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Considerados os três níveis e as dinâmicas deles procedentes, compreende-se que, apesar das mudanças ocorridas no status dos Estados africanos (de colônia para Estados soberanos) e nos stati quo da ordem internacional, a variável dos custos de difusão do poder não foi alterada com o decorrer dos anos nem com os fortes impactos dos acontecimentos no subsistema africano e no sistema internacional como um todo. Os efeitos na estatalidade e nas riquezas dos Estados africanos sim foram sentidos, mas os padrões das dinâmicas sócio-políticas internas aos Estados e as razões pelas quais surgiram grupos não-estatais e insurgentes também se mantiveram.

Como se verificou, por muitas vezes, em África, o Estado não pôde atender à chamada Estatalidade, ao passo que grupos insurgentes o fizeram, sendo até mesmo reconhecidos como ator político por outros Estados. Não obstante, a mitologia de Estatalidade existente não é capaz de enquadrar os Estados africanos. Para Clapham (1996), nenhuma das três maneiras de analisá-la (1- governo com controle físico de seu

128 Inspirada no romance “Robson Crusoé” de Daniel Defoe, Kabou alega que as elites africanas

simbolizam conscientemente o bom selvagem e incorporam o complexo de dependência do primitivo em relação ao homem branco. Segundo ela, as elites africanas têm interesse em manter essa imagem do continente, pois ele é o motivo pelo qual muita da ajuda financeira Ocidental é enviada para a África.

55 território e provedor de bem-estar, e explorador; 2- “idéia de Estado”129, pela qual os Estados são construídos nas mentes das populações; e a “associação territorial de pessoas reconhecida pelos propósitos da lei de da diplomacia como membro legalmente igual do sistema de Estados”130) serve para a África, uma vez que na maioria dos

Estados, há lacunas entre os mitos e as realidades de estatalidade e, no caso africano, essas lacunas tendem a ser maiores.

Primeiramente, os governos africanos tendem a não alcançar legitimidade perante suas populações. Essa falha geralmente é associada ou à artificialidade das fronteiras (o que leva ao surgimento de grupos insurgentes) ou à moralidade (no caso de o governo ser ditatorial e não conceder liberdades políticas ao povo). Outra falha é que em muitos casos o governo não tem controle efetivo sobre o território. Governos no exílio ou que controlam apenas a capital não têm condições de preencher esta lacuna (Clapham, 1996).

Daí, a quase-estatalidade foi minada por dois processos que partiram da mesma contradição: “the idea of negative sovereignty always rested on the contradiction that staes could retain their independence of the international system while remaining dependent on the international system” (Clapham, 1998a p. 146)131. Primeiro, os regimes africanos perderam a popularidade que tinham na época da independência, tornando a quase-estatalidade um mecanismo pelo qual aqueles que controlavam o governo clamassem por ajuda externa para reprimir sua própria população. Tal processo intensificou-se com as condicionalidades impostas pelos fornecedores de ajuda, uma vez que para cumpri-las, era necessário reprimir ainda mais a população e, com isso, perder o pouco que havia restado da popularidade que ainda havia restado ao governo. Um exemplo claro disso é a aprovação de leis antiterrorismo em África como forma de escambo para receber ajuda financeira e militar.

A íntima relação entre falta de legitimidade do governante, privatização do Estado, altos custos de difusão do poder e conseqüente fraca distribuição da renda acabaram fazendo surgir os grupos insurgentes já mencionados que passaram a

129 Barry Buzan, Peoples, States and Fear: The National Security Problem in International Relations

(Brighton: Wheatsheaf, 1983), pp.44-53.

130 F. S. Northedge, The International Political System in Fred Halliday, Rethinking International Relations

(Londres: Macmilla, 1994), p.78.

131 “a idéia de soberania negativa sempre se baseou na contradição de que os Estados poderiam reter

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comportar-se como quase-Estados, uma vez que estes atendiam à maioria (senão a todos) critérios de Estatalidade, inclusive o critério mais básico que é o controle físico sobre um território – não necessariamente a capital – e sua população (Clapham, 1998a). A emergência, então, desses grupos insurgentes e sua absorção na política internacional teve como resultado o enfraquecimento da linha divisória entre Estados e não-Estados, que se tornou praticamente imperceptível e permitiu a existência de variados graus de estatalidade (Clapham, 1998a p. 11 e 15).

A partir desta crítica, a África apresenta 3 desafios importantes para o debate neo-neo: 1- o princípio ordenativo do sistema internacional é mais a hierarquia ordenada que a anarquia desordenada; 2- a dicotomia internacional/doméstico é falha, uma vez que 3- é difícil manter a claridade conceitual da distinção entre as esferas internacional e doméstica (Dunn, 2000). Assim sendo, a principal contribuição da África às teorias das relações internacionais é a sua natureza não-westfaliana (Engel, et al., 2006). Isto não significa, contudo, que as teorias positivistas (principalmente) devam ser descartadas e que uma nova teoria deve ser desenvolvida para levar a cabo uma análise sobre as relações internacionais africanas. Significa sim, que as teorias racionalistas já existentes devem adequar-se à natureza não-westfaliana das relações internacionais, uma vez que devem lidar com atores não-Estatais, questões de identidade, difusão de poder interna e externa, entre outros.

Olhar África a partir desta perspectiva pode ser benéfico para sua melhor compreensão. É levando em consideração parte do vocabulário realista tal como a anarquia, o objetivo primeiro de sobrevivência do ator (seja ele Estado ou não) e a questão da auto-ajuda, isto é, a percepção que “nenhum Estado pode contar total ou parcialmente com outros Estados para defendê-lo” (Nogueira, et al., 2005a p. 31), seja ele de faço, de jure ou ambos, deve-se analisar os processos políticos em África. Afinal, se Clapham (1996) afirma que as relações internacionais em África foram marcadas pela “política de sobrevivência do Estado”, Clark (2001) deriva dessa concepção a noção de “segurança do regime”, que continua centrada no poder e no interesse132.

Como se verá, não é exagero aplicar esse vocabulário para o estudo da África assim como a visão de Carr (2001 p. 147) de que “o exercício do poder parece sempre

132 Clark (2001, 85) chega a afirmar também que “a noção de ‘segurança do regime’ *...+ é desenvolvida

como uma chave-mestra teórica para as relações internacionais da África” e chega a afirmar que existe um “realismo não-positivista”.

57 gerar o apetite por mais poder” e de que “não existe [...] „nenhuma possibilidade de traçar uma linha precisa entre o desejo de viver e o desejo de poder‟”. Desta maneira, este estudo tratará a questão do Chifre da África a partir desta perspectiva (africanismo ou novo realismo), considerando a difusão do poder, e os atores dotados de diferentes graus de estatalidade.

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