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4. Propriedades sintácticas das expressões adverbiais

4.9. Distribuição de propriedades sintácticas: classes PC e PDETC Pretendemos, nesta secção, caracterizar, no seu conjunto, o comportamento dos

4.9.1. Simetria entre as propriedade 1-2 e 3-4.

A Tabela 6 resume o total de advérbios que apresentam as principais combina- ções das propriedades 1 e 2, por um lado, e 3 e 4, por outro:

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Tabela 6. Advérbios de frase e outros tipos de advérbios

Em primeiro lugar, verifica-se que os advérbios compostos que apresentam as propriedades definitórias dos advérbios de frase (1=S, 2=N; 104 casos), na definição de Molinier e Levrier (2000), representam apenas 11% das expressões e se encontram distribuídos equilibradamente pelas duas classes.

Em contrapartida, os advérbios que apresentam os valores inversos destas mesmas propriedades (1=N;2=S; 686 casos), e que, por essa razão, constituem casos mais paradigmáticos dos advérbios integrados na proposição, constituem a maioria das entradas (70%), e também se encontram distribuídos de forma equilibrada pelas duas classes 75.

Uma nota sobre os restantes tipos, que constituem cerca de 21% dos casos: Trata-se, igualmente, de advérbios integrados na proposição, verificando-se que se concentram em praticamente dois tipos de combinações de propriedades: 1S2S3S4S (10,2%) e 1N2N3N4N (5,1%). Voltaremos a estes casos mais adiante. Em segundo lugar, verifica-se que a relação entre as propriedades 3 e 4 não é tão simples pois, apesar de uma predominância do caso 3N4S (mais de 50%), os casos em que ambas as propriedades apresentam o mesmo valor (3S4S e 3N4N) constituem cada um cerca de 20% dos advérbios alistados, havendo ainda um quarto tipo, 3S4N, simétrico do primeiro, com um número de casos não negli- genciável.

Uma primeira leitura destes dados parece indicar que, num grande número de casos, estas duas propriedades são simétricas, isto é, que se excluem mutua- mente. Cremos, porém, que o cruzamento destas informações com os tipos par- ticulares de advérbios que as apresentam poderá lançar alguma luz sobre a questão.

Não é possível comentar aqui todos os casos, pelo que, no que se segue, nos con- centraremos em alguns dos tipos, nomeadamente, nos quantitativamente mais

75 Como veremos mais adiante (§5), os advérbios integrados na proposição são definidos pela disjunção da negação das propriedades definitórias dos advérbios de frase, isto é, enquanto estes últimos se definem por apresentarem 1S e 2N, aqueles são definidos por apresentarem 1N ou 2S. Esta predominância quantitativa dos advérbios integrados na proposição sobre os advérbios de frase também se verifica nos advérbios terminados em –ment do francês (Molinier e Levrier 2000).

importantes ou os que nos pareceram linguisticamente mais surpreendentes ou interessantes.

4.9.2. 1S2N3N4N

Como se esperaria, os advérbios de frase, na sua maioria não admitem igual- mente as propriedades 3 e 4, isto é, não podem ser inseridos na frase por meio de um verbo-suporte de ocorrência (Vsup-oc) nem podem ser retomados anafo- ricamente por uma pró-forma. Neste conjunto, encontramos diversos advérbios conjuntivos (PC), como em resumo:

(1a) Em resumo, o Pedro (não) conhece esta obra (PC) (1b) *É em resumo que o Pedro (não) conhece esta obra

(1c) *O Pedro (não) conhece esta obra e isso acontece em resumo (1d) *O Pedro não conhece esta obra e fá-lo em resumo

e alguns advérbios próprios de exclamativas, associáveis, por isso, aos advérbios disjuntivos de estilo (PS), tais como por Júpiter!:

(2a) Por Júpiter, estes romanos (não) são doidos! (PC) (2b) *É por Júpiter que estes romanos (não) são doidos!

(2c) *Estes romanos (não) são doidos e isso acontece por Júpiter! (2d) *Estes romanos (não) são doidos e são-no por Júpiter! 4.9.3. 1N2N3N4N

O tipo 1N2N3N4N (49 casos, 41 em PC e 8 em PDETC) corresponde a advérbios integrados na proposição, pois não admitem a propriedade (1N), apesar de não poderem ser extraídos (2N). Contudo, não só não podem ser inseridos por meio de Vsup de ocorrência (3N), o que os distingue dos advérbios de locativos céni- cos (de tempo e de lugar), como também não admitem a retoma anafórica (4N), logo não parecem ser modificadores verbais. Neste conjunto encontramos, pois, certos advérbios quantificadores (MQ), à brava, com todas as letras:

O Pedro gosta à brava de fazer surf

*À brava, o Pedro não gosta de fazer surf *É à brava que o Pedro gosta de fazer surf

*O Pedro gosta de fazer surf e isso acontece à brava *O Pedro gosta de fazer surf e fá-lo à brava

Como já dissemos antes (§4.8), os verbos que exprimem predicados não agenti- vos dificilmente admitem a pró-forma fazer; contudo, o advérbio à brava aceita mal (ou não aceita de todo) construir-se com esse tipo de verbos 76. Neste sen-

tido, a construção:

76 No corpus, à brava aparece construído com os seguintes verbos: divertir-se (7), gozar (7), rir-se (3),

divertir-se (2), gramar (2), tocar (2), gostar (2), curtir-se (1), rir-se (1), ecoar (1), emagrecer (1), curtir

(1), cortar (1), incomodar (1), dar (1), o que parece confirmar a intuição sobre o carácter não agentivo dos predicados que este advérbio preferencialmente modifica.

?O Pedro faz surf à brava

porque exprime não propriamente uma acção mas antes uma actividade (des- portiva) continuada, cuja prática é interpretada como um dos atributos do sujeito, também não admite a retoma anafórica:

*O Pedro faz surf e fá-lo à brava

Tal como o caso anterior, o advérbio com todas as letras 77 :

O Pedro disse-lhe isso com todas as letras

comporta-se como um advérbio de modo, integrado na proposição, como o demonstra a impossibilidade de ocupar a posição de destaque em início de frase negativa:

*Com todas as letras, o Pedro não lhe disse isso

O aspecto mais interessante, contudo, é que não admite nenhuma das restantes propriedades que, de outra forma, ajudam a definir os advérbios de modo, em particular a extracção e a retoma anafórica

*Foi com todas as letras que o Pedro lhe disse isso *?O Pedro disse-lhe isso e fê-lo com todas as letras

mas também a impossibilidade de ser inserido na frase por Vsup de ocorrência: *O Pedro disse-lhe isso e isso aconteceu com todas as letras

Nesta última frase, a sua aceitabilidade duvidosa deixa supor o estatuto de advérbio de modo, mas provavelmente numa tão estreita relação com o verbo que se aproxima bastante de uma frase fixa.

Dentro deste grupo, encontramos também certos advérbios fixos com o verbo, como é o caso de <cair> ao comprido:

O Pedro (caiu + estatelou-se + estendeu-se) ao comprido no chão da sala

*Ao comprido, o Pedro (não) (caiu + se estatelou + se estendeu) no chão

da sala

*Foi ao comprido que o Pedro (não) (caiu + se estatelou + se estendeu) no

77 Esta expressão ocorre no corpus 23 vezes, na maioria das vezes como modificador do verbo dizer (14 ocorrências) ou outros verbos declarativos, sempre no sentido de ‘claramente’, ‘explicitamente’; os restantes verbos com que co-ocorre são, por ordem: expressar (1), assumir (1), classificar (1), apoiar (1),

definir (1), identificar (1), declarar (1), lembrar (1), ser (1). Neste último caso, com o verbo ser, temos uma

construção predicativa nominal, com homem: Estamos celebrando um homem que o foi com todas as

letras, o arauto da liberdade, o cavaleiro da esperança (= Ele foi um homem com todas as letras). Neste

sentido, ocorre frequentemente com verbos de valor apodítico como chamar: “Mas eu ontem ouvi aos

microfones da RFM, o Jardim chamar com todas as letras filhos da puta aos jornalistas”

chão da sala

*O Pedro (caiu + estatelou-se + estendeu-se) no chão da sala e isso acon-

teceu ao comprido

*/?*O Pedro (caiu + estatelou-se + estendeu-se) no chão da sala e fê-lo ao comprido

Neste caso, julgamos que é a relação particular que o verbo estabelece com o verbo que bloqueia a retoma anafórica deste último.

Já a expressão pelos cotovelos, claramente de valor adverbial (=muito), e cujo significado é, globalmente um quantificador/intensificador, admite aparente- mente a retoma anafórica, estando, pois, mais próximo de um advérbio de modo (MV):

O Pedro (não) fala pelos cotovelos

*Pelos cotovelos, o Pedro (não) fala *É pelos cotovelos que o Pedro (não) fala *O Pedro fala e isso acontece pelos cotovelos ?*O Pedro fala e fá-lo pelos cotovelos

A inaceitabilidade da extracção e a muito duvidosa aceitabilidade da frase com a retoma anafórica parecem estar relacionadas com as diferentes restrições distri- bucionais que se observa quanto aos complementos do verbo falar quando construído com este advérbio:

*O Pedro falou (E + com a Ana + sobre isso) pelos cotovelos

Estes aspectos poderiam, portanto, conduzir à classificação desta construção verbal, quando construída com este advérbio, como uma frase fixa (cf. Fernan- des 2007). Por ora, deixámos este advérbio nas construções adverbiais.

4.9.4. 1S2S3S4S

Os advérbios que apresentam esta combinação particular de propriedades constituem um conjunto semanticamente bastante homogéneo, nomeadamente pelo facto de, na sua maioria, se tratar de advérbios de tempo. O facto de apre- sentarem todas estas propriedades positivamente revela o duplo escopo dos advérbios de tempo sobre o verbo da frase mas também sobre toda a predica- ção:

(Depois da refeição + ao anoitecer), o Pedro (não) tomou os medicamen-

tos

Foi (depois da refeição + ao anoitecer) que o Pedro tomou os medicamen- tos

O Pedro tomou os medicamentos e isso aconteceu (depois da refeição + ao

anoitecer)

O Pedro tomou os medicamentos e fê-lo (depois da refeição + ao anoite-

Porém, os advérbios de data com valor durativo/habitual admitem com alguma dificuldade a construção com Vsup de ocorrência e a retoma anafórica:

(Naquele tempo + in illo tempore), as pessoas (não) faziam isso

Era (naquele tempo + in illo tempore) que as pessoas (não) faziam isso As pessoas (não) faziam isso# isso acontecia (naquele tempo + in illo

tempore)

As pessoas costumavam fazer isso# elas faziam-no (naquele tempo + in

illo tempore)

Além destes, de que falaremos mais adiante (§5.3.3.), encontramos alguns advérbios de modo modificadores de verbo e, portanto, integrados na proposi- ção. Entre estes destacamos, em PDETC, por um triz:

Por um triz, o Pedro (não) apanhou o autocarro

Foi por um triz que o Pedro (não) apanhou o autocarro

O Pedro (não) apanhou o autocarro e isso aconteceu por um triz O Pedro (não) apanhou o autocarro e fê-lo por um triz

Na classe PC, encontramos a ‘família’ de expressões por (acaso + azar + sorte): Por (acaso + azar + sorte), o Pedro (não) apanhou o autocarro

Foi por (acaso + azar + sorte) que o Pedro (não) apanhou o autocarro O Pedro (não) apanhou o autocarro e isso aconteceu por (acaso + azar +

sorte)

?O Pedro (não) apanhou o autocarro e fê-lo por (acaso + azar + sorte) A estes junta-se ainda o advérbio por pouco que, contudo, parece aceitar mal as primeiras duas propriedades quando a frase está na afirmativa:

Por pouco, o Pedro (?E + não) apanhou o autocarro

Foi por pouco que o Pedro (?E + não) apanhou o autocarro

O Pedro (E + não) apanhou o autocarro e isso aconteceu por pouco O Pedro (E + não) apanhou o autocarro e fê-lo por pouco

Apesar desta (subtil) diferença, considerámos que a inaceitabilidade não era suficientemente forte para rejeitar as duas primeiras construções, pelo que decidimos regularizar a descrição integrando este advérbio neste conjunto. 4.9.5. 1N2N3S4S

A título de exemplo, apresentamos o caso de uma classe sintáctica com um único advérbio. Efectivamente, apenas um advérbio apresenta o conjunto de propriedades 1N2N3S4S: outra vez:

O Pedro foi a Lisboa outra vez

Trata-se de um advérbio de tempo (ou aspectual) que, ao contrário da maioria dos advérbios desta natureza, não admite nem a posição de destaque em início de frase na negativa nem a extracção ser…que:

*Outra vez, o Pedro não foi a Lisboa */?*Foi outra vez que o Pedro foi a Lisboa

mas admite tanto a inserção por Vsup como a a retoma anafórica:

O Pedro foi a Lisboa e isso aconteceu outra vez O Pedro foi a Lisboa e fê-lo outra vez

No primeiro caso, uma vez que o advérbio implica a repetição de uma acção, não é possível negá-la. Já a extracção ser…que, de aceitabilidade muito duvidosa ou mesmo inaceitável de todo, parece indicar o escopo global do advérbio sobre toda a predicação.

Na esteira de M. Gross (1988a: 180) consideramos este caso como excepcional e não o assimilámos às construções temporais em função da nítida inaceitabilidade das duas primeiras frases.

4.9.6. Conclusão

Após estas observações, parece ser possível delinear já um quadro geral da dis- tribuição das propriedades sintácticas principais definidas por Molinier e Levrier (2000) relativamente às duas principais classes de advérbios compostos por nós recenseados, nomeadamente PC e PDETC, bem como relacioná-las com as propriedades de inserção de advérbio por Vsup de ocorrência e de retoma anafórica.

Naturalmente, é possível que outros tipos de combinação de propriedades com poucos casos registados venham a ser integrados em conjuntos maiores, se se verificar necessidade de corrigir a classificação que ora apresentamos.

Nesse sentido, iniciámos já a estruturação dos advérbios compostos em classes sintáctico-semânticas com base na classificação de Molinier e Levrier que ire- mos apresentar no capítulo seguinte.

Esta classificação não põe em causa a classificação formal, mas permitirá reunir conjuntos semântica e sintacticamente mais coerentes dos que obtivemos pela mera estrutura formal do composto.

Trata-se de um trabalho em curso mas que, acreditamos, poderá representar um contributo para a melhor compreensão da heterogeneidade de comportamentos sintácticos acima observada. A título de exemplo, refiramos os advérbios de tempo e o facto de as respectivas propriedades sintácticas os colocarem numa ‘zona cinzenta’ entre os advérbios de frase e os advérbios internos à proposição, bem como as excepções que alguns deles constituem (§4.9.5), motivadas por razões de ordem semântica.

5. A proposta de classificação léxico-sintáctica de