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2 O SIGNIFICADO DOS PROCESSOS DE EXPROPRIAÇÕES NO

2.3 Outros métodos das expropriações segundo Karl Marx

2.3.2 O Sistema da Dívida Pública

Conforme demonstrado por Marx, no estágio da “acumulação primitiva”, a dívida pública surge como estrutura de apropriação privada dos recursos de toda a sociedade. A dívida pública cumpria uma função de destaque, não sendo, portanto, uma novidade do tempo presente. Entretanto, é possível dizer que a dívida assume um papel estrutural no contexto da hegemonia rentista do capitalismo contemporâneo.

Sigamos o raciocínio de Marx, para em seguida, buscar apreender a vigência desse mecanismo na realidade recente. O endividamento17 já era sarcasticamente identificado pelo autor, como um eixo importante da constituição do capitalismo, alicerçado na oferta do crédito farto aos governos. Para ele:

A dívida pública torna-se uma das alavancas mais enérgicas da acumulação primitiva. Como com o toque de varinha de mágica, ela

17 “A dívida pública, isto é, a alienação [Veräusserung] do Estado – seja ele despótico, constitucional ou republicano – imprime sua marca sobre a era capitalista. A única parte da assim chamada riqueza nacional que realmente integra a posse coletiva dos povos modernos é sua dívida pública. Daí que seja inteiramente coerente a doutrina moderna segundo a qual um povo e torna tanto mais rico quanto mais se endivida. O crédito público se converte no credo do capital. E ao surgir o endividamento do Estado, o pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, cede seu lugar para a falta de fé na dívida pública”.

dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital, sem ser necessário que seu dono se exponha aos aborrecimentos e riscos inseparáveis das aplicações industriais e mesmo usurárias. Os credores do Estado, na realidade, nada dão na realidade, pois a soma emprestada é convertida em títulos de dívida facilmente transferíveis, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar nas suas mãos como se fossem dinheiro soante. [...] uma boa porção de cada empréstimo do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis de toda a espécie, a agiotagem, numa palavra: o jogo da bolsa e a moderna bancocracia (MARX, 2017, p. 243).

O comércio e guerras comerciais marítimas, o mecanismo político de empréstimos, são algumas entre as tantas fontes de despesa que alimentam o sistema de crédito e induzem ao aumento do volume de títulos de dívida pública, alavancando a importância e presença da bolsa e dos bancos num sistema nacional e internacional de endividamento do Estado. Marx destaca ainda, de forma contundente, a relação entre a dívida pública e crédito internacional, ressaltando as origens desses recursos, que provem da exploração do trabalho, sobretudo, força de trabalho precária e muitas vezes infantil: “muito capital que parece hoje nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, era ontem, na Inglaterra, sangue infantil capitalizado” (MARX, 2017, p. 247).

Para Behring (2011, p. 20), “o fundo público se forma a partir de uma ‘punção’ compulsória”, relacionado diretamente ao fato do fundo ser composto em grande medida pelos impostos, capitalizados pela expropriação das massas de trabalhadores. Neste sentido, ressalta a autora, o Estado participa ativamente do processo de repartição da mais-valia e este movimento, contudo, ocorre de duas maneiras: i) através da taxa de juros, da renda da terra e do fundo público (os impostos); ii) retorno de parcelas do fundo público na forma de juros, predominantemente por meio da dívida pública (BEHRING, 2011).

Salvador (2010), destaca o papel relevante que o fundo público ocupa na articulação com as políticas sociais e na sua relação com reprodução do capital. Para o autor, a presença do fundo público na reprodução da força de trabalho e gastos sociais é uma questão estrutural do capitalismo.

Para Francisco de Oliveira18 (1998, p. 19‑20), “o fundo público, em suas diversas formas, passou a ser o pressuposto do financiamento da reprodução da

18 Em relação à natureza do fundo público, Oliveira (1998), chama atenção para o seu papel no contexto dos anos gloriosos do capitalismo. Diz o autor: “o fundo público é agora um ex ante das

força de trabalho, atingindo globalmente toda a população por meio dos gastos sociais”. Vale ressaltar que no caso especifico do Brasil, a regressividade da carga tributária faz com que o “custo social” das políticas sociais recaia com maior intensidade sobre a classe trabalhadora. Esta peculiaridade pode também ser percebida na maioria dos países periféricos, sobretudo ao que Salvador (2010) chama atenção, à escassa tributação sobre a renda.

Neste aspecto, os estudos de Salvador (2010), Behring (2011) ressaltam que a dívida pública constitui um importante mecanismo de apropriação do fundo público pelo capital. A mundialização do capital em sua vertente financeirizada, dinamizado por uma intensa crise de reprodução do capitalismo contemporâneo, recorre a violentos ataques aos recursos do fundo público, por meio da manutenção da apropriação privada do capital portador de juros sobre o orçamento estatal. A dívida pública, neste caso, além de viabilizar a acumulação de capital por meio do endividamento do Estado, é resignificada em conjunturas de crise, ao atuar como elemento “contra tendencial à queda da taxa de lucro” dos capitalistas no setor produtivo (BEHRING, 2011). Segundo Cislaghi (2017, p. 156):

O fundo público, como uma fundamental contratendência à queda das taxas de lucro, é, por inúmeros mecanismos, privatizado para servir de esteio ao setor privado. O pagamento de juros e amortizações da dívida pública para o capital financeiro é comprovadamente uma das formas de privatização mais fundamentais, mas há, ainda, outras que necessitam ser melhor evidenciadas.

Segundo Salvador (2010), existe diversas modalidades de gastos sociais e de financiamento, incluindo a questão da manutenção e da valorização dos capitais pela via da dívida pública. Disso decorre um aumento da transferência de recursos do orçamento público para o pagamento de juros da dívida pública, um dos aspectos que alimenta o rendimento dos rentistas. Além disso, incentivos fiscais e isenções de tributos são concedidos para o mercado financeiro à custa da estabilidade do fundo

condições de reprodução de cada capital particular e das condições de vida, em lugar de um caráter ex post, típico do capitalismo concorrencial” (1998, p. 21). De forma sintética, os recursos públicos na figura dos impostos diretos e indiretos assumem grande parte da responsabilidade pela acumulação de capital, seja de forma indireta ou através da produção de bens e serviços públicos. Nesse sentido, Oliveira (1998), se refere ao fundo público como “antivalor”. Para ele, o fundo público torna-se um “anticapital”, não sendo, portantovalor, à medida que decorre de sua função de sustentação do capital destruir o caráter auto reflexivo do valor (1998, p. 29).

público. Dessa forma, a reprodução do capitalismo seria impensável sem a mediação desses recursos públicos.

Com a financeirização da riqueza, os mercados financeiros passam a disputar cada vez mais recursos do fundo público, pressionando pelo aumento das despesas financeiras do orçamento estatal, o que passa pela remuneração dos títulos públicos emitidos pelas autoridades monetárias e negociados no mercado financeiro, os quais se constituem importante fonte de rendimentos para os investidores institucionais (SALVADOR, p. 2010).

Por outro lado, evidencia-se como as contrarreformas neoliberais garantirem relativa segurança aos rentistas para se protegerem das turbulências do capitalismo em uma crise que se arrasta há décadas. Salvador (2010) ainda destaca o papel dos juros da dívida pública pagos pelo fundo público e os seus impactos no orçamento estatal, que deverá “honrar o pagamento de suas dívidas”, limitando os gastos principalmente com políticas públicas. Tudo isso agrava‑se diante da crise econômica.

Salvador (2010) ainda chama atenção para o fato de que as instituições financeiras, fundos de investimentos e seguradoras, detêm juntas, mais da metade do montante da dívida brasileira em seu poder. Isto ajuda a explicar em grande medida, a dimensão de relevância que estas instituições possuem no direcionamento da política econômica no país.

Segundo matéria divulgada pelo Jornal O Globo, a dívida pública federal, que inclui os endividamentos do governo no Brasil e no exterior, teve aumento de 11,42% em 2016, para R$ 3,11 trilhões. Em 2015, a dívida pública havia registrado crescimento maior, de 21,7%, ou R$ 498 bilhões. Já em 2014, a expansão havia sido de 8,15%, ou R$ 172 bilhões, segundo números oficiais.

No ano de 2017, a projeção do Tesouro Nacional estimava que a dívida pública federal continuaria avançando, atingindo o patamar de R$ 3,65 trilhões de reais. A sustentabilidade e redução da dívida pública, principalmente recorrendo a manutenção da política de superávits fiscais, às custas do brutal corte de recursos, sobretudo no campo da seguridade social, culmina na condução da política de ajuste fiscal conduzida pelo Estado, cujos “efeitos colaterais”, explicitam-se de forma nefasta para a classe trabalhadora, seja por meio da estagnação do salário e do emprego nos setores público e privado, perda de direitos trabalhistas, precarização do trabalho, dentre outras manifestações.

Apesar de Marx não ter cogitado a proeminência que a dívida pública viria a adquirir no desenvolvimento da sociedade capitalista, o autor já vislumbrava que seriam as camadas menos favorecidas da sociedade que acabariam arcando com o seu ônus, por se tratar de uma apropriação, mediada pelo aparato legal do Estado, de parte da riqueza socialmente produzida pelos trabalhadores.