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II. REFLEXÕES SOBRE O TEMA MEMÓRIA

II.1 Significados e apontamentos sobre modos de evocação

Quando pesquisamos sobre memória, encontramos diversos autores que a abordam de maneiras diferentes. Também são encontrados muitos estudos acerca de seu funcionamento, sobre como ocorre o armazenamento das lembranças, como elas são evocadas, etc. Como nos diz Jonathan K. Foster,

Desde o período clássico, foram criados diferentes modelos do funcionamento da memória. Por exemplo, Platão a via como uma tabuleta de cera na qual impressões podiam ser feitas, ou codificadas, que seriam depois armazenadas, para que mais tarde fosse possível voltar a elas (ou seja, as memórias) e evocá-las. Essa distinção tripla entre codificar, armazenar e evocar permanece entre os cientistas até hoje. Outros filósofos do período clássico associavam as memórias a pássaros em um viveiro ou a livros em uma biblioteca, ressaltando a dificuldade de recuperar as informações depois de terem sido arquivadas – isto é, de pegar o pássaro certo ou de localizar o livro desejado.

Teóricos contemporâneos passaram a ver a memória como um processo seletivo e

interpretativo. Em outras palavras, ela é mais do que o simples armazenamento

passivo de informações. Além disso, depois de aprender e armazenar novas informações, podemos selecionar, interpretar e integrar uma coisa a outra – para fazer um melhor uso do que aprendemos e lembramos (FOSTER, 2011, p. 12).

O fato é que não existe somente um tipo, uma única definição para a memória e, também, uma única forma de abordá-la. A memória pode ter como significado, por exemplo, a capacidade do ser humano de arquivar experiências, acontecimentos do passado e difundi-los às gerações novas por meio de diversos “[...] suportes empíricos (voz, música, imagem, textos, etc)” (SIMSON, 2003, p. 14).

50 Também encontramos distinção entre memória individual e memória coletiva. A memória individual é aquela que é armazenada por uma pessoa e diz respeito às suas experiências, sendo que essa memória individual possui, em sua formação, aspectos da memória do meio social em que a pessoa está inserida, ou seja, ao grupo ao qual está associada. Já a memória coletiva, abordada por Maurice Halbwachs, é aquela que é composta por aspectos e episódios considerados importantes por grupos dominantes, sendo então armazenados, arquivados, como memória oficial de uma sociedade (SIMSON, 2003, p.14). Neste sentido,

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLAK, 1992, p.201).

Ainda de acordo com Pollak (1992, p.201-202), a memória, individual ou coletiva, é constituída de três elementos: por acontecimentos, vivenciados diretamente pelo indivíduo ou indiretamente, no âmbito da coletividade; por pessoas, personagens; pelos lugares.

No dicionário podemos encontrar diferentes significados, como recordação, lembrança, bem como a capacidade de arquivar impressões e saberes adquiridos e retomá-los pela “ação da vontade” (XIMENES, 2001, p. 577). Porém, na literatura, ao lermos uma obra de Marcel Proust, encontramos uma teoria de que nem toda memória pode ser retomada por essa ação consciente.

O romance Em busca do tempo perdido, escrito no início do século XX pelo francês Marcel Proust, é permeado por várias memórias de um narrador. Walter Benjamin ao realizar diversas análises em seu texto A imagem de Proust, diz que “[...] Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu” (BENJAMIN, 1987, p.37). No decorrer da leitura, já nas primeiras páginas do primeiro romance chamado

No caminho de Swann, parece que estamos acompanhando a vida de alguém e, pelo fato de

serem esboçadas tantas memórias, ficamos indo e vindo para o presente de quem conta o seu passado.

No constante ato de rememorar que acompanhamos, duas definições de memória aparecem no texto, a memória voluntária e a involuntária. A diferença básica entre as duas é que a primeira advém do esforço consciente para lembrarmos de algo, não nos oferecendo tantos detalhes. É como se o ato voluntário de lembrar acessasse um espaço de nossa memória com

51 menos informações guardadas sobre um determinado local, uma determinada situação, etc. Verificamos o acesso à memória voluntária em um determinado trecho da obra, quando o narrador se deita e começa a lembrar de uma cidade chamada Combray:

Assim, por muito tempo, quando despertava de noite e me vinha a recordação de Combray, nunca pude ver mais que aquela espécie de lanço luminoso, recortado no meio de trevas indistintas, semelhante aos que o acender de um fogo de artifício ou alguma projeção elétrica alumiam e secionam em um edifício cujas partes restantes permanecem mergulhadas dentro da noite: na base, bastante larga, o pequeno salão, a sala de jantar, o trilho da alameda escura por onde chegaria o sr. Swann, inconsciente autor de minhas tristezas, o vestíbulo de onde me encaminhava para o primeiro degrau da escada, tão cruel de subir, que constituía por si só o tronco, muito estreito, daquela pirâmide irregular; e, no cimo, meu quarto, com o pequeno corredor de porta envidraçada por onde entrava mamãe; em suma, sempre visto à mesma hora, isolado de tudo o que pudesse haver em torno, destacando-se sozinho na escuridão, o cenário estritamente necessário [...] como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados por uma estreita escada, e como se fosse sempre sete horas da noite. Na verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia outras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me seria oferecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray (PROUST, 2006, p. 70).

Porém, tal percepção muda em relação às lembranças dessa cidade quando o narrador se depara com a segunda memória, a involuntária. Essa memória advém do contato com algo, um fato, que faz com que ela surja espontaneamente. A mesma é acionada, como se acessássemos outro território da nossa memória com mais detalhes que só nos lembramos pois foram evocadas a partir de algo, e não pela tentativa consciente de recordar o passado, pois, para o narrador, o passado “está oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material), que nós nem suspeitamos” (PROUST, 2006, p. 71).

Logo, como podemos notar, encontramos uma relação entre passado, memória e objeto, em que o narrador expõe que o esforço, o ato de nos colocarmos para rememorar algo não é tão eficiente, no sentido de trazer tantas sensações quanto a memória que nos é trazida à mente e ao corpo através de um meio. Vemos essa relação, mais claramente no decorrer do texto a seguir, quando o narrador experimenta um chá com biscoitos, o que provoca nele sensações e uma busca para saber de onde elas vêm e o que elas são, ficando claro, posteriormente, que é a memória involuntária.

Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me um chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que

52 parecem moldados na valva estriada de uma concha de são Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo- me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? (PROUST, 2006, p. 71).

Logo, na busca incessante de respostas às suas próprias perguntas, dando sucessivos goles na bebida, ele chega à conclusão de que a verdade que busca não está na bebida, mas nele (PROUST, 2006, p. 71), porém, vemos que foi o contato com o gosto e o odor que disparou tais sensações. Assim, ao distrair-se, a lembrança surgiu de forma repentina. Como o mesmo diz: “aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray [...] minha tia Leónie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto” (PROUST, 2006, p. 71). Ou seja, ao ter contato com o gosto dos biscoitos com o chá, a memória involuntária se manifestou inesperadamente, foi evocada.

Diante desse evento, concordamos com Seemann quando ele comenta que a memória, ainda que “seja basicamente um processo interno, a sua projeção não se realiza em um vazio”, ou seja, “a memória precisa de espaço para ser ativada e estimulada” (SEEMANN, 2002, p. 44), podendo ser um referencial para a memória os lugares, representações visuais, como fotos e mapas e também os não visuais, como a música e a literatura (SEEMANN, 2002, p. 44). Como exemplo disto, Seemann traz em seu artigo um mapa de uma região da Alemanha. Diante do mesmo, ele realiza uma leitura, descreve pontos, regiões, com base em suas experiências pessoais, como localização da casa dos pais e da avó, os caminhos percorridos durante a infância, a localização da igreja, do dique, seus trajetos. Visa demonstrar, por exemplo, como um mapa é um meio capaz de acentuar a percepção e suscitar a memória do indivíduo. Como ele declara, “se analisasse a folha inteira da carta topográfica, provavelmente escreveria uma biografia espacial completa da minha infância” (SEEMANN, 2002, p. 49).

Importante ressaltar que não iremos nos ater ao termo espacial utilizado por este autor, mas tal citação nos é relevante para evidenciarmos o fato da memória se mostrar associada a algo, a um meio, a um acontecimento, que, como vimos, pode ser a música, ou, no caso do narrador de Proust, um odor, um gosto, que pode servir de estímulo para que essa memória se

53 manifeste. O ato de evocarmos, de forma geral, está associado a uma determinada memória que é chamada, muitas vezes, de memória-alvo ou traço-alvo e o que pode nos levar a elas são as dicas/pistas.

Suponhamos, por exemplo, que eu lhe peça para lembrar o que você jantou ontem à noite. Para responder, você teria de evocar o evento. Neste caso, a sua memória quanto ao jantar de ontem à noite seria o alvo.

Em geral, a evocação é uma progressão de uma ou mais dicas em direção a uma memória-alvo, com o objetivo de tornar aquele alvo disponível para influenciar o conhecimento permanente.[...] As memórias podem ser evocadas a partir de uma diversidade de pistas. Se, em vez de lhe perguntar “O que você jantou a noite passada?”, eu perguntasse “ Quando foi a última vez que você comeu ervilhas?”, você poderia dizer “ Ah! Comi ervilhas no jantar ontem”. Você teria acessado a mesma memória, mas por meio de dicas diferentes das do exemplo anterior. Muitas coisas podem servir como dicas: o cheiro de ervilhas pode lembrá-lo da noite passada, ou a canção no rádio pode ser a mesma que você tocou enquanto jantava ervilhas (BADDELEY; ANDERSON; EYSENCK, 2011, p. 180, grifo dos autores). Se as dicas podem advir de diversas fontes, música, mapas, sons e, na visão de Proust, o rememorar pode dar acesso à memória voluntária e à involuntária, nesse caso pelo odor/gosto, vejamos, a partir de alguns exemplos de trabalhos no campo da arte, como o tema memória é articulado, de modo a criar uma conexão com questões que foram citadas nessa introdução sobre memória e servir também como aporte para a abordagem dos trabalhos da artista Josely Carvalho.