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Capítulo 5

Metodologia

O objectivo da investigação sobre a relação entre os mass media e a saúde, a doença e a medicina reside na tentativa de apreender as mensagens veiculadas sobre os diversos assuntos e compreender as características dessa informação, a fim de captar as representações a que os indivíduos estão expostos. O interesse do estudo sobre estes temas fundamenta-se na suposição de que os meios de comunicação de massa têm, de alguma forma, influência nas atitudes, opiniões e comportamentos. Com efeito, os indivíduos, no âmbito da saúde, “bring into interaction all of the personal knowledge and experiences that define them, including exposure to any number of news, entertainment, and commercial messages coming from sources that vary from television to print to Internet bulletins” (Parrott, 1996, p. 275).

De acordo com o objectivo específico de cada estudo encetado nesta área, existe uma miríade de métodos específicos que podem ser aplicados para analisar os discursos difundidos pelos mass media. No entanto, a maior parte da investigação adopta uma abordagem assente numa análise de conteúdo, conceptualizada como descritiva e quantitativa, ou numa abordagem interpretativa-crítica, concebida como explicativa e qualitativa. Em teoria, estas duas abordagens são geralmente tratadas como dicotómicas, embora, na prática, a fronteira entre uma e outra seja muitas vezes ténue (Kline, 2003).

No nosso trabalho, dados os objectivos do estudo e o espaço temporal em análise (de 1990 a 2004) e, por conseguinte, a dimensão do corpus que constitui a amostra de artigos de imprensa escrita, optou-se por uma análise de conteúdo quantitativa longitudinal. Esta técnica consubstancia-se na categorização sistemática do significado simbólico das mensagens, no sentido de serem feitas inferências a partir de certos elementos sobre o fenómeno em estudo que não pode ser directamente observado (Berelson, 1952; Krippendorff, 1980). Com efeito, um dos principais benefícios que se

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pode retirar da análise de conteúdo é o facto de esta poder ser aplicada sobre material empírico que não foi produzido deliberadamente no âmbito de uma estratégia de investigação (Vala, 1986), sendo o material em análise, neste caso, os artigos informativos sobre o sistema de saúde na imprensa em Portugal. Mais concretamente, o objectivo deste método consiste em identificar categorias temáticas generalizáveis e replicáveis reflectidas no discurso sobre um assunto específico. Desta forma, uma das características que define a análise de conteúdo é o facto de as categorias temáticas serem definidas e operacionalizáveis antes da sua aplicação e interpretação dos resultados, com níveis de objectividade que podem ser comparados à análise científica de um inquérito por questionário com perguntas fechadas (Singleton, Straits, & Straits, 1993): em que em vez de se administrar individualmente um conjunto de questões junto de uma amostra de indivíduos, “pergunta-se” a cada texto analisado pela existência de um conjunto de categorias mutuamente exclusivas que o irá caracterizar através da sua codificação. Posteriormente, é construída uma base de dados que inclui a codificação de todos os documentos que constituem a amostra, possibilitando assim um tratamento quantitativo e estatístico dos dados, que permitirá, caso essa amostra tenha sido construída com critérios apropriados para o efeito, retirar resultados e chegar a conclusões que podem ser generalizáveis para uma dada realidade social.

Uma análise de conteúdo quantitativa envolvendo uma quantificação sistemática de frequências de categorias num conjunto de textos, que são depois trabalhados e analisados estatisticamente, possibilita a detecção de padrões de mensagens numa ampla quantidade de material num período de tempo igualmente extenso, que de outra forma permaneceriam desconhecidos se se utilizassem técnicas de análise de conteúdo em profundidade (Berelson, 1952). No entanto, esta enumeração de categorias e padrões de informação tem maior dificuldade em produzir uma análise mais detalhada ao nível das micro-propriedades da linguagem utilizada, assim como tem maior dificuldade em desconstruir pormenorizadamente a formação dos discursos e ideologias35 expressos nos textos informativos, análises só possíveis em quantidades de material muito limitadas. Apesar do objectivo primordial deste tipo de método consistir na dissecação dos artigos de imprensa escrita (ou unidades de registo) e na procura de semelhanças, oposições e regularidades, há que ter presente, no entanto, que a técnica quantitativa em geral tem

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O termo ideologia é aqui utilizado num sentido neutro, isto é, como definição de um sistema abstracto de partilha de crenças, imagens ou conceitos que estruturam a vida quotidiana e que ajudam os indivíduos a atribuírem sentido ao que os rodeia.

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uma variante qualitativa que possibilita a análise das estruturas do discurso e a sua contextualização (VanDijk, 1983, 1988). Ao carácter descritivo dos elementos mais salientes inscritos nos discursos que é próprio da natureza do método, essa variante qualitativa permite assim colmatar alguma falta de profundidade que pode ser atribuída a este tipo de análise quantitativa.

Com efeito, como refere Berelson (Vala, 1986), esta técnica possibilita a descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo patente da comunicação, mas vai muito para além disso; de acordo com Krippendorf (citado em Vala, 1986, p. 103) a análise de conteúdo “é uma técnica de investigação que permite fazer inferências, válidas e replicáveis dos dados para o seu contexto”. É a inferência que permite a ultrapassar a descrição, com base numa lógica explicativa sobre as mensagens cujas características foram inventariadas, sistematizadas e organizadas analiticamente para a interpretação (Bardin, 1988; Vala, 1986). Para Vala (1986, p. 126), contudo, “não há análise de conteúdo sem uma boa teoria. Não há modelos ideais em análise de conteúdo. As regras do processo inferencial que subjaz à análise de conteúdo devem ser ditadas pelos referentes teóricos e pelos objectivos do investigador.” A análise de conteúdo permite assim fazer inferências sobre a fonte e as circunstâncias em que foi produzido o material objecto de análise, ou até, por vezes, sobre o receptor ou destinatário das mensagens.

Na utilização deste tipo de método extensivo, na linha de investigação no âmbito do agenda-setting que contempla os temas e os tópicos seleccionados pelos mass media na construção da sua agenda, “analisam-se as unidades temáticas, os conhecimentos de carácter colectivo massivamente disseminados e as prioridades que os media estabelecem no âmbito da sua agenda temática”, bem como as características que lhes estão subjacentes (Saperas, 1994, p. 61).

Para proceder a essa espécie de cartografia da composição da agenda mediática em termos globais ou dentro de uma área específica, um conceito surge como central: o de saliência, conceito que deve guiar a análise e que é avançado por forma a estabelecer uma diferença clara com o que se entendia por conteúdo das notícias. Se a partir da análise de conteúdo clássica, proposta por Berelson (1952), se poderia reconstruir o conteúdo de um texto e, a partir daí, antever o tipo de opinião ou atitude que o mesmo incutiria no leitor, a análise da “saliência” identifica os itens de conteúdo ou de actualidade ou temáticos, isto é, as notícias que são o resultado da acção selectiva dos

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presente estudo. Em virtude de alguma indefinição conceptual e terminológica ao nível da teoria do agenda-setting (Saperas, 1994), o conceito de salience é por vezes substituído pelo conceito de issue (Traquina, 1995).

A análise de conteúdo longitudinal da cobertura do sistema de saúde pela imprensa escrita engloba dois níveis: 1) estabelecer um indicador da intensidade da cobertura ao longo do período em análise, tentando identificar os períodos de tempo em que esses assuntos estão mais presentes na imprensa; 2) caracterizar essa cobertura jornalisticamente e através da apreensão dos conteúdos veiculados no que respeita aos assuntos abordados, aos actores envolvidos, às fontes mencionadas, bem como evidenciar as relações que os diferentes conteúdos estabelecem entre si, construindo para o efeito uma grelha de análise que permitirá um tratamento quantitativo dos dados. Os perfis encontrados relativos a esses conteúdos veiculados pelos mass media providenciam uma estrutura faseada definida com base nos picos e contornos da cobertura feita ao longo do tempo com base num conjunto de códigos comuns. Em cada fase, os perfis comparam de forma sistemática a estrutura da cobertura sobre os conjuntos de variáveis das diferentes dimensões. Isto permite caracterizar e comparar as mudanças na visibilidade do sistema de saúde ao longo do período em análise. Desta forma, a análise de conteúdo não só possibilita saber a frequência com que determinados objectos são identificados no material analisado, como também permite analisar as relações entre os diferentes objectos.

Na globalidade, procura-se assim perceber, no quadro do processo de selecção dos acontecimentos e de fabricação das notícias que conduzem os mass media a definir a atenção pública, qual o relevo concedido pela imprensa escrita ao sistema de saúde em Portugal. A codificação é crucial neste processo, sendo constituída por um conjunto de categorias (coder questions) que devem ser procuradas em cada texto em análise (em cada caso), permitindo a sua interpretação de uma forma sistemática e comparável. As unidades de registo, isto é, o “segmento determinado de conteúdo que se caracteriza colocando-o numa dada categoria” (Vala, 1986, p. 114), são de natureza semântica, que correspondem a temas ou unidades de informação que se reportam às variáveis analisadas.

De uma forma geral, sobretudo em estudos pioneiros, a construção de uma grelha para a análise de conteúdo longitudinal não se afigura uma tarefa fácil. A construção e a necessária validação implicam a passagem por uma série de etapas a fim de estabelecer as dimensões analíticas e a exequibilidade das variáveis que se pretendem

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operacionalizar, confrontando obviamente de uma forma directa com o enquadramento teorico-metodológico definido e com os objectivos do estudo. Nos estudos sobre a imprensa escrita (ou sobre outros mass media), a definição das diferentes categorias dentro de cada uma das variáveis deve ser realizada a posteriori em confronto com o material objecto de análise, não devendo nenhum pressuposto teórico rígido orientar a composição das categorias (Vala, 1999: 113).

Assim, com base numa análise de conteúdo prévia de carácter exploratório, foi sendo construída uma grelha através de um processo cumulativo estruturado para a definição das regras de contagem e escolha das categorias de codificação que é o processo pelo qual os dados em bruto são transformados sistematicamente e agregados em unidades que irão possibilitar uma descrição precisa das características pertinentes do conteúdo (Bardin, 1988). Essa grelha foi testada e replicada sucessivas vezes a uma amostra mais restrita do corpus de análise, no sentido de encontrar todas as categorias necessárias para cada variável que cobrissem de forma exaustiva todas as codificações possíveis e que fossem mutuamente exclusivas. Estabilizada e concluída a construção da grelha de análise,36 procedeu-se então à codificação do total do material constitutivo do

corpus de análise, que originou uma base de dados a partir da qual foram realizados

todos os tratamentos estatísticos necessários, devidamente interpretados e contextualizados.

Definição do corpus de análise

Os jornais são um entre vários tipos de mass media clássicos e modernos a desempenhar um papel importante na compreensão e nas representações sobre o sistema de saúde, através da capacidade que têm para fornecer quotidianamente informação sobre esta área tão importante da vida social junto de um público abrangente. Os textos recolhidos na imprensa escrita são uma fonte importante para a investigação cultural e social, tendo vindo essa informação a ser considerada em várias áreas das ciências sociais como importantes barómetros para dar conta de processos sociais específicos (Jensen & Jankowski, 1991). A investigação na linha do agenda-

setting diz-nos que, em comparação com a informação televisiva, a agenda da imprensa

escrita é dotada de um “perfil alto”, isto é, não remete apenas para a simples estruturação de uma ordem do dia de temas e problemas, mas antes para a determinação, no público, de conjuntos de conhecimentos precisos. Isto porque, sendo menos

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fragmentária e possuindo maior capacidade para fixar o contexto dos acontecimentos, “a informação escrita fornece aos leitores uma indicação de importância sólida, constante e visível”, enquanto as notícias televisivas “são demasiado breves, rápidas, heterogéneas e ‘acumuladas’ numa dimensão temporal limitada, isto é, demasiado fragmentárias para terem um efeito de agenda significativo [em termos de] uma eficácia cognitiva duradoura” (Wolf, 1995, p. 131).

Na impossibilidade de analisar todos os títulos da imprensa escrita em Portugal, o que originaria um corpus de análise muito extenso para o espaço temporal requerido, mesmo recorrendo a uma amostra representativa, optou-se por escolher três órgãos de informação representativos de distintos tipos de jornalismo na procura de semelhanças e diferenças na atenção e na forma como cada um deles trata os diversos assuntos relacionados com o sistema de saúde: dois jornais diários matutinos nacionais, o “Público” (PUB) e o “Correio da Manhã” (CM), bem como um semanário, o “Expresso” (EXP). Estes três títulos informativos cobrem o país de um modo relativamente completo em termos geográficos e sociais, sendo dos mais lidos em Portugal. O PUB (fundado em 1990), é considerado um jornal de referência lido por todo o país, mas com o maior número de leitores nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, enquanto o CM, fundado em 1980, é um jornal popular, mais lido na área da Grande Lisboa e Vale do Tejo, no Sul e no Centro. O “Expresso” é o mais antigo semanário português (fundado em 1975), de grande implantação nacional, com especial incidência nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, e é tido também como um órgão de informação de referência; todos são dos títulos com maior circulação dentro do tipo a que pertencem (Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação - APCT).

A imprensa de referência caracteriza-se por ser de âmbito nacional e centra-se sobretudo no tratamento de temas políticos (tanto nacionais como internacionais), económicos, sociais e culturais, distinguindo-se pela sobriedade e pelo distanciamento das abordagens na forma como conduz o trabalho jornalístico. Procura ao mesmo tempo dedicar mais espaço à reflexão e ao comentário realizado por analistas do que outro tipo de jornais. O grafismo tende a ser igualmente sóbrio, podendo adoptar vários formatos quanto ao design e tamanho, embora o formato broad-sheet esteja tradicionalmente mais associado à imprensa de referência (Mesquita & Rebelo, 1994). No que se refere aos conteúdos, a imprensa de referência procura cativar audiências com base numa

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valorizando assuntos mais complexos de cariz político e económico de âmbito nacional e internacional (Penedo, 2003).

Quanto à imprensa popular, os processos políticos, os desenvolvimentos económicos e as mudanças sociais tendem a assumir menos importância nas suas edições, dando maior relevo a outros assuntos relacionados com o entretenimento popular, o desporto, a vida pessoal e privada, sejam celebridades ou pessoas comuns, e os escândalos, procurando cativar o público com conteúdos informativos reduzidos, menos aprofundados e menos problematizados, recorrendo com maior frequência à imagem (Penedo, 2003; Sparks, 2000). Em suma, enquanto a imprensa de referência se dirige, principalmente, à opinião pública dirigente, a imprensa popular visa, sobretudo, a opinião pública generalizada (Mesquita & Rebelo, 1994).

O corpus de análise será assim constituído por uma amostra probabilística estratificada por jornal e ano de 1 de Janeiro de 1990 a 15 de Setembro de 2004, data em que o SNS completou 25 anos, correspondendo assim a amostra aos últimos 15 anos do período de existência dos SNS: (45 edições (PUB) + 45 edições (CM))37 + 1338 edições (EXP) = 103 edições/ano x 15 anos = 1545 edições. A análise recaiu sobre as edições completas de cada edição e não apenas sobre o caderno principal, embora no caso do jornal PUB, a edição contemplada se refira à de Lisboa, o que poderá resultar numa sobrerepresentação de informação desta área geográfica em detrimento de outras devido à secção Local. A construção da amostra com base nas edições justifica-se pelo facto

de em Portugal não existir uma base de dados com a indexação de artigos que

publicados na imprensa, semelhante ao LEXIS/NEXIS para a língua inglesa, que permita procurar artigos por palavras-chave e assim obter o universo de artigos sobre uma determinada área temática para um período específico de análise e, a partir daí, construir uma amostra de artigos. Assim, optou-se por construir a amostra tendo como base não o total de artigos publicados sobre o sistema de saúde, dado que não existia a possibilidade a priori de se saber qual o universo, mas sim o número de edições de cada órgão de comunicação social, estratificado por ano e por cada órgão aleatoriamente para os 15 anos em análise. Depois de seleccionadas as edições a ser consultadas por inteiro, foram retirados todos os artigos publicados dentro de cada edição sobre o sistema de saúde português.

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25% de 364 dias. 38

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As unidades de contexto em análise, isto é,“o segmento mais largo de conteúdo que o analista examina” (Vala, 1986, p. 114) referem-se a todos os artigos cujo conteúdo se relacione de alguma forma com o sistema de saúde em Portugal, quer directa, quer indirectamente. Os temas abrangidos vão desde as políticas de saúde e administração do sistema, o funcionamento e o acesso, a gestão económica e financeira do sistema ou de unidades de saúde, as infra-estruturas, equipamentos e recursos técnicos, aos temas laborais e sócio-profissionais, passando pela formação de recursos humanos, pelos assuntos sobre a negligência médica e de serviços, pelo sistema farmacêutico e medicamentos, pela prevenção e promoção da saúde e pelos temas sobre ciência e tecnologia, bem como as “estórias” com um enfoque individual relacionado com a saúde e a doença. Os artigos que se refiram a temas de saúde que não estejam relacionados de alguma forma com o contexto português não entraram na amostra (por exemplo, uma notícia sobre um nova terapêutica para o tratamento de uma doença só fará parte da amostra se essa notícia fizer referência explícita à realidade portuguesa onde essa terapêutica possa estar já, ou vir a ser, aplicada).

A selecção de artigos publicados nos três títulos de imprensa originou um corpus de análise de 2781 unidades entre 1990 e 2004: 1196 artigos do jornal PUB (43%); 1321 artigos do jornal CM (47,5%); e 264 artigos do semanário EXP (9,5%).

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Capítulo 6