• Nenhum resultado encontrado

Simbiose de personagens 14

No documento A dimensão barroca de Os sinos da agonia (páginas 158-166)

R, eferências Bibliográficas

4. DIMENSÃO BARROCA DAS PERSONAGENS

4.1. Caracterização barroca de Malvina e Gaspar

4.2.2. Simbiose de personagens 14

Ainda para pôr em relevo características formais do Barroco, Autran Dourado recorre ao processo de "simbiose", isto ê , a suporposição de imagens que se fundem e se identificam numa so coisa na consciência das personagens, é mecanismo têcnico e de gran de importância porque se remete a superposição e fusão de linhas, formas e cores das criações artísticas barrocas.

Malvina, quando realiza seu amor físico com Januã - rio, funde a imagem deste com a de Gaspar:

" J a n u á r i o e r a p o r ' f o r a o q u e G a s p a r e r a p o r d e n t r o C . . . 1 E f u n d i a o s d o i s n u m a s d p e s s o a . E a m e m ó r i a d o p a s s a d o e a m e m ó r i a d o f u t u r o , t o d a e l a m e m ó r i a , s e e n c o n t r a v a m n o p r e s e n t e d a q u e l e c o r p o . N e l e s e r e a l i z a m . Q u a n d o s e e n t r e g a v a a ’ J a n u á r i o , n ã o s a b i a m a i s q u a l d o s d o i s a p o s s u í a . N a v e r d a d e e l a é ■ q u e o s p o s s u í a a u m s ó t e m p o , a u m s ó t e m p o o s f e c u n d a ­ v a e p a r i a " C p . 1 2 8 ) .

Tal simbiose gera um terceiro personagem, um hipo - digma, personagem ideal, mas sem existência na realidade, e que re­ sume as qualidades da perfeição ideal de Gaspar (as qualidades psí-

quicasl e de Januãrio C.as qualidades físicas).

Januãrio e Gaspar não se tornam simbióticos apenas no plano mental de Malvina. Dentro da estrutura da obra eles são

duplos um do outro, são as duas faces do mesmo personagem (Hipoli - to): Januário representa Hipolito (filho da estrangeira) pelo lado bastardo e Gaspar o representa pelo lado incestuoso, edipiano.

A simbiose se processa com a superposição da ima­ gem de João Diogo e de Gaspar na mente de Malvina quando esta se relaciona fisicamente com João Diogo. Sente-se realizando o ato de amor com Gaspar:

" U m d i a , s e m q u e r e r , q u a n d o c e d e u a u m a d a s u r g i n - c i a s d e J o ã o D i o g o C . . . ) v i u n a c a r a e n r u g a d a a l ­ g u n s t r a ç o s d o f i l h o . A n t e s n u n c a t i n h a v i s t o , t a n ­ t o d i z i a m q u e G a s p a r e r a p a r e c i d í s s i m o e r a c o m a m ã e , e r a t o d o e l a . S e p a r e c i a t a m b é m c o m o p a i , e r a u m J o ã o D i o g o r e j u v e n e s c i d o e a p u r a d o : a d u r e z a d o s t r a ç o s a b r a n d a d a p e l a b e l e z a e f i n u r a d u m a a l m a d e ­ l i c a d a . J o ã o D i o g o q u a n d o m o ç o , a p e s a r d e b r u t o , g r o s s o e c u r t i d o , d e v i a s e r a s s i m q u e n e m o f i l h o . 0 d e s e j o d e v e r e r a t ã o g r a n d e q u e v i a o i m p o s s í v e l d e v e r . C h e g a v a a i n v e n t a r u m J o ã o D i o g o n o v o e b e ­ l o . N ã o e r a a i n d a a q u e l a b e l e z a t e r r í v e l e a n g e l i - c a l d o f i l h o j _ t a m b é m n ã o e r a m a i s a q u e l a f i n u r a q u e , a u m e n t a v a d e s d e q u e c o n h e c e u G a s p a r . C o n s e g u i u m e s ­ m o a l c a n ç a r o p r a z e r a n t e s q u a n d o G a s p a r a i n d a n ã o e x i s t i a n a s u a v i d a " C p . 1 0 8 ) .

Ana Jacinta e Malvina fundem-se numa so figura na memória- de Gaspar: " N ã o e r a m a i s d o n a A n a J a c i n t a q u e a l i e s t a v a . M u i ­ t o m e n o s M a l v i n a , g a l o p a n d o n a s a s a s d o v e n t o . Q u e m a l i e s t a v a , o ' s d e d o s s u s p e n s o s e o s o l h o s s ' o n h o s o s , q u a n d o s o z i n h a n o e n t a r d e c e r d a s a l a , e r a u m a f i g u ­ r a b i f r o n t e , m e l h o r , u m a f u s ã o d a s d u a s , d e M a l v i n a e d e A n a J a c i n t a " C p . 9 4 ) .

Em sonho, Malvina funde-se com Donguinho:

" D e r e p e n t e , n e g r a e s u j a , d e s g r e n h a d a , a o s u i v o s , s a f a a c o r r e r p e l o s p a s t o s , o s c a b e l o s e c r i n a l a m ­ b i d o s p e l o v e n t o f r i o d a n o i t e . A n o i t e s e e n c o l h i a , e l a e s t a v a n a s t a r d e s a z u l a d a s d a f a z e n d a . N ã o e r a m a i s e l a , e r a u m s e r m o n s t r u o s o e a n d r ó g i n o q u e co_r r i a o s p a s t o s e d e s c a m p a d o s d o e n t a r d e c e r . E r a D o n - g u i n h o r e d i v i v o v i n d o a m o r o s a m e n t e n e l a s e f u n d i r . C a r i n h o s a m e n t e e a c o n v i d a v a p a r a a e s c u r i d ã o s e m f i m , p a r a a s u a e t e r n a n o i t e d e d e m e n t e " C p . 1 1 7 ) .

dissolvem na consciência de Malvina: " 0 r e p a s s a r d a s e m o ç õ e s a c u m u l a d a s e m s e g r e d o s e f u n d i a c o m a a b s u r d a m e m ó r i a d o f u t u r o . P a s s a d o e f u t u r o e r a m u m a s ó m e m ó r i a , p a s s a d o d o t e m p o p r e s e r i t e ” C p . 1 1 7 ) . 4.2.3. Reiteração de personagens

A sugestibilidade de movimento e multipolaridade do Barroco ê expressa atravês de um dos processos responsáveis pela estrutura dé Os Sinos da agonia - a reiteração. A estrutura reitera tiva deste romance não se revela apenas na divisão dos blocos, no recontar os acontecimentos segundo pontos de vista variáveis-: Janu£ rio, Malvina e Gaspar, mas, sobretudo, na correspondência absoluta e trágica entre as personagens. Malvina, enquanto mulher, diz Maria Lucia Lepecki, ê mãe de Gaspar, retoma Ana Jacinta. No plano da fa­ talidade genética ela é, de novo, em atuação e qualidades o pai e a mãe - "Malvina tinha a ciência e a malícia da mãe a que juntava a ambição do pai" Cp* 76). Gaspar repete o pai nos traços físicos e no amor pela mesma mulher, e por ser o detentor, pela herança, do poder econômico e do estatuto social. Funde-se na pessoa do pai a partir do momento da morte deste, %aer continuá-lo e o continua:

" 0 p a i - m o r t o , t i n h a d e s e r o u t r o h o m e m , a s s u m i r o ç e u l u g a r . P ô s n o v a m á s c a r a , v i v e r o u t r a f i g u r a ç ã o C . . , ) D i a n t e d o s o u t r o s , d a c i d a d e , d o C a p i t ã o - G e n e r a l . A f r e n t e d a s s u a s p o s s e s , d a s l a v r a s e f a z e n ­ d a s d o p a i C . . . ) A s s i m o p a i g o s t a r i a d e v ê - l o . E r á d e n o v o o s e u f i l h o m u i t o a m a d o . 0 o u t r o h o m e m , s e ­ r i a o u t r o h o m e m . O u t r o h o m e m n a s c e u , t o r n o u a d i ­ z e r " C p . 1 7 1 ] ,

A narrativa se torna perfeitamente reiterativa pela criação da mesma significação em mais de uma personagem. Em Gaspar e Januário se faz sentir de maneira mais aguda a sensação do absur­ do dos acontecimentos que vivem. Ambos se apercebem da inconseqüen- cia e da.incompatibilidade de suas vidas, mas se encontram impoten­

tes para qualquer modificação. Mesmo assim, optam por realizar o destino: Januãrio, aceitando a morte física, foge ao destino orgâni^ co de morto-vivo; Gaspar, assumindo voluntariamente o lugar do pai, rende-se ã inconseqüência: "tudo claro e frio, CGaspar) sabia agora como agir” (p. 171). Nesse ato de opção, sucumbem ao fado, tornam - se vítimas dele.

Gaspar, por ser delicado, puro e belo repete simul­ taneamente sua mãe e sua irmã:

” . . . É e s q u i s i t o m a s d e m u i t o b o m c o r a ç ã o , p u x o u à m ã e n a s d e l i c a d e z a s " C p . 8 9 ) . " . . . a p e i e b r a n q u i n h a q u e e l e h e r d a r a d a m ã e , m u i ­ t o m a i s b r a n c a p o r c a u s a d a d i f e r e n ç a c o m o s c a b e - l o s p r e t o s l u s t r o s o s . I g u a l z i n h o a m ã e , t ã o m a n s o e p u r o " C . p . 9 5 ) . " . . . o c o r a ç ã o d e v i a s e r p u r o e c a s t o c o m o a m ã e e a i r m ã " C p . 1 4 - 6 ) .

Também a menina ”de cinco anos” (p. 138) que morava na casa colada â de Gaspar Ctempo de estudante em Coimbra) aparece caracterizada com traços idênticos aos de sua irmã Leonor, repetin­

do-a, portanto: •

" A v i z i n h a , u m a c e r t a p a r e c e n ç a c o m L e o n o r . E . s e m - p r e t a m b é m d e . v e s t i d o b r a n c o , t ã o p u r a , v a p o r o s a "

C p . 1 3 6 ) .

Januãrio, o morto civil representa a imagem de to­ dos os agonizantes do texto, personagens e figurantes.

A caracterização de Ana Pires Ca noiva de Gaspar) é apresentada calcada na imagem de Ana Jacinta e de Leonor, sentindo- -a como mãe e irmã. Repete-a, pois como mãe e irmã, buscando nela a pureza, " A c a r a f i n a e o v a l a d a , o s o l h o s p r e t o s , s o n h o s o s , m a n s o s , s 5 l h e t r a r i a m a p a z . O s m e s m o s o l h o s , o m e s m o j e i t o m a n s o d a m ã e e d a i r m ã " C p . 2 0 1 ) . " M i n h a m ã e e q u e s a b i a o c ó d i g o d o s s i n o s , e l a r e z _ a v a s e m p r e c o m o v o c ê a g o r a d e v e e s t a r r e z a n d o . A s s i m • m e s m o c a l a d a , s õ l á b i o s , s e m f a l a , i g u a l z i n h a a v o ­ c ê C a A n a ) " C p . 2 0 4 ) .

A reiteração pode indicar-se também pela anomalia psicologica passageira ou não. Donguinho constitui o reflexo ou con traponto de Malvina, ela também, como Lucifer bela e horrível. A senilidade de Dom Quebedo tem correspondência contrapontística em Gaspar, "esquisitão”, em Diogo que apresenta sinais evidentes de in cipiente senilidade, em Malvina, que no entender da mucama é "avar_i ada".

A reiteração encarada do ponto de vista mitologico ilustra plena correspondência entre as personagens do romance e as da mitologia greco-latina.

Malvina, identificada como mãe-madrasta de Gaspar, consubstancia a figura de Medéia, que biologicamente deu ã luz os filhos de Jasão, matando-os depois. Malvina, quando funde João Dio­ go e Gaspar numa so pessoa, vendo no pai traços do filho, configura Fedra, que igualmente vê nos traços de Hipolito^o Teseu moço.

Ana Cf ilha do coronel Bento Pires) corresponde a Diana Cfigura na Grécia antiga tida como casta). Gaspar guarda ínt^ ma equivalência com Hipolito (enteado de Fedra), exatamente pelo la do incestuoso, e com Edipo pelo desejo de matar o pai e possuir a mãe-madrasta.

Donguinho, irmão demente de Malvina, pode guardar aproximação com o Minotauro.'Malvina quando em sonho se funde com Donguinho o vê como um minotauro de olhos vivos e avermelhados” (p.

121) que queria possuir toda aquela pureza e castidade.

Ainda existe a correspondência com outras persona - gens e entidades mitologicas CMalvina = Níobe, Parcas e Vênus)i mas dispensa-se qualquer desenvolvimento sobre cada uma dessas equ^ valências porque jâ o foi feito no capítuloÍII, quando se tratou do topico "Mito e Tragédia".

Autran Dourado recorre ainda ã reiteração através do que ele convencionou chamar "sombra de personagens", por que evoca parodisticamente personagens históricas: Cláudio Manoel da Costa, Tomas Antônio Gonzaga, Marília de Dirceu e Tiradentes. Ana (a noiva de Gaspar), é sombra de Marília (Marília mítica e poética)" . 0

autor a usa "para efeito de paródia de situação e paralelismo, como espelho, a Marília de Dirceu, a "eterna, pura e mítica noiva" de Minas. So ela salvaria Gaspar e, portanto, o lübrico Gonzaga" .

Gaspar ê sombra de Cláudio M. da Costa - lembra o poeta deslocado que veio de um meio cultural adiantado; ê também sombra de Gonzaga enquanto noivo de Ana (Marília de Dirceu). Gonza­ ga e Claudio são também utilizados ironicamente, parodisticamente, "produtos os mais altos do arcadismo das Minas" o espantalho da Farsa ê sombra de Tiradentes. Da mesma maneira que Tiradentes foi executado por crime de subversão política, o crime de Januãrio deixa de ser crime de direito comum e passa a delito político, con^ piração contra del-Rei.

A conclusão geral que se pode extrair das considera ções tecidas até aqui, ê que, em nível das personagens, o romance ■ adquire dimensões barrocas por três fatores:

a. Aproximada ‘identificação morfologica entre as suas personagens 'e as da literatura barroca: contraditórias, incoerentes, imprevisíveis, eni£ mâticas, conflituosas, etc.

b. Presença da .mundividência barroca expressa:

no estado de duvidas e incertezas (a duvida ou claro-escuro) que se instalam nas personagens uma em relação ã outra;

na angústia, no conflito de se conscientizarem v^ timas fatais de um destino implacãvel e irrever­ sível;

na insegurança e no' temor de todos face a um si£ tema político terrivelmente ameaçador, injusto e impiedoso, fundado no absolutismo real e mant^ do graças ao terror suscitado pela conversão de qualquer delito em crime de lesa-majestade;

rias dicotomias de carãter antitético: ascetismo (Gaspar) e mundaneidade (Malvina - o "carpe diem");

Emprego dos processos de alternância de situa - ções, simbiose e,reiteração de personagens favo­ ráveis a sugestibilidade dos seguintes efeitos barrocos: movimento, mutabilidade, instabilidade,

fusionismo, abertura das formas e multipolarida­ de .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) COELHO, Novaes Nely. Literatura e linguagem. São Paulo, Edi­ ções Quiron Ltda., 1976, p. 165.

(2) VINSAUF, Galfrid, apud AVILA, Afonso. 0 lüdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo, Editora Cultrix, 1971, p. 52. (3) DOURADO, Autran. Uma poética de romance. São Paulo, Editora

Perspectiva, 19 73, p. 114.

(4) Cfr. paginas deste trabalho para maiores detalhes.

C5} Cfr. COUTINHO, Afrânio (dir.). A literatura no Brasil. vol. I, 2a. ed., Rio de Janeiro, Editorial Sul Americana S*A., 1 9 6 8 , p . 1 4 3 .

C6] Idem , ib. , p. 142.

C.7) DOURADO, Autran. Poética de romance - matéria de carpintaria. DIFEL, Rio de Janeiro,. 19 76, p. 147.

C_81 CrORANESCO, Alejandro. El baroco o el descubrimientò dei dra­ ma. Universidad de La Laguna, 1957, pp. 331, 332.

(9} AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da literatura. Coimbra, Livraria Almeidina, 1969, p. 373.

(10} HAUSER, Arnold. Maneirismo. São Paulo, Editora Perspectiva , 1965, p. 90.

C_ll)_ CIORANESCO,. Alejandro. Op. cit. , p. 331.

0-21 SPINA E SANTILLI. : Apresentação da poesia barroca portuguesa . CAPBP). Assis, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis, ia67.

C13} CIORANESCO, Alejandro. Op. cit., p. 332. C14) HAUSER, Arnold. Op. cit., p. 90. '

Q51 LEPECKI, Maria Lucia. Au t r an D Ou r ad o: uma leitura mítica. São Paulo, Quiron, 1976, pp. 241, 242.

C.161 HAUSER, Arnold. Op. cit., p. 94.

C17} MARINO, Adone. V. Narciso di Bernardo Castell; Econdi Ventura Salimbeni. Apud: A. Hauser, Op^ cit., p. 94.

C.18X DOURADO, Autran. ' Poética de romance - matéria de carpintaria. Op, cit., p. 147.

C19} Idem, ib., p. 148, C20} Idem, ib., p, 148.

5. DIMENSÕES BARROCAS NO ESTILO E NA LINGUAGEM DE

No documento A dimensão barroca de Os sinos da agonia (páginas 158-166)

Documentos relacionados