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ce qui ne signifie nullement qu'une liberté relative ne lui soit pas immédiatement accessible”.

No documento Absurdo, revolta, ação : Albert Camus (páginas 75-78)

criação. Tal como ilustrada em Calígula e em O mal entendido, a revolta deixa de se dirigir ao autor de uma condição injusta e atenta contra os homens e toda a criação:

Abomino a natureza... Gostaria de atrapalhar os seus planos, interromper a sua evolução, parar os astros, virar de cabeça para baixo os globos que flutuam no espaço, destruir o que lhe serve, proteger o que lhe é nocivo; em resumo: insultá-la em suas ações, e não consigo (SADE apud CAMUS, p. 62).

O marquês irá negar, portanto, o homem e sua moral, já que mesmo Deus os nega. E sua negação será em nome do instinto sexual que, segundo ele, é o grande ”mandamento” da natureza. Para Sade, só há uma desmedida lei: a do desejo. “Essa caprichosa parte do nosso espírito [a imaginação] é de uma libertinagem que nada pode conter; é inimiga da regra, idolatra a desordem e tudo o mais que traz as cores do crime” (SADE, 1980, p. 49).

Assim, se o desejo é a lei, ele está acima de qualquer coisa, de qualquer pessoa, ele é preferível a tudo; em nome da libertinagem que daqui advém, pode-se fazer tudo. “A liberdade ilimitada do desejo significa a negação do outro e a supressão da piedade” (CAMUS, 2003b, p. 60). Nesse momento do raciocínio de Sade, o crime não só é justificado como também obedece às próprias leis da natureza. Por essa razão, o personagem principal do romance, Dolmancé, afirma que em prol dessa natureza exótica devemos inclusive matar o próximo. Para a lógica de Sade, a libertinagem, a destruição e o crime são também leis da natureza e a natureza humana, conquanto seja condizente com a natureza, é criminosa. Devemos então nos esquecer dos costumes e dos hábitos alimentados pela sociedade e pela educação, posto que eles traem as leis da natureza.

Sade diz “não” à condição humana, à sociedade em que vive, o que, a princípio, não seria um problema, já que a revolta pressupõe um não, uma recusa. A questão é que essa negação é absoluta, tão radical que chega a ponto de subjugar os homens, transformando-os em instrumentos, em objetos de deleite. O revoltado, seguindo a lógica de Sade, nega o outro, nega tudo que não seja ele e a sua consciência absurda. As conseqüências de uma lógica revoltada que se afasta dos pressupostos da verdadeira revolta são “a totalidade fechada, o crime universal, a aristocracia do cinismo e a vontade de apocalipse” (CAMUS, 2003b, p. 64).

Sade revolta-se contra o criador, contra a condição cruel em que vive. Sua cólera não tem limites, ela se estende inclusive aos homens. Por isso exalta uma sociedade criminosa e totalitária, obedecendo a uma exigência que não é a da revolta: uma liberdade frenética, uma libertinagem. É nesse ponto que se afasta do “sim” contido no movimento de revolta e esquece de deixar intacto aquilo que há de irredutível no homem e que a própria revolta revelou.

Segundo Camus, se a lógica de Sade, ou seja, se a busca incessante de satisfação de fato se concretizasse, restaria apenas poucos carrascos que teriam que fazer valer a lei da natureza. E por último, “o mais forte, aquele que vai sobreviver [...] reina, afinal, senhor e Deus”, mas sua divindade não pode reter seu desejo desmesurado, menos ainda saciá-lo, já que não há mais objetos para deleitar, para satisfazer-se.

A não observância do conteúdo positivo da revolta conduz Sade e os românticos a investirem não só contra aquilo que os oprime, mas contra aqueles que são oprimidos, contra aqueles que inicialmente queriam defender127. No entanto, privilegiar a afirmação negligenciando a recusa inerente a toda revolta, também traz resultados extremos e niilistas que não são autorizados pela revolta, se tomada em suas verdadeiras origens: “a dura tensão entre o sim e o não” (CAMUS, 2003b, p. 42).

É exatamente isso que Camus quer apontar ao falar de Nietzsche em “A afirmação absoluta – Nietzsche e o niilismo”: demonstrar que o filósofo alemão, embora seja um revoltado também foge às origens da autêntica revolta ao afirmar o “sim” absoluto.

Nietzsche pode ser considerado um homem revoltado à medida que se insurge contra o cristianismo, já que essa religião tenta oferecer um falso sentido para a vida. Mais que recusar toda moral que escamoteia o homem, Nietzsche nega, sobretudo, os valores vigentes, já que são frutos dos ideais cristãos e provas da decadência da sociedade moderna, promovendo a substituição do “homem de carne e osso por um reflexo de homem” (CAMUS, 2003b, p. 88).

O que se transmite por hereditariedade não é uma doença, mas um estado doente: a impotência para resistir contra os perigos das imigrações perniciosas, a força da resistência cindida, etc.; para exprimir a mesma coisa sob o ponto de vista da moral: a resignação e a humildade em face do inimigo (NIETZSCHE, 1991, p. 98).

A crítica da religião feita por Nietzsche deve-se ao fato de ela aviltar, subestimar o homem, supondo que tudo que é bom e verdadeiro não é conquistado pelo homem, mas dado somente pela graça divina. (idem, ibidem, p. 113).

Para Nietzsche, quando o mundo ver-se livre não apenas de Deus128, mas das idéias morais - resquícios da presença dessa divindade -, restará apenas o homem, completamente só

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Sade não é o único a se afastar das origens da revolta e a proclamar um não absoluto. Camus percebe em certos românticos o mesmo niilismo de Sade, qual seja, “a incapacidade de acreditar […] no que existe” (CAMUS, 2003b, p. 91) e a indiferença pela vida (idem, ibidem, p. 17). Os românticos também deturparam o movimento da revolta:

Como Sade, ele [o romantismo] se separará da revolta da antiguidade pela preferência dada ao mal e ao indivíduo. Ao ressaltar os seus poderes de desafio e de recusa, a revolta nesse estágio esquece seu conteúdo positivo. […] O ódio à morte e à injustiça levará senão ao exercício, pelo menos à apologia do mal e do assassinato (CAMUS, 2003b, p. 66).

e sem ídolos; a partir desse momento, o homem tornar-se-á responsável por tudo o que ele vive, o mundo já não poderá sequer ser julgado, dado que estará privado de uma finalidade, de uma vontade divina. O homem pode ser então seu próprio deus.

Nietzsche queria afirmar o homem diante de uma moral cujos valores eram a resignação e a humildade, todavia, embora ele estivesse preocupado com o status do homem liberado de Deus, sua filosofia termina por trair as origens da revolta. Segundo Camus, Nietzsche, ao retomar a idéia pré-socrática do eterno retorno, culmina em uma exaltação do eterno devir:

Nietzsche não quer redenção. A alegria do devir é a alegria da aniquilação. Mas só o indivíduo é destroçado. O movimento de revolta, no qual o homem reivindicava seu próprio ser, desaparece na submissão absoluta do indivíduo ao devir. O amor fati substitui o que era um odium fati. […] O indivíduo perde-se, assim, no destino da espécie e no eterno movimento dos mundos (CAMUS, 2003b, p. 94).

Exaltar a divindade do eterno devir, agora menos perverso do que o dos cristãos, não é o único problema assinalado por Camus, pois Nietzsche acaba divinizando o homem, substituindo o deus pessoal dos cristãos pelo próprio homem. Tal divinização ocorre por meio da própria divindade do mundo:

Na mesma beira de praia, o mar primordial repete incansavelmente as mesmas palavras e rejeita os mesmos seres espantados com a vida. Mas aquele que pelo menos consente em seu próprio retorno e no retorno de todas as coisas, que se faz eco e eco exaltado, participa da divindade do mundo (CAMUS, 2003b, p. 95).

Assim, a afirmação absoluta e radical, também é uma traição, um afastamento das origens da revolta. Extraindo da revolta somente o “sim” incondicionado, afirmando o devir de modo absoluto e esquecendo-se do “não” próprio da revolta que recusa sua condição no que ela tem de injusto e cruel, Nietzsche aceita tudo. Ora, “aceitando tudo do universo, ele consente tanto com a mentira, quanto com a verdade” (QUILLIOT, 1956, p. 228), em última instância, ele diz sim ao assassinato. Nietzsche queria a divindade do homem, mas através da exaltação da divindade do mundo, ao fazê-lo, consente com o sofrimento, a violência e o crime.

Mas se Sade e Nietzsche falham em seu movimento de insurreição, mantêm até o fim sua lógica desmesurada. Entregam-se integralmente a ela, dilaceram-se e pagam o preço máximo para não fugir às suas conseqüências. Contudo, o desvio da revolta não se limita apenas ao plano teórico e à disposição desses homens de dar sua vida pela coerência de seus

No documento Absurdo, revolta, ação : Albert Camus (páginas 75-78)