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Sinais Diacríticos: É preciso ter coragem para levar na pele a cor da

Como vimos anteriormente, nessa breve visita aos alicerces dessa dissertação que foi a atuação do Movimento Negro pela promoção da equidade racial no Brasil e a Implantação da Lei 10.639/03, historicamente, levar na pele a cor da noite, simbolizou para os povos africanos no período colonial, e para os afro-brasileiros no mundo no pós-colonial e em seus diversos espaços diaspóricos, muito sofrimento, dor e negação de direitos fundamentais.

A autora Vanda Machado nos oferece em sua tese intitulada “Aquele que tem na pele a cor da noite: Ensinâncias e aprendências com o pensamento africano criado na diáspora”, informações pertinentes sobre como é levar na pele a cor da noite em nosso país de uma forma geral, mas em especial para as crianças. A mesma destaca a frase como viés condutor para trazer a luz os seus sentimentos, ainda na infância, junto a estrutura racista marcada por nossa sociedade. Em sua escrevivência, ela faz uma interpretação que acredito ser importante para entendermos os papeis dirigidos as crianças negras desde a sua primeira infância, em especial nos espaços escolares.

(...) Ao longo da caminhada pela vida, aprendi, constatei e principalmente sinto que as crianças negras carecem de um olhar diferenciado. Um olhar que contemple a sua beleza do jeito como ela é. As crianças negras crescem tomando tapas na alma. Não fomos rainha do milho. Não fomos rainha da primavera. Votávamos em rainhas que não nos representavam: rainha do milho, rainha da primavera, rainha do grêmio. A eleita era sempre uma menina que não tinha nenhuma obrigação de se incomodar com a nossa agonia. Era uma situação naturalizada. Também eu nunca percebi que eu não podia ser anjinho porque o meu cabelo não balançava. MACHADO (2006, p.15)

No Brasil, tanto os africanos que foram escravizados quanto os seus descentes da contemporaneidade que levam na pele, no corpo e na cultura sua ascendência africana, percorreram um caminho marcado por negação no que tange à seguridade dos direitos primordiais do homem. E o Estado, quem deveria promover meios de garantir o cumprimento desses direitos, se omite de diversas formas a essa obrigação.

11 A primeira vez que ouvi essa frase foi em um espetáculo apresentado pelo Bando de Teatro Olodum chamado

“Cabaré da raça”, o qual relata as diversas formas de preconceito racial vivenciados por nós afro-brasileiros em nosso dia-a-dia nos diversos espaços que transitamos. Letra de Marcio Meirelles disponível no link: https://www.flickr.com/photos/onaicat/6043493243, acesso em 10.04.2018.

Encontramos também uma referência a essa frase tão significativa, apresentada como subtítulo na tese de doutorado da professora Vanda Machado. A mesma faz referência a frase quando traz em suas recordações suas impressões sobre o ser negra em sua infância.

O Professor Munanga (2014)12, alerta para “o silenciamento organizado” que serviu para fundamentar as estratégias do racismo característico do nosso país. Não falar sobre o assunto, efetiva a inconsciência de sua existência tanto por negros quanto por brancos. O autor também nos narra que a Abolição da escravatura em 1988, por si só não provocou ruptura com a escravidão, “pois não se organizou uma resposta ao racismo que se seguiu para manter o status quo”. E essa falta de mudança, “essa manutenção da relação mestre/escravo se metamorfoseou na relação branco/negro, ambas hierarquizadas”.

A antropóloga Nilma Lino Gomes (2005, p.46), reitera o que diz o professor Munanga, para a autora após a escravidão o Estado não se posicionou política e ideologicamente de forma enfática contra o racismo. Essa negação perpassou pelos aspectos políticos, econômicos e sociais afetando e caracterizando de forma árdua a vida dos afro- brasileiros.

Negação à educação de qualidade, de moradia, de emprego e renda, de acesso ao lazer e cultura, liberdade religiosa e até mesmo liberdade estética, pois a inferiorização atribuída aos “traços negróides” deixou marcas difíceis de serem deletadas na formação da autoestima dos afros descendentes. Esse descaso do Estado estruturou-se especialmente pelo elemento cor da pele, como nos relata a mesma autora:

Vivemos em um país com uma estrutura racista onde a cor da pele de uma pessoa infelizmente é mais determinante para o seu destino social do que o seu caráter. O histórico da escravidão ainda afeta negativamente a vida, a trajetória e a inserção social do afro descendentes’. GOMES (2005, p.46)

Desta forma, como podemos perceber, o quesito “cor da pele” justificou atrocidades praticadas com os africanos e seus descendentes no decorrer de nossa história. Por meio dela foram escravizados, denominados como raça inferior, desumanizados, coisificados, submetidos a torturas, mutilações e humilhações diversas. E, no mundo pós-abolição, ainda que isso seja negado, pois vivemos em um país onde o racismo se revela de forma subliminar, caracterizando-se a partir da sua negação –, o critério “cor da pele” continuou sendo elemento de legitimação da segregação racial.

12 Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/digital/147/marginalizacao-negro-e-fruto-da-abolicao-

Para o autor Clovis Moura (2007, p.107) o racismo brasileiro na sua estratégia e na sua tática age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente nos seus objetivos: manter o negro em uma posição estática, sem mobilidade social. Fato que contribui substancialmente para a estagnação do negro nos diversos aspectos sociais que ele poderia ocupar quanto cidadão brasileiro. A autora Luciana Jaccoud (2008, p. 131) completa esse pensamento quando relata que são grandes diferenciais raciais que marcam praticamente todos os campos da vida social do afro-brasileiro. Seja no que diz respeito à saúde, à educação, à renda, acesso a empregos estáveis, violência ou expectativa de vida, os negros se encontram submetidos às piores condições.

Embora na atualidade o Estado venha tomando iniciativas de “reparação” para amenizar diminuir essas diferenças, pelo menos no que tange as questões de cunho educacionais como, por exemplo, a implantação da Lei 10.639/03 sancionada em nove de Janeiro de 2003 pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, que tornou obrigatório nos estabelecimento de ensinos fundamental e médio, oficiais e particulares, o ensino de História e Cultura Afro-brasileira, contemplando o Estudo da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, medida resultante da luta de vários anos de setores da sociedade como “O Movimento Negro”. Ainda assim, isoladamente não são capazes de reparar as lacunas criadas pelos anos de negação aos afrodescendentes.

Pelo menos no que tange a aplicação da Lei 10.639/03, para que sejam legitimadas, é necessário sanar os empecilhos gerados por alguns problemas que impedem a sua efetivação como, por exemplo, a escassa formação de educadores detentor de uma análise crítica e descolonizada sobre as questões étnico-raciais.

Conforme nos aponta a pesquisadora Oliveira (2006, p.284) “para viabilizar a tão importante conquista é necessário: formação de educadores no tocante das relações étnico- raciais, em decorrência da quase inexistência dessas temáticas nos currículos escolares; a parca publicação e/ou divulgação de materiais didáticos e/ou literários capazes de subsidiar tais profissões e efetivar o estudo na área em epígrafe.

Desta forma, acredito que a missão de promover equidade racial, apesar das diversas dificuldades encontradas para que se efetive, se faz necessário que nós, sociedade civil, pais, educadores – conscientes das mazelas existentes em nossa sociedade de cunho não apenas da “educação formal”, quando se trata de garantia de direitos para afro-brasileiros, como também na saúde, lazer, habitação, entre outras questões –, exercite, cobre do Estado, denuncie e busque meios de diminuir essas diferenças.

Refletir essas características peculiares do nosso país, tendo como ponto de partida (ou de chegada) os nossos modos de brincar, em especial o brinquedo boneca/o e toda a sua simbologia, me direciona a manter-me nessa trincheira de buscarmos caminhos que diminuam as consequências deixadas por tantas negações direcionadas aos nossos sinais diacríticos – corpo e cabelo.

Mantermo-nos interrogativos sobre o racismo a brasileira, que também pode manifestar-se nocivamente a partir do perfil das bonecas/os que confeccionamos e oferecemos as nossas crianças, pode ser caracterizado como um ato de coragem iniciar essa nossa conversa sobre boneca/o negra/o e representatividade, pois exige paciência, resiliência e determinação.

CAPÍTULO III – A IMPORTÂNCIA DO BRINCAR E SEUS