregevole e odiata da tutti gli altri uccelli”.

ventre, sendo estes sinais representações da força ctônia da Deusa Mãe pré-histórica. Seus braços, apenas um apêndice dos ombros, demonstram a possibilidade do voo; seu rosto é uma máscara de coruja.

Denotando uma dimensão lírica na construção da mitologia criada em torno da Deusa Mãe, encontra-se um poema que fala do amor como o mito da origem da criação, que assim é interpretado por M-GWosien (2004.b, p. 18): “O ser humano traz dentro de si a memória de suas ‘origens primevas’, que é o seu nascimento que se deu pelo amor da deusa mãe. Phanes /Eros nos faz recordar que é o amor que nos inicia no caminho da criação de uma nova consciência e nos impulsiona a atravessar limites”. E assim M-GWosien (2004.b, p. 21) sistematiza fragmentos do poema e conta a sua versão sobre este mito arcaico, que é similar ao anterior:

Outro mito fala da ‘noite primeva’, um imenso pássaro com asas negras, que reinava solitária na escuridão e que foi cortejada pelo vento. Em seguida, ela gerou no seio da sua escuridão um ovo resplandecente, a lua prateada. Desse ovo saiu Phanes, o “profeta”, também chamado de Eros, deus do amor. Foi ele que trouxe à luz tudo aquilo que estava escondido até então no ovo prateado – e isto foi o mundo inteiro: em cima o infinito do céu, embaixo o vazio. Phanes foi o mais belo entre os deuses imortais. Foi ele que viria a dominar o espírito de todos os deuses e homens e colocar o universo em movimento. Phanes/Eros tinha asas douradas, era bissexual e tinha quatro cabeças. Às vezes urrava como um leão ou touro ou berrava como um carneiro, outras vezes silvava como uma serpente. Assim ele anunciava os deuses de um novo mundo.

O ovo, a partir da concepção abstrata da cosmogonia arcaica, foi associado à ideia da criação, e o seu simbolismo representando o estado primordial e inativo das coisas, o caos inanimado que precede o início da vida. A correlação ovo-serpente é transmitida em muitos mitos da criação do mundo antigo, dos mitos indianos, aos mitos da África Negra, do Oriente e de Creta, os quais possuem uma particular compreensão da realidade, que ilustram não só o caminho sinuoso da serpente em forma de espiral e labirinto, como também desenhos referentes ao simbolismo de um imaginário centrado na Deusa Mãe.

 

1.2.1 As Máscaras da Deusa na Polissemia da Serpente

Exterior ao mundo da cultura, a Deusa Mãe também se manifesta em forma de animal, ‘A Senhora dos Animais’, e governa este mundo instintivo e de pulsões no qual predominam os impulsos e atividades sujeitas aos interesses convenientes. Essa expressão simbólica da Deusa Mãe, de acordo com Neumann (1999, p. 237): “Está próxima da natureza humana

selvagem e primitiva, do ser que se encontra à mercê dos instintos e pulsões selvagens que convivia entre os animais predadores e as feras, entre as plantas silvestres que crescem em liberdade”. Em relação ao paralelo que o homem faz de si e da natureza, o significado cultural do Sagrado Feminino demonstra o poder deste e o domínio que exerce sobre a humanidade e a natureza.

Aprofundando no significado e abrangência da simbologia e ritualística do Mito da Serpente, encontra-se uma multiplicidade de interpretações advindas do mesmo objeto, o qual se denomina polissemia. Este é considerado um termo que identifica diversos significados e possibilita incontáveis interpretações, sendo estas de acordo com as crenças e o paradigma cultural nos quais o mito se insere numa determinada realidade social, e assim é explicado por Silva (2007, p. 18): “Dizer que o mito é polissêmico não tem um valor quantitativo, simples indicador de plural, mas, sim, que ele tem sempre um significado maior e mais amplo do que cada um de nós é capaz de perceber a cada momento”. Polissemia é um termo utilizado com múltiplos sentidos e considerado como meio de expressão que pode promover uma alteração semântica. E para se compreender melhor a polissemia do mito, recorre-se aos pressupostos de Silva (2007, p. 18) que afirma:

É verdade que o mito traz uma informação histórica, mas é uma informação sempre imprecisa, dado o caráter simbólico e polissêmico do mito, cujo compromisso não é com o fato, com a realidade objetiva, mas com o que é culturalmente importante

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