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Esta situação está diretamente relacionada com a constituição do Estado que, como já se viu, ocorreu de maneira distinta àquela esboçada por Charles Tilly. A ausência de um inimigo externo capaz de induzir os líderes políticos africanos a cobrar impostos e preparar-se para a guerra fez com que o território não fosse de vital importância para a constituição do Estado tradicional africano. O poder era exercido sobre pessoas e não sobre a terra e os domínios territoriais não eram questionados (Herbst, 2000). Neste sentido, afirmar que as fronteiras tiveram papel na consolidação do Estado africano é equivocado. Na verdade, elas tiveram um papel degenerador, que não contribuiu para a consolidação do poder territorial.

O alerta de Tilly de que a construção dos Estados partia da percepção do inimigo no Estado vizinho (o que não ocorria na África pré-colonial) remete que a preocupação dos Estados está em um nível intermediário de análise: as ameaças internas ao Estado e as forças de conflito do sistema internacional como um todo não seriam a primeira preocupação dos governantes. No primeiro caso, admite-se aderência (condicionada por situações específicas, logicamente) da população ao governante; enquanto no segundo, esbarra-se na questão de que o sistema internacional como um todo não podia (e ainda não pode) ser uma ameaça direta para todos os Estados uma vez que a falta de recursos e a distância entre algumas unidades não caracterizam uma ameaça. Seria, portanto, no nível regional a primeira preocupação dos Estados – salvo as grandes potências – uma vez que é com os vizinhos imediatos que um Estado relaciona-se mais intensamente:

116“As funções das relações internacionais para os insurgentes africanos foram, em vários aspectos,

pouco diferentes daquelas dos Estados reconhecidos. Líderes insurgentes, tal como chefes de Estado, usaram contatos internacionais para fortalecer seu próprio controle sobre sua estrutura política doméstica, obter aceso a recursos externos e, enquanto possível, assegurar sua própria sobrevivência”

47 “seen from most countries of the world, the relevant strategic setting is not primarily at system level – the first priority is regional” (Buzan, et al., 2003 p. 44)117.

A construção do susbsistema africano e, conseqüentemente, a sua relação com a consolidação do Estado africano teve início no fim do século XIX. A chamada Conferência de Berlim (1885), responsável pela partilha da África entre as potências colonizadoras traçou as fronteiras entre as colônias que, mais tarde, tornar-se-iam os Estados africanos.

“O mapa foi fragmentado em impérios controlados pela Europa. Uma grande parte do mundo havia sido dividida entre as potências imperiais européias antes de 1850, e a fase final da subdivisão aconteceu nos cinqüenta anos seguintes, quando as colônias tão distantes entre si, como a Nova Caledônia e o leste da África, foram adquiridos pela Alemanha; o Congo tropical, dominado pela Bélgica; partes do nordeste da África rendidas à Itália...” (Blainey, 2008 p. 291).

A chegada dos europeus teve conseqüências importantes na consolidação do Estado africano. Além da já mencionada divisão do território na ausência de qualquer conhecimento geográfico e antropológico, a divisão arbitrária – como já dito – complicou a construção de identidades nacionais em relação aos novos Estados africanos.

“They [os europeus] created a system of boundaries and frontiers new to Africa; they established novel economic systems based on mines and cash crops; they built infrastructure systems that still determine patterns of trade; and they left their religions, languages, and cultural practices” (Herbst, 2000 p. 58)118.

Estava estabelecido então um padrão alienígena de difusão de poder no continente africano. A questão territorial, como já vista, não era levada em conta nos cálculos dos governantes indígenas uma vez que o poder era difundido sobre a

117 “visto pela maioria dos países do mundo, o ajuste estratégico relevante não está primariamente em

nível sistêmico – a primeira prioridade é regional”

118“Eles *os europeus+ criaram um sistema de fronteiras e limites novo à África; eles estabeleceram

novos sistemas econômicos baseados em minas e lavoura; e eles construíram sistemas de infraestrutura que ainda determina padrões de comércio; e eles deixaram suas religiões, línguas e práticas culturais”

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população e o domínio territorial era inquestionável devido aos altos custos de difusão do poder em terras mais remotas.

A surpreendente força das fronteiras coloniais permitiu que os colonialistas não se preocupassem com o controle sobre as áreas remotas, utilizando-se, nelas, da lealdade de autoridades locais. Isto porque “the europeans, whatever their formal theory of rule, were generally unsuccessful in changing cost structures to allow for a systematic expansion of authority into the rural areas” (Herbst, 2000 p. 94)119. Assim, muitas similaridades foram mantidas do período colonial para o pós-colonial.

As diversas lutas de libertação colonial e os diferentes modos pelos quais as colônias na África foram conquistando sua independência trouxeram importantes conseqüências para o Estado africano. As fragmentações políticas que ocorreram nas grandes colônias européias deram um novo desenho para as fronteiras dos recém- nascidos Estados africanos que, ao proclamarem suas independências ora se associavam com outros, ora insistiam em permanecer livres. “Assim, o processo de balcanização territorial africano foi a regra” (Vizentini, 2007 p. 167).

As fronteiras herdadas, assim, tornaram-se um mecanismo importante nas relações entre os Estados africanos, definindo de uma vez por todas o padrão de influência que o subsistema exerceria sobre a consolidação do Estado africano. As fronteiras entre os Estados africanos recém independentes acabaram mantidas por serem a única “realidade tangível” (Herbst, 1989 p. 676). Foi neste sentido que os principais africanistas da década de 1960 trataram de expor seu comprometimento com em relação à sua manutenção. Em quanto os Estados africanos tratavam de consolidar-se enquanto pessoa jurídica de Direito Internacional Público (o que não requer funcionalidade do Estado), um fervilhão de atos políticos teve lugar na África na tentativa de (re)definir as fronterias recém “libertadas” do jugo colonial.

“Neste contexto de divisão continental, a Etiópia do Imperador Hailé Selassié encontrou espaço para projetar-se politicamente no continente, defendendo simultaneamente seus interesses quanto à anexação da Eritréia em 1962 (ex-colônia italiana, muçulmana, federada com a Etiópia cristã desde 1952). Selassié, tirando proveito do único Estado (e

119 “os europeus, não importa qual fosse sua teoria de domínio, não tiveram êxito em mudar a estrutura

49 dinastia) que lograra escapar ao colonialismo, convocou uma nova conferência africana em 1963. Apesar das divergências existentes, esta deliberou a criação da Organização da Unidade Africana (OUA), com sede em Addis Abeba e integrada por comissões para arbitramento de conflitos, e comitês de libertação para os territórios ainda submetidos. A OUA aprovou, ainda, como regra para a África a manutenção das fronteiras herdades do colonialismo, face à absoluta falta de outros parâmetros para delimitação das fronteiras dos novos Estados. Assim, a própria integridade territorial etíope era preservada” (Vizentini, 2007 p. 170).

A grande preocupação desses Estados, na ocasião, era com a vulnerabilidade que lhes era inerente no seio de sua consolidação. Essa vulnerabilidade seria a razão pela qual um Estado com problemas de secessão não apoiaria grupos separatistas em outro a fim de não abrir precedentes internos. Acreditava-se que “since most states are vulnerable to external incitement to secession, it was obvious to the majority of states that reciprocal respect for boundaries, and mutual abstinence from irredentism, would be to their advantage” (Touval, 1972 p. 33)120.

Em parte, esse chamado “argumento da vulnerabilidade” pode ser corroborado pela história da África através das ações de dois daqueles que foram considerados dos principais personagens pan-africanistas. O imperador Etíope Hailé Selassié e o presidente tanzaniano Julius Nyerere figuraram um espetáculo diplomático a parte durante os três sangrentos anos da guerra civil da Nigéria, quando as forças do General Emeka Ojukwu tentaram independentizar a República do Biafra.

De modos diferentes, Selassié e Nyerere demonstraram como o subsistema regional africano pôde interferir na consolidação do Estado nigeriano. Ao que se decidiu pela “santificação” das fronteiras dos Estados africanos, os governantes puderam ter tranqüilidade para continuar difundindo seu poder apenas onde lhes era necessário. A ausência de ameaça externa graças à força das fronteiras africanas fez com que não fosse necessária a atenção para o interior, para as áreas mais remotas dos Estados africanos. (Herbst, 2000) também mostra que a extensão da malha rodoviária dos países

120 “uma vez que muitos Estados são vulneráveis à incitação externa à secessão, é óbvio para a maioria

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africanos – com geografia favorável ou não – é diretamente proporcional à densidade populacional das regiões do país em questão. Como ele mesmo disse, “given the lack of external threat, power will be broadcast in Africa at least somewhat like it was during the precolonial period and as it is now encouraged by the Addis rule: profoundly at the political core and radiating out with decreasing authority” (Herbst, 2000 p. 171)121.

Dessa forma, a difusão do poder em áreas povoadas e a garantia de que não há ameaça externa explicam a configuração de um subsistema internacional capaz de compreender toda a África subsaariana, no qual o dilema de segurança é caracterizado pela luta do regime vivente em sobreviver (Engel, et al., 2006). Com a perspectiva de que esse dilema não será alterado tão cedo em boa parte do continente, uma vez que poucos foram os conflitos interestatais em África122 e com a convicção de que essa relativa ausência de guerras entre Estados na África não se deve à democracia destes (Adem, 2007), a difusão do poder nos Estados africanos, a natureza de seus atores e seus dilemas só poderiam ser alterados devido ao impacto das forças do sistema internacional como um todo (o que não ocorreu).

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