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Através do embasamento teórico deste trabalho, sabemos que o encontro entre os corpos e as mentes podem gerar afecções e afetos positivos ou negativos, ativos ou passivos e que a partir destes podemos agir com liberdade ou estar submetidos a servidão. Podemos funcionar apenas na imaginação, isto é, criar imagens sobre as coisas (causa inadequada), mas também podemos ser a causa adequada das nossas ações na medida que conhecemos melhor o que se passa conosco.

Aprendemos com Espinosa (2016) que estamos sempre atuando nos polos da passividade, sofremos, mas também somos ativos, perseveramos na nossa existência, isto é, desejamos. Neste sentido, a produção de subjetividade pode atuar nestes dois polos, no entanto o que Espinosa nos ensina com sua filosofia é que só através da alegria podemos nos tornar livres. Tanto na alegria quanto na tristeza, podemos sentir flutuações imaginárias da nossa potência de agir. Podemos adotar uma postura alienada em relação à vida ou apostar na criação.

O sofrimento psíquico e a ideia de incapacidade, impossibilidade, doença, está sempre permeando a vida das pessoas que fazem tratamento na saúde mental, elas trazem a marca, o estigma, a discriminação vivida em vários contextos sociais: na família, na escola, no trabalho, na rua, para falarmos apenas de alguns.

O Teatro do Oprimido trouxe essa possibilidade de dialogar corporalmente, expressivamente e esteticamente com as marcas da opressão, mas também com os desejos, com os afetos paixões de alegria e tristeza e nossas possibilidades e impossibilidades de singularização. Construção coletiva, diálogo e entendimento, afecção e afetação, encontros dentro e fora do CAPS, que possibilitaram o enfrentamento do sofrimento.

Neste sentido, mesmo que não se reflita, que não tenhamos consciência das relações entre oprimido e opressor, elas estão aí. São relações em que necessidades fundamentais são negligenciadas e através do rótulo as pessoas são marcadas em lugares de inferiorização.

O processo de relatar as histórias não foi um processo nem difícil nem fácil, mas sim um momento que fez emergir a força e o sofrimento implícito nas histórias,

houve muito acolhimento e o grupo teve a oportunidade de se sentir à vontade e confiante da importância desta partilha, vinha sendo e foi um território propício para isto, um território propício para o surgimento de novos modos de subjetivação e produção de subjetividade.

Foi um processo muito rico, de acolhimento, de escuta, de valorização da dor do outro, mas também de identificação e de percepção da carga que cada história trazia para pensarmos aspectos particulares, singulares e coletivos inerentes à loucura, ao sofrimento. Talvez, nesse momento, o grupo possa ter clarificado mais o sentido do Oprimido do Teatro do Oprimido. Como pontua Etenio (DIÁRIO DE CAMPO, 20/01/2017, p. 5), muitas vezes não percebemos que a opressão também está dentro de nós mesmos, ou que temos possibilidades de enfrentar a opressão.

Sair da mente e ir para o coração, porque a mente é opressora, a mente é oprimida. Se você deixar a mente de lado, se você não vai na onda da mente, se você não se identifica com as coisas da mente. Precisa de meditação. Meditar é sair da mente e ir para o coração. [...]. Podemos ir além do coração. [..] Coração é teatro, é música, [...]. Fazer a pergunta quem sou eu? Pergunta para tirar o opressor e o oprimido de dentro de você (ETENIO, Diário de Campo, 20/01/2017, p. 5).

Essa capacidade de deixar fluir proposta por Etenio não é uma tarefa fácil de exercitar em nossa sociedade. Estamos acostumados a funcionar presos as imagens que fazemos7 de encontros que tivemos e nos geraram desconforto, tristeza, constrangimento, e também somos moldados por padrões culturais e sociais que nos são passados desde criança. Assim, temos medo, ódio, desesperança e outros sentimentos que podem nos levar ao desvalor e as impossibilidades.

Não se trata aqui de trazer falas sobre o sofrimento, queixas, ou mesmo as histórias relatadas nas oficinas de Teatro do Oprimido, elas com certeza foram fortes, surpreenderam e impactaram a todos nós. No entanto, falar do que se deu em relação à singularização das pessoas implica em relatar desde o início o que o teatro trouxe de novidade para cada um de nós. Novidades exercitadas em um “(des) praticar” a noção de clínica (VASCONCELOS, 2018) para potencializar a vida na clínica, no serviço e fora dele. Praticar o teatro enquanto novidade na clínica e também o caráter pedagógico do Teatro do Oprimido, nos ajudando à: dialogar, pensar, transformar e fazer existir outras formas de ser e agir. Ser ator, ser atriz, ser participante e protagonista, não mais usuário ou doente e sim ser co-produtor do conhecimento.

Em relação ao teatro, o que foi cartografado guarda muitos encontros, afetos, modos de expressão, caminhos produzidos, formas de olhar, sentir, perceber. Foram descobertas novas formas de se afetar e de afetar o outro, novas formas de encontro. Durante todo o processo existem momentos marcantes que podem ser exemplificados por cada um de nós, no entanto, o dia da apresentação com certeza marcou os participantes de várias formas:estar em um novo espaço - o teatro, o ser ator/atriz; o stress da estreia da peça; a ansiedade pelo reconhecimento; o aprendizado da técnica; a liberdade de improviso/criatividade; a singularização.

Nos ensaios da peça e nos vários espaços de produção da estética do oprimido, os participantes foram afetados: desenhando, poetizando, coreografando, explorando ritmos, ensaiando a construção de músicas51 e criando sonoplastia para a

peça. As expressões plásticas transmitem sentimentos, apropriações da história, compartilhamento de vivências, afetos, percursos vividos, expressam quem sabe um envolvimento, uma identificação com aspectos da história da protagonista. Fizemos durante o processo: acrósticos, poesias, tentativa de criação de uma música, entre outros. A arte e seu poder de afetação singular, sensível.

A construção do cenário por Roberto52 foi um momento ímpar, surpreendeu a

todos a sensibilidade de expressar no tecido o interior dos dois principais cenários onde se desenvolve as cenas da história, a casa de Maria Aparecida e o hospital onde ela é internada e permanece durante sua gravidez. Cenário muito rico de detalhes visuais, simbólicos, uma produção estética oferecendo a peça uma maior possibilidade de expressar para a plateia os elementos sentimentais, físicos, e ambientais da história: da casa, um grande sofá, a televisão, quadro com flores na parede, e do hospital, a balança de pesar, a cruz, o relógio e a caveira simbolizando quem sabe a duração do sofrimento, e até uma placa de proibido fumar (Figura 7).

Analisando o vídeo da construção do cenário, podemos perceber vários movimentos nesta construção, não houve um direcionamento, partimos de um tecido cru de aproximadamente 1 metro e meio por 90 de largura e convidamos Roberto para pensar em como poderíamos fazer.

51 Maria Aparecida iniciou a composição de uma música, que não foi finalizada e não entrou na peça.

Anexo II.

52 Roberto, no entanto, não esteve presente na peça, foi internado no sábado (dia 07/08) logo após ter

Fonte: a autora (2018).

Já havíamos produzido desenhos e pinturas em tecidos menores explorando livremente formas de retratar o vivido, a percepção de cada um sobre as histórias e sobre o seu próprio processo. Roberto havia desenhado uma cena no tecido que retratava o centro da cidade (figura 8), com inúmeros prédios, que segundo ele tinha a ver com a superação da história de Dayse, outra história que estávamos construindo na época. A arte, a estética proporcionou a todos um conhecimento melhor e uma maior interação com Roberto, ver seus desenhos, sua energia e movimento que não conhecíamos no dia a dia.

Os prédios foram desenhados com muitos detalhes, as janelas, o interior, as luzes, havia riqueza, movimento, energia, muitas linhas, fumaça, múltiplos prédios, múltiplas janelas, multiplicidades como podemos conferir na figura 8.

Figura 8 - Desenho do Centro, baseado na história de Dayse

Fonte: a autora (2018).

Nos ensaios, passou a fazer o personagem de um dos irmãos da protagonista, criando falas espontaneamente, falas coerentes com a peça. Apesar de calado, ele estava no contexto da peça, conectado a tudo que estava acontecendo.

Na figura 9 quanta riqueza de detalhes na representação do encontro entre Aparecida, Andréa e Islênio. Muita beleza na Praça, num dia de céu azul ensolarado. Iniciou o desenho no CAPS durante a oficina e levou para casa para terminar. Foi anterior a confecção do cenário.

Figura 9 - Encontro de Islênio, Maria Aparecida e Andréa

Fonte: a autora (2018).

Voltando ao nosso tecido cru, Roberto ficou como que analisando o tecido, outros participantes também observavam, eu e Henrique (bolsista) elucubrávamos sobre como prender o tecido posteriormente com ilhoses. Nos ocupamos também de

conseguir papéis para colocar por baixo do tecido, uma vez que o tecido estava no piso e este apresenta sulcos. Enquanto isso, Roberto permanecia olhando para o papel, mexia as mãos com movimentos curtos que pareciam fazer um reconhecimento do tecido como que visualizando seu espaço, dimensionando visualmente o espaço, depois de aproximadamente 8 minutos Roberto compartilhou que estava pensando em fazer de um lado do tecido o consultório (hospital) e do outro lado a casa.

Houve dois minutos de algumas elucubrações, que traziam ideias de proporção, perspectiva, sugestão de desenhar uma rua, de um lado a casa, do outro o hospital. Dois participantes disseram que deveria dar maior importância, ser maior o hospital, por que trata dos doentes. Roberto trouxe também o desejo de fazer a praça. Em meio as elucubrações, havia também o endereçamento a Roberto para assumir a construção do painel, e em seguida quando todos pararam de elucubrar e ele ficou de novo quase sozinho com o tecido começou a desenhar a casa e o consultório. Foi incrível esta produção de Roberto, talvez tenha sido o ápice de seu envolvimento com o teatro e de seu relacionamento e compartilhamento de produção e troca com os colegas e colaboradores no CAPS, durante todo o seu tratamento.

Figura 10 - Compartilhamento da pintura do cenário

Fonte: a autora (2018).

A Figura 10 chama atenção pelo envolvimento de uma usuária que não compõe o elenco da peça e que participou poucas vezes da oficina, mas principalmente pela curiosidade e sensibilidade da profissional do CAPS Casa Verde que sempre observava os jogos e ensaios de longe, neste dia sentou-se para apreciar a produção do cenário demorando-se para acompanhar cada escolha de cor, cada diálogo, o cuidado com que cada um pintava e pedia orientação ao autor do cenário.

Outras pessoas que não aparecem nesta foto também participaram, apreciaram, circulando por este espaço de produção, assim como, outros profissionais pararam um tempo maior do que nos outros dias, para observar a produção do cenário.

É interessante como o universo da arte, esta possibilidade de se expressar sem o uso da palavra, revela muito de nós, transborda a potencialidade. Todo esse percurso fala da singularização e de como a palavra não consegue dar conta de tudo. Somos estrangeiros também e nossas emoções, expressões, sentimentos não estão claros e precisam ser produzidos, o que, na maioria das vezes, não é fácil.

O fato é que este foi o último dia que Roberto frequentou as oficinas de Teatro do Oprimido e também o seu tratamento no CAPS. No caminho de volta para casa, um desses germens, esse estranho que, às vezes, habita em nós apareceu para Roberto, e então, foi internado no fim de semana, após saída a termo do hospital, não retornou ao tratamento no CAPS. A equipe do CAPS fez um trabalho de visita domiciliar para possibilitar seu retorno, uma vez por semana o serviço conseguiu um carro para ir buscá-lo em casa, e em início de outubro de 2017, Roberto retornou ao CAPS acompanhado de sua mãe, descontinuando sua ida e sendo internado novamente.

A construção de um Acróstico53 foi um outro momento de muito envolvimento

dos participantes e revela a força da associação coletiva de palavras, aqui carregadas de afetos, expectativas em relação ao teatro. “A satisfação consigo mesmo pode surgir da razão; e só a satisfação que surge da razão é a maior que pode existir.” [Proposição 52 da Ética 4] (SPINOZA, 2016, p. 190).

Em 17/03/2017, no nosso oitavo encontro exercitamos a força da construção do desejo pelo Teatro do Oprimido. No quadro 7 aparecem todas as palavras e frases sugeridas. Como exemplo da riqueza na construção, trazemos tudo o que foi pensado na parte do acróstico de Teatro (o acróstico completo consta do epígrafe desta seção).

53 Segundo Dicionário – Acróstico é uma “Composição em verso cujas letras iniciais (às vezes as

mediais ou as finais), lidas no sentido vertical, formam uma ou mais palavras, que são o tema, o nome do autor ou o da pessoa a quem foi dedicada a composição.” Disponível em: https://www.dicio.com.br/acrostico/. Acesso em: 29 out. 2018.

Quadro 7 - Construção do Acróstico Ter a experiência Entusiasmo, emoção Aprendendo a ser alegre, Teatro

Ritmo da reconstrução Oh! Que maravilhoso

Letra T - Elânia - terapia ocupacional, terapia mental e Joaquim sugere- ter a experiência

Letra E- Entusiasmo, emoção,

Letra A- Aprendizado, alegria. Alegria primeiro e aprendizagem depois. Alegria com aprendizagem ou aprendizagem com alegria.

Letra T - Teatro

Letra R - Raiva, razão, relacionamento. Sai do teatro e vai pra raiva será que as pessoas vão entender? Reconstrução. Ritmo. Razão de se viver. Ritmo da reconstrução.

Letra O - Oportunidade. Oh que maravilhoso. Oh que lindo é o ritmo. Fonte: Diário de Campo (17/03/2017, p. 35).

Pelo acróstico (quadro 7), colocamos expectativas como já dissemos antes, mas também pudemos inferir possibilidades de expressão de sentimentos que poderiam vir à tona ou não, ou que fazem parte do nosso imaginário, das nossas ideias. Expressar a raiva, que ganhou um lugar no acróstico foi uma delas. A intolerância, o preconceito, as máscaras que a sociedade cria, a hipocrisia implícita. Incrível como esse acróstico coletivo projetou a força do que iríamos vivenciar com o Teatro do Oprimido, desejos de lutar, desejos de transformar realidades sofridas, ou quem sabe injustas.

Segue alguns desenhos realizados durante explorações de som e dança, mas também durante o processo de construção do cenário, ensaios, diálogos de apropriação da peça. Através dos desenhos, das poesias conhecemos muito mais um do outro, trocamos afetos, compusemos frases, rimas, músicas, poesias. Durante tentativas de confecção de uma música para a peça Maria Aparecida cantou,

Essa vida complicada, tão difícil, descarada. Com essa dificuldade de viver assim. Tão complicada, tão confusa e descarada. Essa vida que não tem jeito, sem rumo e sem destino assim. Eu era adolescente foi aí que a vida complicou, veio a gravidez na adolescência e tudo mudou... Mudou de um jeito diferente, mudou o jeito muito complicado. Um jeito machucado. Foi assim que a vida rumou. Essa vida infinita com um jeito complicado, foi tudo que atrapalhou. Foi a gravidez na adolescência, foi tudo que culminou... Pesquisadora - Porque que a vida é descarada? Maria Aparecida - Porque eu engravidei nova. rs,rs,rs, rs (Diário de Campo, p. 46, 05/07/2017).

Na figura 11 os desenhos revelam o entendimento do contexto da história de Maria Aparecida, momentos marcantes da história que cada um pôde revelar. Assim como outras expressões, que trazem nosso desejo de coisas boas na vida, beleza e perfume das flores. Washington desenhou Maria Aparecida contida no leito, interessante a forma de denunciar a opressão vivida, revelar o sofrimento. Mary representou a gravidez na adolescência. Muita realidade e beleza de percepção, de sentimento contextualizado.

Figura 11 - A Estética do Oprimido

Fonte: a autora (2018).

A Estética do Oprimido é um processo muito importante. Foram momentos de oferecer um outro canal de expressão diferente da fala, do diálogo, ativar os neurônios estéticos como nos assinala Boal (2009). Estabelecer outras representações, trazer o concreto e o abstrato vivido, expressando, trocando, exemplificando, clarificando e materializando o potencial, além de materializar a memória do processo vivido.