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2 CAIO A OBRA COMO EXPERIÊNCIA COLETIVA REVELADA NA ESCRITA

3.3 Identidades de Gênero

3.3.1 Sexualidade e reprodução

Na cultura ocidental, costuma-se associar a ideia de sexualidade à de gênero, como se a definição de uma dependesse da outra. Isso talvez possa vir a justificar o porquê de se classificar indivíduos que mantêm relações sexuais e/ou afetivas com outros do mesmo sexo como „homossexuais‟, uma categoria que remete imediatamente, no imaginário ocidental, à ideia de doença, perversão ou anormalidade, semelhante à associação feita ao uso do termo Queer.

Isso porque, para a maior parte das pessoas na cultura atual, a heterossexualidade, ou seja, a atração erótica entre indivíduos de sexos distintos é vista como algo „instintivo‟, considerado „natural‟ ou „normal‟ da espécie humana, com vistas à autoperpetuação pela reprodução.

Nesse caso, sexo e reprodução são, portanto, vistos nas sociedades ocidentais como intrinsecamente relacionados entre si, pois se considera a reprodução como envolvendo apenas os dois indivíduos de sexos diferentes, que se relacionaram sexualmente, com o objetivo exclusivo de dar continuidade à espécie.

No entanto, com o surgimento das „novas técnicas de reprodução‟ desenvolvidas pela ciência, no final do século XX, a crença de que a reprodução era um „dom de Deus‟, ou regra divina a ser seguida, fruto do intercurso sexual natural entre um homem e uma mulher, foi duramente abalada pela concepção inovadora apresentada pela ciência que desvinculava, portanto, a sexualidade da reprodução.

Diante desse novo contexto conceitual, inicia-se um novo debate sobre „heterossexualidade‟, baseado, não mais, na necessidade da reprodução da espécie humana, mas no desejo sexual como característica masculina e feminina, a busca pelo prazer, principalmente, quando se trata do prazer feminino, antes visto como perigoso e patológico praticado com um único objetivo, o de procriar.

Com isso, os desejos e prazeres sexuais passaram a ser vistos pelos sujeitos de várias maneiras. Nessa nova perspectiva, identidades sexuais foram construídas pelo modo como os sujeitos lidam com sua sexualidade ou pela forma como se relacionam com parceiros/as do sexo oposto, do mesmo sexo, ou de ambos os sexos. Ainda nesse sentido, ou de modo semelhante, os sujeitos construíram suas identidades de gênero, identificando-se social e

historicamente como masculinos ou femininos. Obviamente, as identidades sexuais e de gênero, embora associadas, são diferentes:

Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais [sadomasoquistas, pedófilos, zoófilos, etc.] (e, ao mesmo tempo, eles também podem ser negros, brancos, ou índios, ricos ou pobres etc.). O que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do gênero como na dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento (LOURO, 1997, p. 27).

Tanto as identidades de gênero quanto as identidades sexuais estão sempre em construção, em transformação contínua, articulando-se com experiências cotidianas atravessadas por influências e práticas ligadas ao pertencimento étnico, social, de classe, raça, e outros. De acordo com Britzman (1996, p. 74, apud LOURO 1997, p. 27),

[...] nenhuma identidade sexual – mesmo a mais normativa – é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação ou construção. Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada (grifos da autora).

Por volta do final da década de 1960, mais especificamente, a partir do ano de 1968, se constituíram e se fortaleceram movimentos contemporâneos em defesa dos direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos estudantes, e de outras categorias. Nesse período, algumas articulações foram estabelecidas entre teoria feminista e teorizações pós- estruturalistas. Essas articulações mantêm pontos de convergências ao mesmo tempo em que apresentam pontos de divergências, sendo algumas ideias assumidas por um grupo de teóricas feministas e rejeitadas por outras. Desse modo:

Expressando-se de formas diversas, por vezes aparentemente independentes, feminista s e pós-estruturalistas compartilham das críticas aos sistemas explicativos globais da sociedade; apontam limitações ou incompletudes nas formas de organização e compreensão do social abraçadas pelas esquerdas; problematizam os modos convencionais de produção e divulgação do que é admitido como ciência; questionam a concepção de um poder central e unificado regendo o todo social, etc (LOURO, 1997, p. 29).

Os teóricos pós-estruturalistas propõem a desconstrução das dicotomias argumentando que, nesse jogo de duplicidade, os polos são plurais, fraturados e divididos internamente e que um pólo contém o outro e vice-versa, o que contribui com a criação de uma estratégia subversiva para o pensamento contemporâneo sobre a rigidez dos gêneros. Isso significa que

o pólo masculino contém o feminino e este, o masculino. Pode-se pensar, também, no sentido de que não existe somente um homem, mas diversos homens que diferem entre si em muitos aspectos.

Quebrado o status quo da vinculação da sexualidade à reprodução e agora, admitida a prática sexual, na tentativa incessante do prazer, independe de como era alcançado, não cabiam mais as argumentações infundadas, impostas pelas regras „heteronormativas‟ de que as práticas sexuais só poderiam ser consideradas adequadas e próprias à espécie humana, quando praticadas por indivíduos de sexos opostos.

As novas concepções sexuais e as novas alternativas para à reprodução humana reveladas pela ciência deram início, nos anos da década de 1960, ao período de grande questionamento sobre a sexualidade. Entre os inúmeros movimentos sociais que despontaram nesse período, dois destacaram-se particularmente, o movimento feminista e o movimento gay, porque ambos passaram a questionar as relações afetivossexuais no âmbito das relações íntimas do espaço privado.

As lutas desses dois movimentos alcançam tamanha importância, que chegaram também, a ser discutidos dentro do universo acadêmico e isso se deu, principalmente, por dois motivos: porque a Universidade sempre representou um lugar de produção de conhecimento fortemente influenciada pelas lutas sociais e porque se iniciou, então, um movimento, no interior de diferentes disciplinas, em busca de se encontrar o lugar das mulheres e das minorias, até então invisíveis no universo acadêmico, mas que faziam parte dos núcleos intelectuais.

Curiosamente, o campo de estudos que, atualmente, chama-se, no Brasil, de gênero ou relações de gênero, surgiu nos anos 1970-1980, em torno da problemática da condição feminina. Os primeiros estudos iniciaram-se com a tese defendida por Heleieth Saffioti no final dos anos 1960 intitulada „A mulher na sociedade de classes‟, que tinha como preocupação principal entender a opressão sofrida pela mulher nas sociedades patriarcais.

Um dos livros que influenciou muito a autora citada, ligada ao marxismo, foi o de Engels (2002) chamado: „A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado‟, no qual ele defende que a mulher foi a primeira propriedade privada do homem, transformando as relações sociais, inicialmente sob o domínio do matriarcado (ou seja, do poder das mulheres),

para o patriarcado, que seria o poder dos homens. Datam desse período, inúmeros estudos preocupados com as mulheres em situação de dupla opressão, de classe e de sexo.

Curiosamente, as propostas com as quais se organizaram as obras de Caio foram justamente as representadas pela trajetória, também de dupla opressão, de classe e sexo, só que, nesse caso, a preocupação era com o sujeito homoerótico na sociedade brasileira. Esse fato resultou na multiplicação dos estudos críticos sobre o assunto, especialmente nas últimas décadas do século XX, motivados pelas correntes do pós-estruturalismo, sobretudo o feminismo.

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