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Sistema Não Contributivo, Universalização x Seletividade

No documento victormartinslopesdearaujo (páginas 108-113)

2.6 Os anos 2000 e o governo PT

3.1.5. Sistema Não Contributivo, Universalização x Seletividade

A Assistência Social brasileira é reforçada na lei também como um sistema de proteção social não contributiva, como forma de distinguir, por exemplo, do caráter da previdência social brasileira, sistema de proteção social que é realizada mediante contribuição. Os benefícios previdenciários ou do seguro só são acessíveis quando alguém se “filia” à previdência e paga uma quantia determinada mensalmente. Portanto, essa proteção é contributiva porque destina aos filiados e não à população geral. Não significa que a assistência social, como outras políticas sociais, opere uma doação, entregue um bem a alguém financiado pelo orçamento público. O fato de a política de assistência ser não contributiva significa que não é exigido pagamento específico para oferecer a atenção de um serviço. O acesso é custeado pelo financiamento público, cuja receita vem de taxas e impostos. Assim, os custos e o custeio são rateados entre todos os cidadãos (SPOZATI, 2007, p.22).

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O sentido de não contributivo é relativo à sociedade de mercado. Nesse tipo de sociedade, onde vivemos, concordando ou não com seus princípios (diferentemente da sociedade indígena, por exemplo), o acesso ao que precisamos é feito por meio de compra e venda de mercadorias. No caso, é uma sociedade regida pelo dinheiro e pela mercadoria. O sentido de não contributivo significa do ponto de vista econômico o acesso a algo fora das relações de mercado, isto é, desmercantilizado ou desmercadorizado.(SPOZATI, 2007, p.23)

Conforme coloca Spozati, a assistência social é não contributiva, mais temos de ir além, pois somado a esse entendimento, a assistência social brasileira possui o princípio de universalidade, é política direcionada a todo aquele que necessitar. Temos aí uma questão, a questão da universalidade x seletividade.

Art. 3º São princípios organizativos do SUAS:

I - universalidade: todos têm direito à proteção socioassistencial, prestada a quem dela necessitar, com respeito à dignidade e à autonomia do cidadão, sem discriminação de qualquer espécie ou comprovação vexatória da sua condição;

II - gratuidade: a assistência social deve ser prestada sem exigência de contribuição ou contrapartida, observado o que dispõe o art. 35, da Lei n.º 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso);

Nesse ponto temos uma contradição, conforme já mencionado anteriormente, a legislação da política nacional de assistência social foi construída num largo período, e possui em suas linhas o resultado de um embate ideológico, o que a faz em certos momentos contraditória.

Ora se escrito está que a política é universal, a quem dela necessitar, sem exigência de comprovação vexatória de sua condição ou contrapartida, como explicamos o bolsa família? Eis aí a contradição, mas engana-se que isso diz respeito somente a esse programa de transferência de renda, que se coloca fora da legislação da PNAS. Essa questão coloca em foco todas as ações, serviços ou programas realizados pela política. Essa questão vai além de uma contradição semântica ou conceitual. Entendemos que neste ponto está a principal ação do ideal neoliberal na política nacional de assistência social.

Como já vimos neste trabalho, a política nacional de assistência social se coloca como política social, direito do cidadão e dever do Estado, que garante a segurança de acolhimento, convivência e rendimentos, e tem como princípio a universalidade, sendo oferecida a quem necessitar, sem discriminação de qualquer espécie ou comprovação vexatória de sua condição. Neste sentido, se tomarmos o universal como um conceito

110 que abrange toda a população brasileira, como faz a saúde, toda a população brasileira poderia participar dos projetos e programas da assistência social. Programas da assistência social como Bolsa Família, Atenção à Pessoa Idosa, Atenção Integral à Família, Atenção às Pessoas Portadoras de Deficiência, Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, etc., bem como todos aqueles projetos que são ofertados pelos CRAS e CREAS, por exemplo, estariam disponíveis a todo aquele que achar que tem necessidade de tal serviço, por uma simples escolha pessoal.

Todavia, sabemos que não é esta a proposta da assistência social brasileira, na verdade, a Política é bem clara quanto aos seus critérios para que um cidadão participe ou usufrua o que ela oferece, tanto que se estabelece público alvo, em que casos será concedida e seus programas, aí o que parece mais grave, estabelecem critérios de seletividade muito bem acurados. Temos que refletir, o problema é somente conceitual, de se chamar universal? O problema está em estabelecer critérios para o acesso? Percebe-se que o “a quem dela necessitar” tem sido tratado de forma objetiva e restrita.

O sistema de proteção social brasileiro continua universal do ponto de vista do marco legal, mas que tão concepção não conhece a existência real, pois o que se verifica é uma crescente tendência de que a política social é algum tipo de ação voltada para os pobres ou “excluídos” e, por isso, deve ser focalizada. Diante de tal assertiva as controvérsias entre universal e focalizado não se resumem a escolhas que governantes fazem diante de recursos parcos e demandas cada vez maiores, nem representam apenas divergências ideológicas, são expressões de concepções teóricas distintas. (MAURIEL, 2012, p. 180)

Todavia, como estamos avaliando a política nacional de assistência social, temos que nos sustentar no que diz sua legislação. Utilizar-me-ei a seguir de duas citações de Boschetti e Teixeira que expõe uma concepção sobre o princípio da universalidade e a relação com a focalização e seletividade.

O princípio da universalização garantido legalmente indica que a assistência social deve ser entendida e implementada tendo como horizonte a redução das desigualdades sociais (Pereira, 1996). Isto não significa que os direitos assistenciais devam ser garantidos a todos, pobres e ricos indiscriminadamente, mas que eles devem agir no sentido de buscar a inclusão de cidadãos no universo de bens, serviços e direitos que são patrimônio de todos, viabilizando-se mediante a vinculação orgânica da assistência social com as demais políticas econômicas e sociais. A universalidade assume, assim, dois sentidos. O primeiro, de garantir o acesso aos direitos assistenciais a todo o

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universo demarcado pela Loas, ou seja, a todos aqueles que estão dentro das categorias, critérios e condições estabelecidos por ela; e o segundo de articular a assistência às demais políticas sociais e econômicas, tendo como perspectiva a inclusão dos cidadãos nos bens e serviços prestados pelas demais políticas sociais. A assistência social e demais políticas sociais instituem, assim, um sistema de proteção social que deve ser contínuo, sistemático, planejado, articulado, com recursos garantidos no orçamento público das três esferas governamentais, com ações complementares entre si, evitando o paralelismo, a fragmentação e a dispersão de recursos. [...]. Enquanto uma política setorial ela não tem (e nem deve ter) a função de dar respostas cabais à pobreza. Seu horizonte deve ser o da sua inserção efetiva num projeto de desenvolvimento econômico e social, tanto local quanto nacional. (BOSCHETTI, TEIXEIRA, 2013, p.3)

Sobre focalização e seletividade,

A focalização, contrariamente ao pensamento corrente, não pode ser entendida apressadamente como sinônimo de seletividade. Em seu sentido vernacular, significa pôr em foco, fazer voltar aatenção para algo que se quer destacar, salientar, evidenciar. A focalização, nesse sentido, pode ser compatível com a universalização: no universo de pessoas atendidas em creche, por exemplo, é preciso focalizar aquelas crianças desnutridas com ações para combater a desnutrição. Focalizar, nessa direção, não é restringir o acesso aos direitos, mas no universo atendido, diferenciar aquelas que necessitam de atenção especial para reduzir desigualdades. A focalização passa a ser negativa quando, associada à seletividade, restringe e reduz as ações. Tais questões não decorrem de um preciosismo conceitual. Sua importância e significado derivam do fato de que tais conceitos têm sido utilizados operacionalmente para caracterizar ou orientar as políticas sociais e mais especificamente a assistência social. E, na maioria das vezes, com interpretações equivocadas, distorcidas ou intencionalmente adotadas como sinônimo de modernidade. (BOSCHETTI, TEIXEIRA, 2013, p.4 )

Boschetti e Teixeira, nesse texto, estão tratando da política social num contexto de predominância das forças antidemocráticas do capitalismo, conseguindo enxergar, todavia, a política social, especialmente a assistência social, como um meio de reduzir o pauperismo promovido pelo avanço do capital. Entretanto, os resultados a longo prazo, dessa focalização que pode ou não ser compatível de como a universalização precisa ser melhor analisada.

A produção de Célia Kerstenetzky, no âmbito da economia política, tem sido muito citada e usada para guiar o debate. Ressaltamos, todavia que a obra da professora tem claramente um viés Weberiano, cedendo à construção, do que ela mesma chama de

112 cenários “ideais-típicos”, articulando concepção de justiça social e política social. Na concepção de Kerstenetzky,

Em síntese, é possível, pois, combinar focalização e universalização com duas concepções de justiça alternativas, aqui denominadas de fina e espessa. O conjunto de cenários “ideal-típicos” resultante seria: (1) concepção fina de justiça com ênfase na focalização: residualismo, ou seja, rede de proteção social mínima — como parece ser a experiência norte-americana;

(2) concepção fina com ênfase na universalização: seguridade social, educação e saúde básicas — como parece ser a experiência inglesa; (3) concepção espessa de justiça com ênfase na universalização: seguridade social, educação e saúde universais e generosas — como parece ser a experiência escandinava;

(4) concepção espessa com ênfase na focalização: alocação redistributiva de recursos para geração de oportunidades sociais e econômicas para os grupos sociais em desvantagem relativa — cenário hipotético, porém plausível. (KERSTENETZKY, 2006, p. 572)

Kerstenetzky tem razão quando diz que a concepção de justiça social influi na concepção de política social. Mas precisamos ir além, e deixar claro que, por sua vez, a concepção de Estado é o que dita a concepção de “justiça social”. A concepção nº4, todavia nos parece contraditória, e é a que se tem tentado fazer com a política nacional de assistência social, ou que alguns também se referido como welfaremix, uma mistura de tipos de estado de bem estar-social, que na verdade mostra a desconstrução ou degradação gradual de políticas progressistas e democráticas pelo neoliberalismo. Contudo, a autora consegue articular os conceitos e nos mostra como se pode relacionar focalização e universalidade em prol de um objetivo político-econômico. Na verdade universalização e focalização não são necessariamente conceitos excludentes. (BACKX, 2008, p.

Para finalizar este assunto, entendemos que uma política social inserida na dinâmica capitalista vai sempre sofrer com limitações, a assistência social em especial, devido a seu caráter de política de proteção social não contributiva, é algo “natural” que tenha foco ou focalização em determinados setores. Todavia, quando esta focalização se torna seletividade, e os critérios de acesso são cada vez mais restritos, temos um problema para o processo de justiça social. Na política nacional de assistência social, temos uma luta, uma disputa em seu interior, se por um lado, e em alguns textos legais se afirma como universal e oferece serviços a quem necessitar, os critérios para avaliar

113 quem necessita se mostram restritos, focando ou selecionando, apenas aquele que é considerado pobre ou incapaz de buscar serviços básicos no mercado.

No documento victormartinslopesdearaujo (páginas 108-113)